O Direito Auto-Sodomizado Pela Sua Póropia Racionalidade

AutorBruno Garrote Marques
CargoGraduando do curso de Direito da Universidade de Brasília.
O agir e o produzir humano
  1. É interessante iniciar o presente trabalho com uma abrangente análise da maneira humana de agir e de produzir conhecimento. Isto servirá como um aperitivo para o conseguinte desenvolvimento do artigo.

    Começar-se-á, portanto, com os seguintes fragmentos de Heráclito1: “Os asnos preferem palha a ouro”2 e “Pois ouro os que procuram cavam muita terra e o encontram pouco”.3 O que seria esse “ouro” de que trata Heráclito? Será que tal afirmação foi proferida para pensarmos os diversos tipos de “ouros” existentes e falarmos sobre o nosso e de como o buscamos?

    Pressupondo que todos estão procurando algum “ouro”, alguém poderia orientar para que se evite trazer terra e capim para o campo sacro da produção científica no escopo de impedir que essas “sujeiras” causem uma mácula. Porém, o critério para se definir o que seria essa “sujeira” pode ser bastante subjetivo, o que tornaria difícil determinar o limite dessa orientação.

    Pensando mais, poder-se-ia dizer o critério para se descobrir o que é essa mácula é demasiado reto, ou seja, o rectum, o directum e a idéia de reta ratio guiaria a produção de textos. Ou seja, dando ouvidos a algumas vozes que relutam em definhar há o risco de uma regressão a uma linha de produção de conhecimento limitada pela “razão”. E, isto, restringiria o pensamento e a criação de textos interessantes.

    Logo em seguida, essas vozes poderiam dizer para não se fazer um festival a Dionísio. Por quê? Este deus do vinho, da integração e da desconstrução de toda a arrogância é sempre bem-vindo e necessário em qualquer discussão. A concha apolínea que criamos em torno de nossos discursos normalmente nos enclausura dentro dessa nossa própria proteção. A linguagem que usamos, o tipo de pensamento, o modo de se raciocinar, tudo isso nos prende a uma forma, a algo definido, a algo individual, ou seja, a tentativa de sermos Apolo, o deus da beleza, em toda a sua plenitude nos faz ser fechados em nossa moral e conceitos porque admiramos tal estátua bela e com ela nos satisfazemos.

    Ao contrário de Apolo – mas não de forma excludente – é Dionísio. Um festival a este último deus poderia ajudar a dilacerar o eu-apolíneo humano para que, desse modo, se possa melhor discutir. Não pensem que o intuito é somente a destruição da ordem e das formas bem definidas. O escopo é a construção e desconstrução constante das coisas, ascensão e declínio, produção de conhecimento e riso sarcástico de si mesmo – e, para tal ludismo, é necessário um espírito leve que possa bailar e, não, um corpo “pesado” demais para rir de si próprio e de suas contradições.

  2. Olhando para o homem em sua forma – ou “desforma”, para os que preferirem –poder-se-ia afirmar que os prazeres humanos são todos decorrentes do corpo. É pressuposto, aqui, um conceito relativamente simples de corpo: a matéria de um individuo, pela qual este sente.

    Nós, seres humanos, somos entes absorvedores de valores, pelo menos inicialmente, porque nascemos inseridos em um mundo imbuído de significados. Além disso, crendo que a existência precede a essência, e em um mundo que já existe antes da existência humana, não é possível crer que haja algo no corpo humano que seja a-histórico.

    Dito isto, fica fácil perceber a dificuldade – senão, a impossibilidade – de se diferenciar os valores humanos que causam influências dos que sofrem influência. Ou seja, quando alguém fala sobre os “seus valores” ou “suas idéias”, normalmente essa pessoa esquece que esses valores existem porque ela foi criada dentro de condições históricas especificas.

    Além disso, às ações e aos valores externalizados por alguém são imputados – e o termo é justamente este porque não cremos na existência de uma “essência verdadeira” dos fatos, ações, coisas etc – significados que, talvez, não foram quistos por aquela pessoa. Portanto, o sentido “original” – termo usado pra designar precariamente a intenção do agente/autor – de uma ação ou de um texto pode ser perdido e, inclusive, pode significar bem menos do que a valoração dada pelos outros seres humanos impositores de valores.

  3. Várias coisas são aparentemente “mecânicas” ou simplesmente garantem a sobrevivência, v.g. um ato de alimentação. Porém, tais atos ganham diferentes significados e podem proporcionar mais prazer porque se imputa sentido e sentimento neles. Isso quer dizer que o “espírito” pode pincelar o mundo e os atos de maneira a proporcionar mais prazer ao homem? Não. Portanto, não crendo no “espírito”, e pressupondo que tudo o que há seja matéria, como explicar essa valoração ligada ao aumento de prazer?

    O que ocorre é que as circunstâncias nas quais nascem os homens imprimem no cérebro/corpo valores. Estes, combinados com uma fisiologia hábil para perceber o gosto, cheiro, tato, som e imagem da comida, por exemplo, faz a alimentação ser prazerosa, ou seja, o ato não é mais prazeroso porque o “espírito” se delicia com a comida, mas porque o cérebro “gravou” – em algum lugar físico dentro dele – que comer algo de acordo com certos ritos – cozinhar a carne, cheirá-la antes de leva-la a boca, beber um vinho específico como acompanhante, escutar uma música apropriada etc – é mais agradável do que se alimentar de outra maneira – pegar um facão, dilacerar o corpo de um boi pastando, pegar a carne e comê-la. E, por isso, os homens são materialmente – e não, espiritualmente – influenciados pela química do cérebro a ter mais prazer quando se deliciam com uma refeição seguindo um rito específico impregnado de valores.

  4. Voltando à “questão do ouro”, é bom enfatizar que ele é algo necessário para a construção, mas, como já dito, não se deve perder a si mesmo em seus próprios “ouros” e em suas próprias construções. Importante, por conseguinte, sempre auscultar regularmente as edificações apolíneas – ídolos, deuses, ideais, “certezas”, convicções etc – com um martelo, que fará as vezes de um diapasão, para se saber o momento – se necessário for – de usar o próprio martelo, outrora diapasão, para destruí-las quando se perceber que elas passaram a ser mais importantes, mais altas e mais belas do que aqueles que as criaram.

  5. “O contrário é convergente e dos divergentes nasce a mais bela harmonia, e tudo segundo a discórdia.”4 Este fragmento de Heráclito demonstra um ponto de vista que se tenta deixar claro neste artigo: a existência não se exaure no adjetivo “apolíneo” – algo com forma, conceito fechado e definido em uma individualidade – e nem no adjetivo “dionisíaco” – algo com força para destruir a forma, algo aberto e indefinido como uma orgia unificadora. Ou seja, o ser humano existe nesta bela tensão gerada pela guerra entre esses dois conceitos opostos. Em outros fragmentos é ilustrado novamente o sentimento presente neste artigo: “Não compreendem como o divergente consigo mesmo concorda; harmonia de tensões contrárias, como de arco e lira.”5 e “Conjunções o todo e o não todo, o convergente e o divergente, o consoante e o dissoante (sic), e de todas coisas um e de um todas as coisas”6.

  6. A indagação feita, no começo deste artigo, sobre qual é o “ouro” de cada um e como cada o busca é interessante. Mas, há outras que se seguem: O ser humano já achou o seu “ouro”? Senão, o que fazem durante essa busca? Contentam-se com o “níquel”? De que maneiras decidem e agem enquanto não acham o seu “ouro”? Vão decidindo de forma “irresponsável”?

    Os seres humanos, em geral, acabam por convencerem a si próprios que a sua moral já é boa o bastante para tomarem as suas decisões. Ou seja, continuam agindo com o “níquel” que possuem, porém também continuam com a idéia de que essa moral poderá evoluir em direção a um “ouro” com o passar do tempo. Portanto, os homens vislumbram esse “horizonte moral” e, caminhando rumo a essa sabedoria moral, vão agindo enquanto isso.

    Parece, portanto, que é esse autoconvencimento humano, de que se está evoluindo a algum lugar, permite justificar a existência e, por conseguinte, permite uma boa noite de sono sem perturbações de possíveis crises existenciais.

    Esta primeira parte do artigo – que servirá como um guia – será concluída dizendo que não se espera debates entre os leitores acerca dos seus “ouros” ou acerca de suas “morais”. Além do mais, quem hoje em dia quer conversar sobre aquela coisa enfadonha chamada “filosofia”? Bem, não debatam, então. Ao invés disso, conversem sobre a vida, sobre como vivê-la, sobre o agir humano e sobre a produção de algum tipo de conhecimento.

Determinismo e Liberdade
  1. Os deuses Apolo e Dionísio estão em conflito constante na vida humana e é intrigante perceber como o agir humano está envolvido nesta tensão entre construção e desconstrução – entre forma e deformidade. A criação e a destruição constante de idéias, de valores e de morais diferentes são processos importantes e infindáveis na formação da personalidade humana.

    Pensando nesse ser humano que precisa agir – enquanto existe uma guerra entre os diversos valores dentro dele – é importante se analisar a questão da exteriorização da vontade humana através das suas ações. É...

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