Estado Autoritário e Atrofia da Esfera Pública

AutorRoberto Basilone Leite
Ocupação do AutorJuiz do Trabalho em Santa Catarina, Mestre e Doutor em Filosofia e Teoria do Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina e Vice-Diretor da Escola Judicial do Tribunal Regional do Trabalho de Santa Catarina
Páginas73-145

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No capítulo anterior estipulamos a democracia deliberativa como o modelo normativo a ser adotado como marco teórico para a análise do Estado brasileiro e, mais especificamente, de seu sistema judicial. No presente capítulo, procuraremos demonstrar, considerando esse marco teórico, que a sociedade brasileira não conheceu a democracia até 1988, ano em que a nova constituição desencadeou a primeira experiência de transição democrática da história do país e, portanto, um processo de democratização – não de redemocratização, como se costuma dizer.1

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Com base em que argumentos se pode afirmar que não houve democracia no Brasil até 1988? Para responder a tal indagação, devemos recorrer aos dois conceitos que balizam a questão: democracia e autoritarismo. Como visto, compreendemos a democracia, a partir do paradigma deliberativo, como o modelo normativo de mecanismo de legitimação do exercício do poder político que se fundamenta na deliberação pública realizada, de modo permanente, através de um processo comunicativo institucionalizado e regido por um código jurídico próprio que garante a participação dos membros da sociedade no processo de produção, interpretação e execução das normas estatais. Assim, podemos qualificar como democrático o Estado cujo processo político do qual derivam as decisões normativas públicas atenda a certas condições de validade, tais como a inclusividade e publicidade do processo,2 a não coerção interna e externa,3 a exigência de fundamentação racional argumentada das decisões e o respeito aos direitos fundamentais.4 Convém ressaltar que a não coerção interna diz respeito à exigência de que os membros da sociedade estejam em situação de razoável igualdade no debate, suficiente para assegurar a cada um as mesmas chances de fazer com que seus argumentos, críticas e propostas sejam ouvidos e considerados, ao passo que a não coerção externa implica que os debatedores devem estar sujeitos apenas aos pressupostos de comunicação e às normas do procedimento argumentativo.

Com o intuito de justitificar a opção autoritarista, poderia alguém levantar a seguinte dúvida: poderia ter havido, sequer em tese, condições empíricas de funcionamento de uma democracia deliberativa nos diversos momentos da história política brasileira, considerando as condições reais que a caracterizaram? Essa questão, no entanto, estaria posta em termos inapropriados, pois tenta forçar uma assertiva teórica com base em meras circunstâncias fáticas, em afronta ao princípio kelseniano segundo a qual de fatos não se extraem necessariamente normas. Por sinal, se quiséssemos responder a essa indagação, teríamos de reconhecer que a democracia deliberativa em tese poderia ter existido no Brasil antes de 1988; a circunstância de que as condições históricas impediam a instalação de um modo democrático deliberativo de exercício do poder político e de integração social não conduz à conclusão de que a democracia deliberativa não poderia em tese ter existido no Brasil Monárquico, na Primeira República ou na Era Vargas. Na verdade, a pergunta correta tem de ser formulada de modo direto: em face das respectivas condições históricas, houve ou não houve democracia em cada momento da evolução política brasileira?

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De fato, a democracia deliberativa consiste não apenas em um modelo de exercício do poder político mas em um modo de organização da sociedade com base em mecanismos deliberativos. Basta lembrar que esse modo de organização social pode ser identificado já nas cidades-Estado gregas. Há mais de dois mil anos, Aristóteles, em ??????? (Politikè, A política, 325 a.C.), já se referia ao poder incumbido da decisão política como o “poder deliberativo”, afirmando que “Estas deliberações são necessariamente da alçada de todos os cidadãos, ou então são todas confiadas a alguns funcionários, quer a um só, quer a vários, quer ainda umas a alguns, ou algumas a todos, ou algumas a alguns. Quando todos são admitidos na deliberação, sobre qualquer matéria, há democracia; o povo ostenta a igualdade em tudo. Mas todos podem participar das deliberações de várias maneiras”.5

A democracia ateniense “não era composta de representantes dos eleitores, como nas democracias posteriores, mas do eleitorado inteiro – como, de fato, também ocorria no Judiciário. Uma eloquente evidência do espírito público de Atenas está no fato de que os seus cidadãos, aos milhares, regularmente sacrificavam seus rendimentos e lazer para sentar-se em bancos de pedra, muitas vezes sob calor exaustivo, às vezes sujeitos ao vento e à chuva, para ouvir os debates parlamentares e as ações judiciais. Isso parecia a eles mera questão de sensatez: ou eles se autogovernavam ou alguém iria governá-los. Para aqueles que faltassem à assembleia sem uma boa justificativa, eles tinham um termo: idiotes, que persiste no uso ocidental como “idiota”. O grego abordava as questões públicas como se fossem questões pessoais”.6

A constituição do Estado democrático compreende um sistema de normas que regula os procedimentos políticos por meio dos quais, por um lado, os cidadãos se investem do direito de autodeterminação, exercitando sua autonomia política no sentido de buscar cooperativamente a concretização do projeto destinado à efetivação de condições de vida justas,7 mas, por outro lado, se garante a proteção do sistema de direitos e liberdades fundamentais que representa a esfera da autonomia privada do sujeito.8 Por um lado, a autonomia política se implementa através do processo comunicativo; por outro lado, a autonomia privada é garantida com base em um sistema de direitos tendencialmente universais, acoplado a uma condição procedimental que exclui a possibilidade de deliberação acerca desses direitos. Note-se que a compreensão desse sistema particular de direitos intangíveis só pode ser reconstruída a partir dos diversos modelos de constituições históricas, e pela via do processo comunicativo, haja vista que não existe no mundo moderno um sistema de direitos natural, puro e metapolítico.

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Isso nos reconduz à necessidade de recorrer ao processo democrático e a uma espécie de lógica circular em função da qual o processo comunicativo assume a incumbência de assegurar equitativamente a autonomia privada e a autonomia pública mediante instrumentos capazes de permitir que seja operacionalizada a tensão permanente entre a facticidade da positividade coercitiva do direito e a validade de sua legitimidade, em um contexto de co-penetração entre o princípio do discurso e a forma jurídica. Conclui-se, portanto, que o princípio da democracia deliberativa exige do sistema constitucional que seja capaz de conciliar os dois paradigmas do direito democrático moderno:9 de um lado, o paradigma liberal do direito formal burguês, vinculado à autonomia privada que assegura aos indivíduos o direito de tentar realizar seus projetos pessoais de vida por meio de uma igualdade legal na distribuição de direitos – que pode não coincidir com a igualdade material –; e de outro lado, o paradigma republicano do direito ao bem-estar social, sustentado na autonomia política que deve proporcionar à comunidade instrumentos capazes de assegurar o bem-estar social por meio de uma igualdade fática que compense as desigualdades materiais.

O debate público político se desenvolve no interior de um espaço no qual convivem três categorias de participantes: os organizadores, que são os “atores que ocupam uma esfera pública já constituída”10 e têm o poder de utilizar os potenciais de sanção estatal; os oradores, que correspondem aos “atores que surgem do público”11 e organizam campanhas em favor de seus interesses; e os ouvintes ou espectadores,12 que, nessa condição, acompanham o processo de decisão política, identificando-se ou não com as posições assumidas pelos cidadãos-oradores e, com isso, fortalecendo ou enfraquecendo as campanhas por estes empreendidas. Os organizadores e oradores atuam no palco, enquanto que os espectadores permanecem na galeria. A legitimidade do processo democrático depende de que o sistema político constitucionalmente institucionalizado seja capaz de assegurar a todo cidadão a possibilidade de acesso à estrutura interna de esfera pública deliberativa, deixando a periferia do acontecer histórico e convertendo-se de ouvinte em ator: “quanto mais o público for unido através dos meios de comunicação de massa e incluir todos os membros de uma sociedade nacional ou até todos os contemporâneos, o que o transformaria numa figura abstrata, tanto mais nítida será a diferenciação entre os papéis dos atores que se apresentam nas arenas e dos espectadores que se encontram na galeria”.13

O direito encontra sua legitimidade no processo democrático, ou seja, a validade da ordem jurídica está na legitimidade que a norma deve ter para além da

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facticidade de sua impositividade, e essa legitimidade repousa no consenso racional obtido através da deliberação pública. Quando fala em consenso racional obtido por meio do agir comunicativo, Habermas pressupõe cidadãos que agem livre e espontaneamente, isto é, sujeitos que, sendo simultaneamente atores e destinatários das decisões públicas, vinculam-se à norma por eles mesmos formuladas por razões que eles entendem justificar essa atitude. Tais razões metajurídicas, que antes situavam-se na religião (a crença no sagrado), na tradição (a crença nos valores culturais) ou no medo da sanção (a obediência compulsória ao governo autoritário), hoje situam-se no processo político democrático deliberativo racional, dentro...

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