Atravessando o “Umbral Da Injustiça”: Direito E Moral Em Gustav Radbruch

AutorJosé Jardim Rocha Júnior
CargoAssessor de Ministro do Tribunal de Contas da União.

"Ai dos que decretam leis injustas, dos que escrevem leis de opressão" (Isaías 10:1)

1 - O "Umbral da Injustiça":o direito depois do desastre
1. 1 A primeira tomada de posição

Ao capítulo1 VIII da obra que preparara2 até um mês antes de ser surpreendido pela morte - "O Homem no Direito" - Radbruch pôs o título de "Primeira Tomada de Posição logo após o Desastre de 1945", fazendo nele incluir duas das mais significativas expressões da orientação que o seu pensamento assumira com respeito ao direito em face da experiência alemã do nacional-socialismo.

A primeira delas, os famosos "Cinco Minutos de Filosofia do Direito"3 (Fünf Minuten Rechtsphilosophie), é uma circular que Radbruch encaminhou aos estudantes da Universidade de Heidelberg, publicada na edição de 12 de setembro de 1945 da Rhein-Neckar-Zeitung. A segunda é o discurso proferido em 1946 na reinauguração da Faculdade de Direito da Universidade de Heidelberg, intitulado "Renovação do Direito"4.

Radbruch abre o primeiro dos Cinco Minutos de Filosofia do Direito, precisando o sentido do que lhe parecia ser o positivismo jurídico:

"Ordens são ordens, é a lei do soldado. A lei é a lei, diz o jurista. No entanto, ao passo que para o soldado a obrigação e o dever de obediência cessam quando ele souber que a ordem recebida visa a práctica dum crime, o jurista, desde que há cerca de cem anos desapareceram os últimos jusnaturalistas, não conhece excepções deste género à validade das leis nem ao preceito de obediência que os cidadãos lhes devem. A lei vale por ser lei, e é lei sempre que, como na generalidade dos casos, tiver do seu lado a força para se fazer impor. Esta concepção da lei e sua validade, a que chamamos Positivismo, foi a que deixou sem defesa o povo e os juristas contra as leis mais arbitrárias, mais cruéis e mais criminosas. Torna equivalentes, em última análise, o direito e a força, levando a crer que só onde estiver a segunda estará também o primeiro".5

No segundo minuto, Radbruch questiona o princípio que, segundo ele, pretendera substituir o positivismo: o de que "direito é tudo aquilo que for útil ao povo". Isso quer dizer que "arbítrio, violação de tratados, ilegalidade serão direito desde que sejam vantajosos para o povo. Ou melhor, praticamente: aquilo que os detentores do poder do Estado julgarem conveniente para o bem comum, o capricho do déspota, a pena decretada sem lei ou sentença anterior, o assassínio ilegal de doentes, serão direito. E pode até significar ainda: o bem particular dos governantes passará por bem comum de todos. Desta maneira, a identificação do direito com um suposto ou invocado bem da comunidade, transforma um 'Estado-de-Direito' num 'Estado-contra-o-direito". Ao invés disso, sustenta Radbruch, dever-se-ia dizer que "só o que for direito será útil e proveitoso para o povo".

No terceiro minuto, Radbruch retorna à relação entre o direito e a justiça, iniciando com uma fórmula que já estava contemplada no seu pensamento: "Direito quer dizer o mesmo que vontade e desejo de justiça". Todavia, supera o relativismo expresso em suas posições anteriores6, acrescentando um critério que materializa aquela relação: "Justiça, porém, significa: julgar sem consideração de pessoas; medir a todos pelo mesmo metro". Por fim, prega que o povo não deverá obedecer e os juristas deverão ser os primeiros a recusar o caráter de jurídicas às "leis que conscientemente desmentem essa vontade e desejo de justiça, como quando arbitrariamente concedem ou negam a certos homens os direitos naturais da pessoa humana".7

No quarto minuto, Radbruch enfrenta o problema das antinomias entre os três valores que associa à idéia de direito: a "justiça", a "segurança jurídica" e o "bem comum". Admite que muitas vezes será necessário "ponderar" se "uma lei má, nociva ou injusta" deverá ainda ser reconhecida como válida "por amor da segurança do direito" ou, ao contrário, se, "por virtude da sua nocividade ou injusta, tal validade lhe deverá ser recusada".8 Contudo, exorta o povo e os juristas a ter profundamente gravado na sua consciência um ponto decisivo: "pode (sic) haver leis tais, com um tal grau de injustiça e de nocividade para o bem comum, que toda a validade e até o caracter (sic) de jurídicas não poderão jamais deixar de lhes ser negados".

Por derradeiro, no quinto minuto Radbruch reconhece a existência de "princípios fundamentais de direito que são mais fortes do que todo e qualquer preceito jurídico positivo". Admite que esses princípios - que alguns chamam de "direito natural" e outros de "direito racional" - têm os seus pormenores "envoltos em grandes dúvidas"; todavia, sustenta que "o esforço de séculos" conseguiu firmar um núcleo seguro e fixo desses princípios, que foram reunidos nas "declarações dos direitos dos homens e do cidadão". Tal é a universalidade do reconhecimento desses princípios que, segundo Radbruch, "com relação a muitos deles, só um sistemático cepticismo poderá ainda levantar quaisquer dúvidas".

A sua vez, na "Renovação do Direito, diante de uma das mais expressivas comunidades acadêmicas da Alemanha, Radbruch prega que deveria partir das Faculdades de Direito "a renovação do direito, a conversão educativa do jurista alemão e a formação jurídica de todo o povo alemão",9 apresentando nove princípios que deveriam ser observados nessa tarefa:

i) retorno à idéia de Rechtsstaat, de um Estado vinculado às suas próprias leis, isso que antes do nazismo era tão evidente e inconscientemente aceito como o ar mesmo que se respira; ii) superação do positivismo - concepção que, por conceder "validez a toda lei surgida conforme à ordem estabelecida", deixara os juristas indefesos diante de leis criminosas - em benefício da prevalência de direitos humanos acima de qualquer lei; do direito natural, que nega validez a toda lei inimiga da justiça; iii) uma vez que, nos últimos vinte anos, apenas o cristianismo e a igreja conseguiram se afirmar, ao passo que "todos os outros poderes espirituais, as universidades e a ciência, os tribunais e a prática jurídica, as concepções políticas do mundo e da vida, sucumbiram frente à tirania", o direito também deverá ser afetado pela ressurreição da crença religiosa: ele "será concebido como uma parte da ordem divina, e a santidade do direito e dos contratos voltará a ser algo mais que uma mera maneira de falar"; iv) incremento dos estudos comparativos entre as duas grandes culturas jurídicas - a europeucontinental e a anglo-americana -, de modo a tornar mais nítido o que é cambiante e o que é permanente no direito; v) revalorização do estudo do direito romano - "uma espécie de esperanto do mundo jurídico" para o entendimento entre aquelas duas culturas jurídicas -, que é a formação humanista aplicada ao direito; vi) reconstrução da economia não em uma forma puramente privada, mas sim sob a forma do "direito social", isto é, "ampla penetração do direito privado com modificações jurídicas do direito público"; vii) reconstrução do Direito Penal - o mais devastado entre todos os domínios jurídicos - com a substituição da arbitrariedade pela segurança jurídica; do sadismo pela humanidade; da intimidação pela retribuição, melhoramento e educação, mas sem estabelecer no lugar da desumanidade a debilidade; viii) construção da democracia - já que "o direito do Estado do futuro só pode ser de caráter democrático" - desde baixo, é dizer, a partir do município; e, finalmente, ix) cooperação no surgimento de um novo direito internacional, cuja meta principal deve ser uma paz mundial duradoura, que não obrigue apenas aos Estados mas também aos homens dos Estados, e de um direito penal internacional, que alcance pessoalmente aos destruidores da paz.

1. 2 O "Umbral da Injustiça"

A expressão "Umbral da Injustiça" e a sua referência a uma fórmula usada por Gustav Radbruch para estabelecer a relação entre Direito e Moral são obra de Robert Alexy, apresentada no seu "O Conceito e a Validez do Direito". Segundo Alexy interessa aí saber se a violação de algum critério moral retira o caráter jurídico das normas de um sistema normativo ou do próprio sistema normativo. Uma resposta afirmativa a esta questão dependeria de se demonstrar que o caráter jurídico das normas ou dos sistemas normativos é afastado quando se ultrapassa um determinado "umbral de injustiça". Essa tese da perda da qualidade jurídica em caso de ultrapassagem do "umbral da injustiça" é por...

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