Autonomia e gradação da curatela à luz das funções psíquicas
Autor | Fernanda Tartuce e Simone Tassinari |
Ocupação do Autor | Doutora e Mestra em Processo Civil pela USP/Doutora e Mestra em Direito pela PUCRS |
Páginas | 245-260 |
AUTONOMIA E GRADAÇÃO DA CURATELA
À LUZ DAS FUNÇÕES PSÍQUICAS
Fernanda Tartuce
Doutora e Mestra em Processo Civil pela USP. Professora no programa de Mestrado
e Doutorado da FADISP (Faculdade Autônoma de Direito de São Paulo). Professora
e Coordenadora de Processo Civil na EPD (Escola Paulista de Direito). Advogada,
mediadora e autora de publicações jurídicas.
Simone Tassinari
Doutora e Mestra em Direito pela PUCRS. Professora no programa de Mestrado e
Doutorado da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Advogada, Mediadora,
autora de livros e publicações jurídicas.
Sumário: 1. Relevância do tema. 2. A proteção da saúde das pessoas com deciência como
responsabilidade de todos. 3. Funções psíquicas e autonomia para declaração: a necessidade de
graduar a curatela. 3.1 Da passagem da teoria da vontade à teoria da declaração e necessidade
de autonomia privada para tanto. 3.2 As funções psíquicas, as questões de saúde fundamentais
e os impedimentos de manifestação de vontade a partir de cada limitação individual. 4. Notas
conclusivas. 5. Referências.
1. RELEVÂNCIA DO TEMA
Ao refletirmos sobre os temas “deficiência” e “desafios para uma sociedade inclu-
siva”, a situação da curatela ganha destaque.
A mudança legislativa operada pela Lei Brasileira de Inclusão (Lei 13.146/2015)
em dispositivos consagrados sobre capacidade de fato no Código Civil brasileiro deixou
algumas lacunas. O espaço mais significativo a ser preenchido por doutrina e jurispru-
dência é o que diz respeito à dicotomia entre realidade e lei.
Embora a disciplina legal determine que todas as pessoas1, com deficiência ou não,
têm capacidade e que as que não podem exprimir vontade são apenas relativamente in-
capazes para prática de atos na vida civil, não é esta a realidade da vida: em situações de
coma, doenças mentais graves e deficiências intelectuais há impossibilidade de exprimir
vontade, e por mais que se busque artificializar desejando relativa capacidade, por vezes
esta não se configura.
Em certos momentos pode ser viável reconhecer que não há vontade qualquer para
a prática de alguns atos, mas suficiência de vontade para a prática de outros. Há uma
variação muito significativa nos desafios de mentes e interações humanas. Uma coisa se
1. Salvo os menores de 16 anos.
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sabe: as ciências da saúde apontam áreas em que os desafios se impõem com mais força.
Neste sentido, a proposta de: a) fazer com que a norma jurídica que pretendeu incluir
as pessoas com deficiência não seja ela mesma responsável por colocá-las em situação
de vulnerabilidade; b) superar uma correlação anterior que se fazia entre “interdição
por absoluta incapacidade a ser exercida por representação de curador” e “interdição
por incapacidade relativa a ser exercida por assistência de curador”; c) reconhecer que
há possibilidades de funções psíquicas significativas a impedir absolutamente a mani-
festação de vontade em certa área específica, gerando inexistência, ou nulidade absoluta
do ato, restando hígida a possibilidade de manifestação em outro campo, devendo o ato/
negócio ser considerado perfeito.
É extremamente relevante reconhecer que o paradigma contemporâneo dos negó-
cios jurídicos se coloca a partir da declaração, sendo extremamente influenciado pelas
posições científicas desenvolvidas por Emílio Betti. Em suma, superou-se a noção de
uma manifestação de vontade psíquica no sentido de constituir o ato ou negócio jurídi-
co. Em um primeiro momento pode parecer que pessoas com impedimento de vontade,
poderiam então, declarar perante a sociedade, e a avaliação sobre a perfeição do ato de-
veria ser avaliada posteriormente. Entretanto, relendo a teoria de Betti, verifica-se que a
autonomia pessoal é pressuposto para a declaração. Então resta assentada, inclusive na
teoria de Betti, que se não há suficiência de autodeterminação, não há possibilidade de
conceber uma declaração juridicamente existente.
Com este reconhecimento, faz-se necessário revisar o instituto da curatela, mo-
dulando, no mesmo processo, capacidade plena, incapacidade absoluta e incapacidade
relativa para atos específicos a fim de viabilizar que se reconheça a possibilidade de, a
partir da pessoa concreta, decretar a curatela a partir de suas necessidades e vulnerabili-
dades. Entende-se, portanto, que o estudo das funções psíquicas oferece condições de
compreender as dimensões da vida humana em sua complexidade, podendo-se perceber
que para gerar efetividade à tutela legal há de se reconhecer a vida concreta, em suas
dimensões.
2. A PROTEÇÃO DA SAÚDE DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA COMO
RESPONSABILIDADE DE TODOS
A saúde compreende “o estado de completo bem-estar físico, mental e social”, não se
limitando à mera ausência de doenças2. Por constituir premissa essencial para a atuação
humana, a saúde conta com importantes previsões no ordenamento brasileiro tanto na
seara constitucional3 como na infraconstitucional.
2. A definição consta no preâmbulo da Constituição da Organização Mundial de Saúde, que afirma na sequência:
“Gozar do melhor estado de saúde que é possível atingir constitui um dos direitos fundamentais de todo o ser
humano, sem distinção de raça, de religião, de credo político, de condição econômica ou social. Disponível em:
http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/OMS-Organiza%C3%A7%C3%A3o-Mundial-da-Sa%C3%BAde/
constituicao-da-organizacao-mundial-da-saude-omswho.html. Acesso em: 25 mar. 2020.
3. Nos termos do art. 196 da Constituição Federal, “a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante
políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e
igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”. Ao comentar referida previsão, Tércio
Sampaio Ferraz Júnior afirma ser ela reconhecedora da “garantia constitucional de acesso universal e igualitário de
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