O atual conceito de valor mobiliário

AutorJefferson Siqueira de Brito Alvares
Páginas203-247

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I - Apresentação
1. A instrumèntalidade do conceito de valor mobiliário e o mercado financeiro

O conceito de valor mobiliário no direito brasileiro, à semelhança de outros ordenamentos jurídicos, tem a finalidade de delimitar um âmbito material específico para o exercício da regulação estatal sobre a economia, sendo, por isso, instrumental.1 Esse âmbito compreende o mercado de capitais e o mercado de derivativos, onde se verificam, respectivamente, a oferta pú-

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blica de investimentos e a transferência de riscos de variação de preços entre agentes económicos.

O mercado de capitais, também conhecido como mercado de valores mobiliários, é o segmento do mercado financeiro em que as empresas realizam a captação de recursos junto ao público mediante a utilização de instrumentos denominados valores mobiliários. O mercado de derivativos, ou mercado futuro, por sua vez, tem por objetivo propiciar hedge, ou seja, proteção contra a variação de preços de mercadorias (commo-dities) ou de ativos financeiros, também por meio dos valores mobiliários.

Constata-se, assim, que esses mercados têm em comum o fato de suas ativida-des desenvolverem-se em torno do mesmo instituto: os valores mobiliários. Não só em tais mercados se negociam valores mobiliários, como somente neles é que essa negociação, quando pública, pode ocorrer. Disso decorre que o conceito de valor mobiliário estabelece os limites dos mercados de capitais e de derivativos, já que somente neles são negociados publicamente os instrumentos que se incluem nesse conceito. Assim, sempre que o Estado desejar intervir nesses mercados, fá-lo-á por meio dos valores mobiliários, ora disciplinando sua emissão, distribuição e demais aspectos de sua existência, ora alterando o conteúdo de seu conceito. Daí a sua instrumentalidade.

2. As tutelas administrativa e judicial do mercado de capitais

Por acarretarem riscos à poupança pública e à estabilidade da economia, os mercados de capitais e de derivativos estão submetidos a controle estatal nas esferas administrativa e judicial.

No âmbito administrativo, seus participantes estão sujeitos a uma disciplina legal específica e aos poderes regulamentar e de polícia de uma entidade administrativa criada especialmente para os supervisionar: a Comissão de Valores Mobiliários (CVM).2 No exercício de seu poder regulamentar, a CVM edita atos administrativos com o objetivo de normatizar as ativi-dades desenvolvidas, determinando, entre outras medidas, o registro prévio das emissões públicas de valores mobiliários e o fornecimento de informações completas a seu respeito. Já no exercício do poder de polícia, fiscaliza o adequado cumprimento das leis e dos regulamentos por ela expedidos, podendo infligir sanções pelo seu des-cumprimento.

Na esfera judicial, os interesses tran-sindividuais dos participantes do mercado são protegidos por meio da ação coletiva calcada nas Leis ns. 7.347, de 25 de julho de 1985 (Lei da Ação Civil Pública), 7.913, de 7 de dezembro de 1989, e 8.078, de 12 de setembro de 1990 (Código de Defesa do Consumidor).3 Essas leis compõem o que se pode chamar de sistema brasileiro de proteção aos interesses transindividuais no mercado de capitais, conferindo legitimidade ao Ministério Público, às entidades administrativas e às associações representativas dos investidores para pleitear em juízo ressarcimento pelos danos a eles causados.

A abordagem da tutela estatal do mercado de capitais coloca em evidência a instrumentalidade do conceito de valor mobiliário. Isso porque, no que respeita à tutela administrativa, a ação interventiva da CVM faz-se mediante a disciplina dos valores mobiliários e das atividades a eles relacionadas - emissão, distribuição, escrituração, custódia etc. E, no que tange à tutela judicial, ela somente abrange os titulares de valores mobiliários e os investidores nesses mesmos instrumentos (Lei n. 7.913/ 1989, art. F, caput). A ação estatal prote-tora gira em torno, pois, do conceito de valor mobiliário.

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3. Importância da identificação precisa do conceito de valor mobiliário

A pesquisa do conceito preciso de valor mobiliário é importante, em primeiro lugar, pela sua presença em vários segmentos do direito pátrio, sem que os diversos estatutos legais que o contemplam forneçam uma explicitação satisfatória de seu conteúdo, isso quando fornecem alguma.

A presença do conceito de valor mobiliário em diversos ramos do direito é recente. Logo que surgiu no ordenamento jurídico brasileiro, foi objeto de estudo exclusivo do Direito Comercial, haja vista sua existência estar ligada à prática mercantil e a institutos tradicionalmente estudados por esse ramo do direito, como as sociedades e os títulos de crédito. Com o passar do tempo e o aumento da importância dos valores mobiliários para a economia como um todo, os reflexos causados em outras áreas da vida social pela sua utilização passaram a atrair a atenção do legislador. Dessa forma, o conceito de valor mobiliário difundiu-se paulatinamente para outros ramos do direito, à medida que passou a ser contemplado em diplomas legais de natureza não-comercial. Atualmente, interessa, por exemplo, ao Direito Tributário, na medida em que é utilizado para delimitar a competência tributária da União (Constituição Federal, art. 153, V);4 ao Direito Penal, por constituir elemento descritivo de vários tipos penais de injusto, como os contidos nos arts. 2a, 7â e 9* da Lei n. 7.492/1986;5 e ao Direito Civil, no que se relaciona ao bem de família convencional (Código Civil, art. 1.712).6

No âmbito do Direito Comercial - que é o contemplado pelo presente trabalho - a formulação acurada do conceito de valor mobiliário é importante para delimitar precisamente o âmbito material de atuação da CVM, a fim de se atingir uma atuação mais eficiente do Poder Público na regulação da economia. Como efeito imediato, reduzir-se-á a possibilidade de conflitos de competência dessa autarquia com outras entidades ou órgãos responsáveis pela disciplina dos demais segmentos do mercado financeiro, como o Banco Central, por exemplo.

Além disso, haja vista que a proteção judicial coletiva se destina aos interesses dos titulares de valores mobiliários e aos investidores no mercado, a identificação dos instrumentos que se enquadram naquele conceito e dos limites do mercado de valores mobiliários contribuirá para a determinação do alcance do sistema brasileiro de proteção aos interesses transindivi-duais no mercado de capitais, de forma a estabelecer os pressupostos autorizadores da atuação do Ministério Público e dos demais legitimados para a propositura da ação civil pública em defesa dos investidores sujeitos a atos lesivos.7

II - Valores mobiliários no Direito Comparado
1. Os sistemas de conceituação e sua influência sobre o direito brasileiro

O estudo da disciplina dos valores mobiliários no direito comparado revela a existência de dois grupos de sistemas dis-

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tintos: de um lado estão os sistemas em que se confere ao instituto um conceito restrito, baseado na forma dos instrumentos considerados; de outro lado estão os ordenamentos que atribuem uma acepção abrangente aos mesmos instrumentos, baseada na sua função económica8. O primeiro grupo possui seus expoentes no direito europeu e o segundo é característico do direito norte-americano.

A construção do conceito de valor mobiliário no direito brasileiro recebeu a influência de ambos os sistemas. Em sua origem, predominava a influência europeia. A própria expressão valor mobiliário originou-se do termo francês valeur mobi-lière,9 sendo que, até a edição da Medida Provisória n. 1.637/1998, o conceito expresso por aquele termo era...

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