A atuacao dos movimentos de doulas em Florianopolis (SC): conflitos pelo protagonismo feminino no parto/Actions of the doula movements in Florianopolis, Santa Catarina: conflicts for female agency in childbirth.

AutorEspindola, Carla Klitzke

"Ser feminista é uma premissa para ser doula." (D7, doula entrevistada, 2018) Introdução

Este trabalho é produto de uma caminhada profissional e acadêmica na área da saúde de uma das autoras, particularmente, vinculada à condição de assistente social residente no Programa de Residência Integrada Multiprofissional em Saúde (Rims), no Hospital Universitário Polydoro Ernani de São Thiago (HU) da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), entre 2014 e 2016. A imersão na área da saúde da mulher e da criança proporcionou experiências multiprofissionais relacionadas ao atendimento de mulheres (gestantes, parturientes, puérperas) e de seus familiares/acompanhantes durante o período gravídico-puerperal.

Naquele espaço, emergiram diversos incômodos, dentre eles a subalternidade das mulheres grávidas ou paridas imposta pela cultura hegemónica, assim como o modo de cuidar biomédico, eurocêntrico e machista. Essas e outras inquietações decorridas da vivência profissional foram levadas à pesquisa de mestrado, e parte dos resultados stricto sensu são aqui apresentados.

Ao encontro dessas inquietudes, há um grupo de mulheres que questionam e intervêm na contramão da cultura tecnificada do parto e defendem o protagonismo das mulheres, o qual nos interessou conhecer: as doulas. Portanto, este artigo teve como objetivo analisar a dinâmica interna do movimento de doulas em Florianópolis (SC), especificamente a partir de duas pautas políticas do grupo: a promoção do parto respeitoso e o protagonismo feminino.

Partimos do pressuposto de que as doulas promovem deslocamentos dos saberes coloniais que orientam o parto e que são referendados pela racionalidade médica, assim como os reproduzem. Seus discursos são de promoção do protagonismo das mulheres-parturientes e de construção de um movimento contra-hegemônico ao saber biomédico-machistaconservador, que sustenta a manutenção de uma assistência obstétrica violenta no Brasil (MENDONÇA, 2015). Geram, com isso, descontinuidades na formação e no modo de assistir, mas, igualmente, reafirmam continuidades ao buscarem institucionalizar suas práticas no campo da saúde.

O referencial teórico incorporou leituras do campo interdisciplinar feminista com aproximações decoloniais. Estas possibilitaram discutir as realidades locais das doulas e problematizar a importação de modelos obstétricos europeus, bem como questionar a formação marcada pela influência norte-americana (LUGONES, 2014). A perspectiva decolonial nos oferece, igualmente, o suporte para recuperar os saberes e práticas locais, bem como a produção de conhecimento de mulheres e doulas da América Latina, muito diferente da realidade do Hemisfério Norte. Com efeito, as contribuições dos estudos feminista e de gênero, assim como da noção dos direitos sexuais e reprodutivos, promovem a descontração da "cegueira de gênero" (DINIZ, 2009), tão naturalizada na sociedade e nos modelos de atendimento obstétrico em disputa no Brasil.

Finalmente, consideramos que as reflexões e proposições aqui apresentadas são contribuições ao debate, à atuação do Serviço Social e aos estudos produzidos no âmbito da pós-graduação. As/os assistentes sociais trabalham diretamente no atendimento às mulheres e suas famílias em maternidades e diversos espaços sócio-ocupacionais, compondo as equipes de saúde. Além disso, essas/es profissionais trabalham considerando as dimensões reflexiva, crítica e socializadora de conhecimentos, em abordagens individuais e coletivas. Desse modo, o olhar atento aos saberes-poderes que atravessam o parto e o puerpério pode contribuir para intervenções críticas que privilegiam a autonomia das mulheres-parturientes, e ações que desconstruam a percepção naturalizada da submissão e o silenciamento histórico das mulheres.

Destacamos que a interlocução com as "sujeitas cognoscentes" (1) da pesquisa possibilitou identificar um conjunto de dissidências e contradições entre as doulas que atuam na capital catarinense, o que nos levou a discutir os "conflitos internos" do movimento a partir dos temas que mais se projetaram durante as entrevistas. Na sequência, situamos conceitualmente as categorias orientadoras da pesquisa, o caminho percorrido para a construção dos dados e a discussão dos resultados, finalizando com as considerações.

Parir no Brasil: ato de coragem

Na conjuntura brasileira, a maioria dos partos ocorre em instituições hospitalares (TESSER et al., 2011), realidade construída por um processo histórico médico-científico-europeu. Esse modelo contribuiu para que os corpos das mulheres fossem demarcados pela "razão masculina", por um sistema obstétrico da desinformação (MÜLLER; RODRIGUES; PIMENTEL, 2015), pela destituição do partejar no ambiente doméstico e da participação ativa da(s) mulher(es) nesse processo (MARTINS, 2004; TORNQUIST, 2004).

Somam-se a esse contexto brasileiro os indicadores de saúde sobre parto e nascimento, que apontam que a média de cesarianas realizada no SUS por ano é de 52%, e no setor privado é de 88% (TESSER et al., 2014). Essa taxa está muito acima dos 15% recomendados pela Organização Mundial da Saúde em 2018, que considera que a cesárea representa quatro vezes mais riscos de vida à mulher-gestante e à/ao recém-nascida/o, quando comparada ao parto vaginal (CARNEIRO, 2015; TESSER et al., 2011). Os dados indicam a razão pela qual o Brasil se torna o líder mundial em cesarianas (CAD. SAÚDE PÚBLICA, 2014).

Segundo Müller, Rodrigues e Pimentel (2015), o atendimento aos partos brasileiros se resume a dois padrões: realizado pelo SUS, em que as mulheres atendidas apresentam experiências de parto normal repletas de intervenções ou realizado pela rede suplementar, com cesarianas agendadas previamente. Diante desse panorama provável de violências obstétricas, um conjunto de mulheres tem optado por modalidades de partos "desinstitucionalizados" via partos domiciliares privados, privilégio de uma pequena parcela da população (FEYER; MONTICELLI; KNOBEL, 2013). Para as autoras citadas, um dos pilares de sustentação da realidade adversa do parto e nascimento no Brasil é o discurso biomédico. A validação e aceitação social desse modelo ocorre diante do lugar de poder-saber que a medicina edificou, sustentando suas práticas em nome da veracidade do "conhecimento científico", no qual as/os sujeitas/os deixam de seguir conselhos para obedecer a ordens dos "doutores do saber" (ROHDEN, 2001).

Contudo, contrariando o discurso biomédico, os modelos obstétricos "mais intervencionistas" não resultaram na redução da mortalidade perinatal (TESSER et al., 2014). No Brasil, a mortalidade materna está para 62 casos de morte a cada 100 mil nascimentos (VARGENS; SILVA; PROGIAN, 2017). Por isso, Simone G. Diniz (2009, p. 316) afirma que o país vive um "paradoxo perinatal" na assistência ao parto, visto que convivemos com o pior de dois mundos: "o adoecimento e a morte por falta de tecnologia apropriada, e o adoecimento e a morte por excesso de tecnologia inapropriada". Nesse cenário, os movimentos de doulas se somam à crítica ao modelo intervencionista e sistematizam práticas menos invasivas como alternativa de prevenção das violências no âmbito do parto e nascimento, bem como de promoção do protagonismo das mulheres-parturientes e de um parto respeitoso.

Doulas-sinónimo de resistência

O termo "doula" tem origem grega e foi resgatado pela antropóloga americana Dana Raphael, estudiosa da prática do aleitamento materno (SIMAS, 2016). Era utilizado para designar as mulheres que ofereciam apoio físico e emocional, bem como suporte cognitivo às mulheres grávidas e sua família em casa após o parto, auxiliando no cuidado com o bebê e em seus afazeres domésticos (FONSECA; FREITAS; RIL, 2017; SIMAS, 2016; SILVA et al., 2012).

Atualmente, o sentido e as ações foram ampliados. As doulas apoiam a mulher e seus familiares/acompanhante(s) durante o período perinatal-gravidez, parto e processo de amamentação-, através de acompanhamento voluntário ou contratação de serviço por mulheres que desejam receber esse suporte ou a serviço de alguma maternidade...

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