Autonomia negocial dos trabalhadores hipersuficientes

AutorJorge Cavalcanti Boucinhas Filho
Páginas125-131

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Ver Nota1

1. Notas introdutórias

Até a reforma de 2017, poucas eram as situações em que a legislação diferenciava os direitos assegurados a trabalhadores de escalão superior, médio ou inferior das empresas. A mais conhecida delas é, seguramente, a do art. 62, II da Consolidação da Leis do Trabalho, que exclui da incidência das regras do capítulo sobre jornada de trabalho “os gerentes, assim considerados os exercentes de cargos de gestão, aos quais se equiparam, para efeito do disposto neste artigo, os diretores e chefes de departamento ou filial”. Também bastante conhecida, embora direcionada para uma única categoria, é a dos “empregados em bancos, casas bancárias e Caixa Econômica Federal”, é a resculpida no art. 224, § 2º da Consolidação das Leis do Trabalho. Segundo ela, os bancários “que exercem funções de direção, gerência, fiscalização, chefia e equivalentes, ou que desempenhem outros cargos de confiança, desde que o valor da gratificação não seja inferior a 1/3 (um terço) do salário do cargo efetivo” não fazem jus à jornada especial de seis horas diárias estabelecida pelo caput do mesmo artigo.

Poucas também eram as situações em que a apresentação de diploma universitário era utilizada para caracterização de algum tipo de contrato de trabalho particular. Digna de menção é a Lei n. 4.950-A, de 22 de abril de 1966, que dispõe sôbre a remuneração de profissionais diplomados em Engenharia, Química, Arquitetura, Agronomia e Veterinária.

Em seu art. 1º, ela evidencia ter sido instituída para fixar: “O salário mínimo dos diplomados pelos cursos regulares superiores mantidos pelas Escolas de Engenharia, de Química, de Arquitetura, de Agronomia e de Veterinária”. O critério para a sua aplicação é, portanto, a diplomação numa dessas áreas de atuação. Essa conclusão é reforçada pela literalidade do seu art. 4º que assim dispõe:

Art. 4º Para os efeitos desta Lei os profissionais citados no art. 1º são classificados em:

  1. diplomados pelos cursos regulares superiores mantidos pelas Escolas de Engenharia, de Química, de Arquitetura, de Agronomia e de Veterinária com curso universitário de 4 (quatro) anos ou mais;

  2. diplomados pelos cursos regulares superiores mantidos pelas Escolas de Engenharia, de Química, de Arquitetura, de Agronomia e de Veterinária com curso universitário de menos de 4 (quatro) anos.

O dispositivo seguinte (art. 5º) estabelece que para os profissionais relacionados na alínea “a” do dispositivo acima transcrito é de 6 (seis) vezes o maior salário mínimo comum vigente no País e para os profissionais da alínea “b” é de 5 (cinco) vezes o maior salário minimo comum vigente no país.

Excetuando-se situações pontuais como as narradas anteriormente, a mesma legislação que regia o contrato de trabalho dos operários mais simples, com menor formação acadêmica, e mais mal remunerados, regia também a relação de emprego daqueles mais titulados e com padrão salarial mais elevado. Qualquer outra diferença de tratamento deverá ser considerada contra legem e, portanto, inadmissível. Essa conclusão é reforçada pela literalidade do art. 3º, parágrafo único, da Consolidação das Leis do Trabalho, segundo quem: “Não haverá distinções relativas à espécie de emprego e à condição de trabalhador, nem entre o trabalho intelectual, técnico e manual”.

A questão vem, há muito, recebendo tratamento distinto em outros países, que asseguram direitos distintos para os que ocupam postos mais elevados na cadeia de comando das empresas.

Na Espanha, os executivos, ou melhor, os altos directivos, ocupam usualmente as funções de diretor geral ou diretor gerente, embora se diga que a denominação dada ao posto tem importância secundária em contraste com as funções efetivamente desempenhadas2. O artigo 1.2 do Decreto de Alta Dirección dispõe que:

Se considera personal de alta dirección a aquellos trabajadores que ejercitan poderes inherentes a la titularidad jurídica de la empresa, y relativos a los objetivos generales de la misma, con autonomía y plena responsabilidad sólo limitadas por los criterios e instrucciones directas emanadas de la persona o de los órganos superiores de gobierno y administración de la entidad que respectivamente ocupe aquella titularidad.

Fala-se também em directivos ordinarios o técnicos para designar aqueles que ocupam postos elevados, recebem remuneração expressivas, tem sob seu comando inúmeros empregados e ostentam uma posição empresarial muito qualificada, embora em nível imediatamente inferior ao dos chamados Altos directivos3.

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Na Espanha, a regulação do chamado contrato de trabalho de alta dirección4 faz referência apenas em pontos muito específicos ao Estatuto de los Trabajadores, a norma reguladora básica dos contratos de trabalho ordinários e especiais. Diz-se mesmo que o “Estatuto no puede considerarse como norma general supletoria del Decreto de Alta Dirección”5. Diversa é a situação dos contratos de trabalho dos directivos ordinarios o técnicos que se sujeitam a um regime jurídico especial, aqueles são titulares de uma relação laboral ordinária, apesar da importância de suas funções6.

Não é tão simples, contudo, distinguir verdadeiros contratos de “altos directivos” e relações de trabalho comum que se pretende disfarçar como de alta administração para fins de redução de direitos, como aviso-prévio de apenas 7 dias por ano trabalhado em caso de dispensa sem justa causa, em comparação com 33 que receberiam por ser um empregado de escalão inferior.7

A solução passa, necessariamente, pelo estudo da jurisprudência trabalhista em muitas ocasiões. O Supremo Tribunal Espanhol indicou que os poderes conferidos, além de afetar áreas funcionais de importância incontestável para a vida da empresa, deveriam ser normalmente referidos à atividade total dos mesmos ou aos aspectos transcendentais de seus objetivos, com total dimensão territorial, ou se referem a zonas nucleares ou locais de trabalho para sua atividade.8

A reforma trabalhista de 2017 introduziu um tratamento particular para esta questão. Não criou direitos distintos para os trabalhadores doravante denominados hipersuficientes, nem os excluiu da proteção trabalhista. Reduziu, contudo, a tutela estatal incidente sobre eles dando-lhes significativa autonomia para negociar determinados direitos e obrigações.

O presente estudo dedicar-se-á a analisar as novas regras e as hipóteses em que será efetivamente possível negociação individual entre empregado e empregador com tamanha amplitude e efeito.

2. Conceito de hipersuficiente

Segundo Marlus Augusto Melek: “O conceito de ‘hiperssuficiente’ é conceito criado por traços políticos e não tecnicamente jurídico”. Essa assertiva, contudo, não resiste a uma análise mais aprofundada na doutrina do direito do trabalho e do direito econômico, onde há muito se discute os conceitos “hipossuficiente” e “hipersuficiente”.

Em obra publicada em 1977, o professor Emérito da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, vinculada à Universidade de São Paulo, já tratava da figura dos hipersuficientes como uma terceira categoria, ao lado dos autossuficientes e dos hipossuficientes. Ao se referir ao verbete, dizia:

Estes são autossuficientes em posição econômica superior. Os autossuficientes estão, em relação aos hipersuficientes numa situação de hipossuficiência relativa, pois podem ser eliminados da concorrência pelo hipersuficiente.

O direito social (restrito ou direito social tout court) só cogita da hipossuficiência ou debilidade econômica absoluta (...). A debili-dade econômica relativa, i.e., o fato de ser apenas um ser economicamente mais fraco do que outro, é objeto não do direito social, mas do direito econômico, v. g., a posição do pequeno industrial frente ao grande capitalista ou ao grande industrial etc.9

A expressão, como é fácil concluir, era própria não do direito do trabalho, mas do direito econômico. Era utilizada para distinguir empresas relacionadas, com base em seu poderio econômico. Para o direito do trabalho, aquele que colocasse a sua força vital em benefício do interesse de outrem com pessoalidade, não eventualidade, alteridade, onerosidade e subordinação seria, por definição, hipossuficiente. Somente dele cuidava o direito do trabalho. É o que se extrai de outras passagens dos ensinamentos de Cesarino Júnior:

A hipossuficiência absoluta se caracteriza pelo fato de o indivíduo depender do produto de seu trabalho para manter-se e a sua família. Logo, uma vez que o indivíduo possua rendimentos que lhe assegurem essa subsistência independentemente do seu trabalho, cessa a hipossuficiência absoluta, começando a relativa sempre que um comerciante, um industrial, um lavrador, um capitalista, um proprietário, enfim (porque todos os autossuficientes são proprietários), estiverem em situação de dependência em relação a outro proprietário economicamente mais forte do que ele (hipersuficiente).10

Evidenciando que as expressões hipossuficiente, autos-suficiente e hipersuficiente baseiam-se em aspectos econômicos, assim se manifestava Cesarino Júnior:

A tendência do direito moderno de encarar as diver-sas circunstâncias em que os homens se apresentam

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fez sobressair uma diferença fundamental existente entre eles: a econômica.

Do ponto de vista econômico, os homens se dividem em proprietários e não-proprietários, i.e., ricos e pobres.

Os não-proprietários, que só possuem sua força de trabalho, denominamos hipossuficientes. Aos proprietários, de capitais, imóveis, mercadorias, maquinaria, terras, chamamos autossuficiente.11

Dito isto, Cesarino Júnior reforçava a conclusão de que o direito do trabalho cuidava do hipossuficiente, de todo aquele que dependesse de um contrato de...

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