Autonomia privada: a incidência da negociação em espaços de histórica rigidez

AutorDanielle Portugal de Biazi
Páginas81-111
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AUTONOMIA PRIVADA:
A INCIDÊNCIA DA NEGOCIAÇÃO
EM ESPOS DE HISTÓRICA RIGIDEZ
5.1 AUTONOMIA DA VONTADE E AUTONOMIA PRIVADA
Muito se fala no espaço da autonomia dentro da disciplina dos negócios jurí-
dicos, menor, todavia, é o seu contexto na disciplina dos direitos reais. Parte-se da
etimologia, antes de qualquer aprofundamento, pelo que autonomia vem do grego,
com a junção de auto (de si mesmo) com nomos (lei), isto é, aquele que estabelece
a própria lei.
Portanto, a ideia de autonomia ref‌lete um poder de autorregramento, capacidade
de autodeterminação, um espaço outorgado ao sujeito a f‌im de que ele próprio decida
as relações que pretende estabelecer e com quais características pretende que elas se
desenvolvam, isto é, “o poder de modelar por si – e não por imposição externa”.1 A
ideia, cujas origens marcantes remetem à Revolução Francesa, se espalha por todo
o sistema privado.
A autonomia, portanto, reside na liberdade de escolha do cidadão de como
pretende seguir sua vida, enquanto o espaço para seu exercício atinge os direitos
das relações jurídicas constituídas, por exemplo, pela propriedade e pelo contrato2,
situando-se no exercício da regulação individualizada dos interesses. Um espaço
sobre o qual a intervenção estatal não poderia oferecer ingerência.
Nestas circunstâncias, o elemento volitivo ganha tamanha importância que se
equipara à lei. Não por um acaso, a expressão “o contrato faz lei entre as partes”,
decorrente do pacta sunt servanda, era, antes de tudo, um apelo liberal pela segurança
jurídica, pela certeza de que o juiz, como representante do Estado, não mudaria os
termos de um negócio.
É assim que surge a expressão autonomia da vontade, que exprimia um ab-
solutismo da manifestação volitiva no âmbito dos negócios jurídicos e no âmbito
da propriedade, nascida antes mesmo da lei e sustentada no ideal de liberdade, por
1. ROPPO, 2009, p. 128.
2. Todos os ramos do direito privado trabalham a incidência da autonomia em maior ou menor medida,
contudo, esta tese limitar-se-á, ao contexto em que se encontra inserido, portanto, propriedade e contrato.
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PROPRIEDADE: RECONSTRUÇÕES NA ERA DO ACESSO E COMPARTILHAMENTO • DANIELLE PORTUGAL DE BIAZI
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isso vinculado indissociavelmente à economia de mercado. Por esta interpretação,
ao Estado só era dado interferir se fosse na intenção de assegurar a liberdade de
concorrência.3
A teoria da autonomia da vontade decorre, porém, de duas delicadas situações,
absolutamente contrapostas. De um lado, havia a ideia de que sempre predominava
a vontade essencial das partes, ainda que distinta da vontade declarada. De outro
lado, um sistema diverso, “que faz prevalecer a vontade, mesmo f‌ictícia, que se infere
da declaração”.4
Na doutrina, as teorias foram associadas respectivamente a dois países. En-
quanto a teoria da vontade seria nítida na análise francesa, muito em razão do maior
apego a nuances de foro íntimo e exaltação das liberdades individuais, os alemães
foram associados à teoria da declaração, sob o fundamento de que esta exprime maior
segurança jurídica e melhor atenderia aos aspectos sociais5. Esta é a visão mais rasa,
segundo a análise de Antônio Junqueira de Azevedo,6 na medida em que o Código
Civil francês é anterior à própria teoria da vontade. Portanto, seria equivocado
dizer que já se fundava nesta ideologia. Por outro lado, o BGB também não adota
completamente a teoria da declaração, tendo feito concessões à teoria da vontade.
Emilio Betti refutou a vontade como elemento essencial na criação de um ne-
gócio jurídico, sob o argumento de que se trata de fato psicológico e incontrolável,
discurso que f‌ica ainda mais elaborado pelas conclusões de Antônio Junqueira de
Azevedo7 decretando que a vontade não é, de forma alguma, elemento do negócio
jurídico.
O brasileiro aduz que o negócio jurídico existe em razão da declaração de von-
tade, ainda que o elemento volitivo seja aferido posteriormente para f‌ins de validade
e ef‌icácia. Portanto, a autonomia é identif‌icada e faz nascer o negócio jurídico após
a declaração e não apenas pela manifestação volitiva:
A declaração, uma vez feita, desprende-se do iter volitivo; adquire autonomia, como a obra se
solta de seu autor. É da declaração, e não da vontade, que surgem os efeitos. Tanto é assim que,
mesmo quando uma das partes, em um contrato, muda de ideia, persistem os efeitos deste.8
3. ALPA, 1993, p. 324.
4. AZEVEDO, 2002, p. 74.
5. Em contraposição, Antônio Junqueira de Azevedo (2002, p. 81-82): “Seu preceito imediato é o respeito à
palavra dada (pacta sunt servanda) e, aí, como diz Julliot de la Morandière, trata-se de regra moral social.
Todavia, a palavra dada é a palavra expressa e af‌irma: os partidários da vontade interna têm (portanto) que
reconhecer que a expressão da vontade faz um corpo só com a própria vontade. Por outro lado, não é certo
que a tese da declaração da vontade seja mais ‘social’ que a outra. Sob certos pontos de vista, pode ser, por-
que ela evita as pesquisas psicológicas delicadas e dá mais estabilidade ao contrato, já que nos limitamos,
para sua interpretação e seus efeitos, ao que foi declarado. Mas o mesmo não ocorre sob outros pontos de
vista, principalmente do ponto de vista do controle do contrato pelo juiz ou outra autoridade”.
6. AZEVEDO, 2002, p. 77.
7. Idem, p. 84.
8. Idem, p. 85.
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