Avaliação da viabilidade jurídica de um instrumento internacional sobre a diversidade cultural

AutorIvan Bernier; Hélène Ruiz Fabri
Páginas215-272

Ivan Bernier. Professor associado da Faculdade de Direito da Universidade Laval do Quebeque

Hélène Ruiz Fabri. Professora da Universidade de Paris I – Panthéon-Sorbonne

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Parte I Os textos existentes no plano internacional capazes de regulamentar o comércio de bens e serviços culturais

O presente apanhado sobre os instrumentos multilaterais1, regionais ou bilaterais capazes de regulamentar de alguma maneira o comércio dos produtos culturais não pretende ser exaustiva, contudo, ela fornece uma idéia bastante satisfatória da multiplicidade e da diversidade dos instrumentos em questão2

O conceito de instrumento internacional subjacente se refere a uma gama extremamente variada de textos internacionais, indo da simples recomendação até aos acordos internacionais de caráter obrigatório, passando pelas resoluções, declarações, decisões e por cartas e planos de ação.

A sua característica comum reside na sua origem de norma internacional, o que exclui, entre outros, os textos que provêm de organizações não-normativas.

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1 Os acordos multilaterais
1. 1 O regime jurídico da OMC
1.1. 1 O Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio (GATT)

As preocupações da OMC em relação à cultura e aos produtos culturais não são recentes. No texto original do Acordo geral sobre tarifas e comércio adotado em 1947, já se encontra um dispositivo, o artigo IV, que mostra bem até que ponto os fundadores do sistema comercial multilateral eram sensíveis nessa época ao perigo que pode representar para as culturas nacionais uma prática sem nuances do princípio da livre circulação das mercadorias.

O artigo IV estipula que uma Parte Contratante pode manter uma regulamentação quantitativa interna que comporta a obrigação de projetar, por um determinado período, filmes de origem nacional durante uma fração mínima do tempo total de projeção efetivamente utilizado.

Dito isto, o artigo IV estipula que as cotas de projeção deverão ser objeto de negociações que tendem a limitar o seu alcance, abrandá-lo ou suprimi-lo. O artigo IV do GATT 1947 (que foi reconduzido ao término da Rodada Uruguai no GATT de 1994) diz que:

Se uma parte contratante estabelecer ou mantiver regulamentações quantitativas internas relativas aos filmes cinematográficos expostos, tais regulamentações deverão ser impostas sob a forma de cotas de projeção, que obedecerão às condições e prescrições seguintes: a) As cotas de projeção poderão tornar obrigatória a exibição de filmes cinematográficos de origem nacional durante uma proporção mínima determinada do tempo total de projeção, realmente utilizado num período não inferior a um ano na exibição comercial de todos os filmes de qualquer origem; e serão computados na base do tempo de projeção anual por sala ou de seu eqüivalente.

O dispositivo em questão foi inserido porque tais regulamentações restritivas eram percebidas com o objetivo de “priorizar mais as políticas culturais nacionais do que a economia e o comércio”3. O principal interesse desta cláusula está no seu reconhecimento explícito da especificidade do filme como um produto que entra no comércio internacional.

Além do artigo IV, o único outro dispositivo do GATT de 1994 que se refere diretamente ao comércio dos bens culturais se encontra ao artigo XX(f), que reconhece comoPage 217 exceção as restrições impostas para a proteção de tesouros nacionais que tenham um valor artístico, histórico ou arqueológico. Este artigo declina-se da seguinte maneira:

Desde que essas medidas não sejam aplicadas de forma a constituir quer um meio de discriminação arbitrária, ou injustificada, entre os países onde existem as mesmas condições, quer uma restrição disfarçada ao comércio internacional, disposição alguma do presente capítulo será interpretada como impedindo a adoção ou aplicação, por qualquer Parte Contratante, das medidas:

  1. impostas para a proteção de tesouros nacionais de valor artístico, histórico ou arqueológico;

Fora estas duas exceções, os produtos culturais devem, do ponto de vista do sistema de regras multilaterais que regulam o comércio, ser tratados exatamente como qualquer outro produto comercial. Isto é precisamente o que sugere a recente decisão do Órgão de Solução de Controvérsias da OMC no caso Canadá - Certas medidas relativas aos periódicos4 onde dispositivos destinados a proteger a indústria canadense dos periódicos foram julgados incompatíveis com os artigos III (tratamento nacional) e XI (restrições quantitativas) do GATT de 1994. Nós veremos mais adiante o impacto potencial desta decisão sobre as intervenções nacionais no domínio cultural.

1.1. 2 O Acordo geral sobre o comércio dos serviços (GATS)

Diferentemente do GATT de 1994, e embora tenha sido o principal espaço de confrontação entre o comércio e a cultura (principalmente no setor audiovisual) quando da Rodada Uruguai, o GATS não comporta cláusula específica relativa à cultura ou aos produtos culturais. No entanto, os serviços culturais beneficiam de certas dispositivos que permitem a manutenção de medidas nacionais que seriam incompatíveis com o compromisso inicial das partes de conceder o tratamento da nação mais favorecida, ou permitem a manutenção, em setores onde nenhum compromisso específico de liberalização foi ainda tomado, de medidas incompatíveis com o princípio do tratamento nacional ou que venham limitar o acesso ao mercado interno.

O principal compromisso das partes signatárias do GATS encontra-se no artigo II,Page 218 parágrafo 1, que prescreve que, no que diz respeito a todas as medidas cobertas pelo Acordo, “cada Parte atribuirá, de forma imediata e incondicional, aos serviços e fornecedores de serviços de qualquer outra Parte, um tratamento não menos favorável que aquele que atribui aos serviços similares e aos fornecedores de serviços similares de qualquer outro país”. O artigo II:1 do GATS é de aplicação geral, e diz respeito a toda parte do Acordo, não importando que tenha ou não subscrito compromissos de liberalização no setor. No entanto, nos termos do parágrafo 2 deste mesmo artigo, “um Membro poderá manter uma medida incompatível com o parágrafo 1 desde que esta figure no Anexo sobre as isenções das obrigações enunciadas no artigo II e satisfaça às condições que são indicadas no referido anexo”. As condições em questão prevêem que todas as isenções atribuídas por um período de mais de cinco anos devem ser objeto de um reexame e que em princípio, as exceções não deveriam exceder um período de dez anos. Na prática, não menos que 27 Estados, dos quais vários países latino-americanos, nórdicos, europeus e árabes, assim como o Canadá, pediram que as...

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