Atuação do poder judiciário na defesa dos direitos fundamentais: uma tensão entre constitucionalismo e democracia

AutorMicheli Pereira
Páginas2-20

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1 Introdução ao tema

A conhecida discussão1 2 sobre quem deve ser o defensor da Constituição, travada entre Kelsen3 e Carl Schmitt4 pelos idos de 1929, no contexto da República de Weimar, na Alemanha, ainda se mostra bastante atual, especialmente no que se refere ao questionamento quanto à legitimidade da atuação do Poder Judiciário na jurisdição Page 3 constitucional. Ainda na atualidade, se afirma que, por não ter sido eleito pelo 'povo', o Judiciário não poderia realizar o controle de constitucionalidade das leis, uma vez que sua atuação iria de encontro com a democracia e com os poderes eleitos.

Apesar do discurso de Carl Schmitt constituir um discurso 'ideológico'5, este pode ser aproveitado no que toca a uma questão relevante, qual seja: não se pode confundir a atuação do legislador com a do juiz, papéis que se entrecruzariam quando a Corte Constitucional resolve o conteúdo duvidoso de uma lei, saindo de sua esfera de competência e entrando na esfera legislativa, conforme se verifica no trecho abaixo:

"(...) es preciso distinguir entre ley y sentencia judicial, y, por consiguiente, entre legislador y juez" 6 .

"Toda instancia que pone fuera de duda y resuelve auténticamente el contenido dudoso de una ley, realiza, de manera efectiva, una misión de legislador. Y si resuelve indudablemente el contenido de una ley formulada en la Constitución, procede como legislador constitucional"7.

Conclui o autor que a atuação do Poder Judiciário na jurisdição constitucional afronta a lógica da separação dos poderes, e, consequentemente o Estado Cívico de Direito:

"(...) no existe Estado Cívico de Derecho sin independencia del poder judicial, ni justicia independiente sin sujeción concreta a una ley, ni sujeción concreta a la ley sin una diferenciación real entre la ley y la sentencia judicial. El Estado Cívico de Derecho descansa sobre la distinción real de diversos poderes" 8 .

Apesar de existirem inúmeras críticas a tal posicionamento, conforme se verificará ao longo deste artigo, inclusive feitas por Kelsen9, tais fundamentos estabelecem a tensão entre constitucionalismo e democracia e nos levam a alguns questionamentos, Page 4 quais sejam: juízes não eleitos podem controlar e anular leis elaboradas por um poder eleito e aplicadas pelo Executivo, também eleito? O Judiciário não estaria utilizando-se do discurso dos 'direitos fundamentais' para limitar leis e ditar valores sociais? O conteúdo dos direitos fundamentais não estaria sendo definido pelo Judiciário a partir de julgamentos de valores substantivos, ultrapassando a sua competência? Em que medida a jurisdição constitucional não estaria afrontando a democracia?

Se analisarmos a atuação do Supremo Tribunal Federal, no controle de constitucionalidade das leis, este não estaria se tornando o protagonista da vontade constitucional10, diante da passividade do Legislativo? Se pensarmos em sua atuação na resolução de situações polêmicas, como a pesquisa com a utilização de células-tronco, a vedação na nomeação de parentes para cargos de provimento em comissão11, a utilização das súmulas vinculantes, etc., tudo isso não equivaleria a legislar? A sua atuação não estaria se tornando uma atuação política, ao invés de jurídica?

Apesar de essas questões acirrarem ainda mais o debate sobre o papel da jurisdição constitucional e a tensão que se estabelece entre constitucionalismo e democracia, é necessário indagar: Se considerarmos que a Constituição Federal definiu os objetivos fundamentais do Estado, orientando a compreensão e interpretação do ordenamento constitucional a partir do sistema de direitos fundamentais12, e levando em conta que a Constituição é um sistema de valores, pode ela se transformar em outra coisa senão em um instrumento de realização política13? Na mesma lógica: Pode-se dizer que a atuação do Judiciário, legitimado pelo Poder Constituinte a realizar a jurisdição constitucional, garantindo a valorização dos direitos fundamentais, seria antidemocrática?

Verifica-se que a objeção democrática à jurisdição constitucional pode justificar uma postura de autocontenção do juiz constitucional, ao passo que a demonstração de sua compatibilidade com a ideia de democracia autoriza uma postura mais ativa do juiz14. Assim, a questão central da presente discussão paira sobre o papel da jurisdição constitucional no regime democrático, bem como o que vem se entendendo por 'democracia', conceito que, conforme se verificará, é controverso. Page 5

2 Jurisdição constitucional e democracia: procedimento ou substância?

Com exceção da democracia ateniense, da república romana anterior ao Império e das repúblicas italianas dos séculos XII e XIII, poucos regimes democráticos podem ser lembrados antes do século XX. Somente após a Segunda Guerra Mundial se verificou a proliferação dos regimes democráticos e o desprestígio das demais formas de governo15, e, apenas depois da afirmação da democracia passou-se a estudar no que consistia o seu real conceito, o qual é impreciso, conforme afirma Dworkin16.

Para Montesquieu, "quando em uma república, o povo, formando um só corpo, tem o poder soberano, isso vem a ser uma democracia"17, ou seja, para o autor, o conceito de democracia significa o 'governo do povo'18. Nesse sentido, a essência do Estado Democrático envolveria sempre a legitimação do exercício do poder pelo povo, o qual atualmente é representado por meio de seus governantes, uma vez que se tornou inviável aos estados modernos o exercício da democracia direta19.

José Afonso da Silva, por sua vez, aponta que democracia é um conceito histórico. Assim, ela não constitui um valor-fim, mas um valor-meio, a partir do qual ocorre a concretização gradual de valores essenciais à convivência humana, ou ainda, em suas palavras, "é um processo de afirmação do povo e de garantia dos direitos fundamentais que o povo vai conquistando no correr da história"20. Dentro dessa perspectiva, haveria uma relação muito forte entre democracia e concretização dos direitos fundamentais, não se podendo falar em um deles, sem a presença do outro.

Reforçando a concepção de que 'democracia' seria um valor-meio, Maria Lúcia Luz Leiria afirma que "Democrático vem a ser o Estado que garante a efetiva realização Page 6 dos direitos fundamentais representativos dos anseios do povo"21. No mesmo sentido se posiciona Estefânia Maria de Queiroz Barboza, quando sustenta que: "(...) numa sociedade heterogênea, desigual e plural como a brasileira, só se poderá falar em democracia quando os direitos sociais básicos dos cidadãos estiverem garantidos"22.

Nesse contexto, questiona-se: o papel da jurisdição constitucional é compatível com a democracia? Sua atuação fere a soberania popular, na medida em que o Judiciário é um poder não eleito? Ou, ao contrário, sua atuação é compatível com a democracia, na medida em que viabiliza a concretização de direitos fundamentais? Considerando 'democracia' como um processo de tomada de decisões, a partir das quais deve ser ampla a vontade popular, a jurisdição constitucional dificilmente poderá ser considerada uma instituição democrática23, contudo, se 'democracia' for considerada um valor-meio de realização de valores essenciais à convivência humana, a jurisdição constitucional poderá sim ser considerada democrática.

Se pensarmos no ativismo judicial americano e nas críticas feitas a ele, verificaremos que alguns autores, dentre os quais Habermas, entendem que a jurisdição constitucional deve apenas garantir a preservação dos princípios democráticos, ou seja, deve apenas proteger os direitos que garantem a participação política e os processos deliberativos, porém, tais autores não se preocupam com os resultados que serão alcançados a partir do exercício democrático-procedimental desses direitos24.

Por sua vez, outros autores, dentre eles Dworkin, são defensores do chamado 'constitucionalismo', para o qual não basta à jurisdição constitucional a defesa dos princípios democráticos, sem a atenção aos resultados produzidos por meio deles. Dworkin defende que os procedimentos democrático-deliberativos não são suficientes para alcançar resultados justos, sendo necessário, também, juízos de valores substantivos adequados a cada caso, de modo que estes se voltem à concretização de resultados25.

A título de esclarecimento, Habermas defende a ideia de democracia deliberativa, a partir da qual o direito deve se legitimar pela formação discursiva da opinião e da vontade dos cidadãos, os quais devem ser iguais e livres26, devendo tal procedimento ser Page 7 efetivado por meio de comunicação racional27. Para o autor, os que estão submetidos ao direito, na qualidade de destinatários, devem entender-se também como autores do direito28, por isso todos os afetados pela decisão política devem participar do processo de deliberação, e somente as normas obtidas dentro desse processo serão válidas.

Para Habermas, há divergências quanto às concepções de bem comum nas sociedades modernas e complexas, razão porque ele entende ser fundamental o processo de deliberação, o qual é mais valorizado do que o consenso pretendido ou a postura final quanto às divergências geradas na arena política29, ou seja, a participação política e o exercício desse poder é o que efetivamente importa, independentemente do resultado a que a maioria chegar30. Nessa perspectiva, o cumprimento do princípio democrático significa uma concepção procedimental de democracia.

O ideal da democracia deliberativa "pretende funcionar como um método de tomada de decisão que seja em si mesmo legítimo ou que justifique o exercício do poder político"31, e, para tanto, o processo deliberativo é o garantidor de tal ideal democrático. Diante disso, Habermas questiona a atuação da...

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