Autoralien': 'selfies' e o direito autoral

AutorEduardo Lycurgo Leite
Páginas624-636

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Ver Nota1

1. Introdução

Antes de iniciarmos, cabe um alerta, pois não abordaremos no presente texto questões afetas à divulgação de “selfies” sem autorização de seus autores ou em flagrante violação a direitos de personalidade dos indivíduos retratados. O objetivo deste artigo é proceder a uma análise da autoria dos “selfies”.

Renoir, Delacroix, Van Gogh, Picasso, Dali, Tarsila do Amaral, Frida Kahlo, Portinari, Robert Mapplethorpe e tantos outros artistas ao longo da história já se autorretrataram, isto é, fizeram uma representação ou imagem de si próprios.

Na história da arte, o autorretrato ou autorrepresentação é definido como uma exteriorização da imagem, quer por meio da captura da própria imagem, quer por meio de uma representação desta, que o artista faz de si mesmo, independentemente do suporte ou da técnica escolhida.

As constantes inovações fizeram com que dispositivos tecnológicos ficassem cada vez mais acessíveis ao público consumidor em geral e mais fáceis de serem operados. Entre tais equipamentos estão os telefones celulares, que, outrora apenas capazes de fazer e receber ligações, hoje têm múltiplas funções, passando a ser chamados de smartphones (ou telefones inteligentes), cujas câmeras fotográficas passaram a ter a capacidade de gravar vídeos, co-nectar-se com a internet etc.

Esse tsunami de novas tecnologias popularizou o hábito, antes restrito aos artistas, de autorretratar-se. O autorretrato transformou-se. Nas mãos do público em geral, perdeu a arte que lhe era tão peculiar e passou a ser uma ferramenta de disseminação em massa de informações do cotidiano, dos fatos que ocorrem, da vida das pessoas.

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Deixou de ser chamado de autorretrato e passou a ser chamado de “selfie”, o que nada mais é do que um autorretrato do indivíduo que cria a imagem.

Não podemos dizer que os “selfies” sejam uma novidade; somente ficaram mais acessíveis à população como um todo e caíram no gosto popular pela capacidade de conexão dos dispositivos tecnológicos existentes e a possibilidade de anônimos mostrarem-se livremente para o mundo através da internet.

Diante disso, poderíamos dizer que o direito, e em especial o direito autoral, não estranharia a figura dos “selfies”.

Ocorre que, aparentemente, a moda dos “selfies” teria chegado ao mundo animal, e, vez por outra, um autorretrato feito acidentalmente por um animal surge nas mídias sociais ou ganha o noticiário. Isso não teria relevância jurídica se questões envolvendo a criação de “selfies” e dos direitos autorais advindos deles se ativessem ao que ordinariamente sempre foi pensado e codificado como proteção autoral: que o objeto da proteção deve ser sempre a criação intelectual, isto é, a criação humana.

Infelizmente, os homens e as relações humanas não são perfeitos e há quem possa, diante da notoriedade de uma imagem produzida por um ser outro que não humano, pretender reivindicar para si direitos autorais que jamais teria.

A popularização dos autorretratos, principalmente sob a agora denominação dos “selfies”, traz novas discussões para o direito e, provavelmente, fará ressurgir outras que já pareciam estar consolidadas. Contudo, uma coisa permanecerá inalterada: a capacidade de criação da mente humana e, com ela, todos os frutos desta criação, pois o homem é um ser criador2.

Os constantes avanços tecnológicos impõem, não raramente, que os institutos de direito de autor, outrora consagrados e sedimentados, sejam revisitados e moldados de forma a recepcionar tais desenvolvimentos tecnológicos – mormente quando esses avanços tecnológicos redimensionam a vida em sociedade3. O fenômeno dos “selfies” representa não apenas o avanço tecnológico em si, mas também a mudança sociocultural por ele provocada.

Do “selfie” de Barack Obama, David Cameron e Helle Thorning-Schmidt4 ou de George W. Bush e Bono, ambos durante o funeral de Nelson Mandela, ao “selfie” daquele que mora no imóvel ao lado, a prática do autorretrato popularizou-se e inseriu-se nas mais diferentes sociedades e estruturas sociais, podendo levar-nos a rediscutir institutos jurídicos.

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Plínio Cabral, certa feita, afirmou que “o destino do Direito Autoral é superar contradições, sem, contudo, eliminá-las”5, afirmação essa que se complementa pelo ensinamento de Pamela Samuelson no sentido de que a probabilidade de a norma alcançar seus objetivos pretendidos aumenta quando está calcada no entendimento do fenômeno que irá regular6.

2. Cabo de guerra

Assim como as constantes inovações tecnológicas não tardam a produzir reflexos nas sociedades em que se inserem, a propagação da onda de “selfies” também não tardou a reverberar sobre a exploração de obras e, por conseguinte, a provocar discussões na seara autoral.

Uma dessas discussões envolve um “selfie” feito por uma macaca nigra utilizando-se do equipamento do fotógrafo Britânico David Slater, por ocasião de uma viagem feita à Indonésia no ano de 2011.

Enquanto David Slater fotografava um grupo de macacos nigra, uma fêmea aproximou-se para investigar os equipamentos, “sequestrou” uma das câmeras fotográficas e passou a tirar centenas de fotografias, muitas das quais estavam desfocadas ou apenas retratavam o chão. Algumas dessas fotografias, todavia, revelavam imagens fantásticas, incluindo-se aí um “selfie” feito por uma fêmea sorridente, fotografia essa que estampou as manchetes de inúmeros noticiários mundo afora.

Essa fotografia criou um verdadeiro cabo de guerra entre o fotógrafo David Slater e a Wikimedia Commons, pois o primeiro sustentava ser o titular dos direitos autorais sobre todas as fotografias tiradas por ocasião de sua viagem para a Indonésia, incluindo-se aí as fotografias tiradas pelo primata que pegara a sua câmera e fotografara não só a si mesmo mas também inúmeras outras coisas ao seu redor por ter achado interessante o barulho que a máquina fazia. Por sua vez a empresa Wikimedia Commons afirmou que a distribuição gratuita das imagens (fotografias) tiradas pelo símio não violava quaisquer direitos autorais de David Slater, porquanto ele não era o titular de direitos autorais sobre as fotos, uma vez que ele não as havia tirado.

Essa guerra levou o Escritório Norte-Americano de Direitos a esclarecer publicamente que não registraria obras criadas pela natureza, animais ou plantas, ou aquelas supostamente criadas por seres divinos ou sobrenaturais, pois apenas as obras que preencham o requisito de autoria humana é que

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podem ser protegidas por direitos autorais e, portanto, podem ser registradas. A obra intelectual protegida sob a égide dos direitos autorais é aquela que se revela em uma obra original de autoria, isto é, aquela que provém da criação de um ser humano, sendo que os direitos autorais visam proteger os frutos do trabalho intelectual, o qual é encontrado no poder criativo da mente7, e é limitada às concepções originais intelectuais do autor, razão pela qual não é possível assegurar proteção por direitos autorais para obras que não tenham sido criadas por um ser humano8.

Além disso, o Escritório de Direitos Autorais reafirmou que obras realizadas por máquinas ou simplesmente processos mecânicos que operem de modo aleatório ou automático, sem qualquer interferência ou intervenção criativa por parte de um autor humano, também não são protegidas sob a égide dos direitos autorais.

A necessidade sentida pelo Escritório Norte-Americano de Direitos Autorais em reafirmar as bases da autoria das obras intelectuais e da proteção autoral a fim de repelir o “ataque alienígena aos direitos autorais” revela que as bases principiológicas sobre as quais tal ramo do direito se fundamenta são flexíveis o suficiente para atravessar o tempo e ajustar-se às realidades e demandas propostas pelas novas tecnologias.

3. No planeta dos macacos

Monteiro Lobato, autor de tantas estórias infantis, em meados do século passado9, já escrevia sobre o quanto se desejava que a humanidade pudesse evoluir e, um dia, reinventar o que a natureza criara:

– Mas que absurdo Emília, reformar a natureza! Quem somos nós para corrigir qualquer coisa do que existe? E quando reformamos qualquer coisa, aparecem logo muitas consequências que não previmos. A obra da natureza é muito sábia, não pode sofrer reformas de pobres criaturas como nós. Tudo quanto existe levou milhões de anos a formar-se, a adaptar-se; e se está no ponto em que está, existem mil razões para isso.
– Não acho! Contestou Emília cruzando os braços. A obra da natureza está tão cheia de ‘bissurdos’ como a obra dos homens. A natureza vive experimentando e errando. Dá cem pés à centopeia e nem um para as minhocas – por que tanta injustiça? Faz um pêssego tão bonito e deixa que as moscas ponham

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ovos lá dentro e dos ovos saiam bichos que apodrecem a linda carne dos pêssegos – não é uma judiação? [...] Quanto mais observo as coisas mais acho tudo torto e errado.

O diálogo acima...

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