O avan

AutorPassos, Rachel Gouveia

Introdução

Apenas quando somos instruídos pela realidade é que podemos mudá-la.

Brecht

O consumo de drogas, fenômeno presente em toda a história da humanidade, só passou a ser compreendido exclusivamente como uma problemática social, mobilizando aparatos repressivos, a partir do avanço do capitalismo em sua fase monopolista. Expressões importantes dessa transformação são o projeto proibicionista, que surgiu nos EUA no final do século XIX, como resultado de demandas econômicas e ideológicas presentes no processo de reprodução das relações sociais daquela conjuntura (FIORI, 2007; BRITES, 2017; LIMA, 2009; CARNEIRO, 2002), e o uso vulgar e impreciso da nomenclatura droga, cuja generalização coloca "em um único bloco substâncias que são alvo de perseguição legal, agrupando o inimigo e facilitando a guerra às drogas" (RODRIGUES, 2012, p. 19).

O modelo proibicionista se fortaleceu no Brasil na segunda metade do século XX, num contexto de ordenamento social em função das particularidades de inserção periférica no capitalismo internacionalizado e dos interesses das burguesias locais, e sua regulamentação ocorreu com a promulgação da Lei n (o) 6.368/76, no contexto da ditadura militar.

Neste bojo, o campo da saúde avançou distanciado do debate acerca do uso de substâncias psicoativas. A disputa entre a segurança e a saúde pelo protagonismo das políticas de drogas pode ser observada a partir da epidemia de Aids, que, associada ao uso de drogas injetáveis, aproximouse do Sistema Único de Saúde (SUS) (TORCATO, 2014). Assim, somente em 2003, com a política de atenção integral aos usuários de álcool e outras drogas, a matéria foi incorporada pelo campo da saúde mental, inserindo no cenário nacional a pauta da estratégia de redução de danos (BRASIL, 2003).

Contudo, os movimentos de contrarreforma, iniciados no país já nos anos 1990, atingem a implementação do conjunto de políticas sociais de caráter universalistas, implicando tendências de abertura à iniciativa privada e às instituições filantrópicas no campo da saúde. No particular do campo da saúde mental e drogas, a tendência privatista, a redução do Estado, a precarização e o sucateamento dos serviços substitutivos foram privilegiados, alimentando argumentos do campo conservador que forjam uma análise des-historicizada e presentista ao indicar que o projeto de reforma psiquiátrica promoveu desassistência e desamparo, além de não demonstrar ser capaz de acompanhar integralmente os usuários. Por consequência, avançavam no campo da assistência aos usuários de substâncias psicoativas, instituições privadas, em sua maioria de cunho religioso, como as comunidades terapêuticas (CTs) (BARCELLOS, 2018; GOMES, 2017; IPEA, 2017; CFP, 2018).

No Brasil, as primeiras CTs surgiram no final da década de 1960 sob forte influência do modelo estadunidense, marcado por uma perspectiva de reforma moral-individualista e influência religiosa (CAVALCANTE, 2019). De forma geral, podem ser conceituadas como serviços voltados à atenção às pessoas com transtorno decorrente do uso, abuso ou dependência de substâncias psicoativas, em regime residencial temporário, objetivando a garantia do ambiente residencial protegido para promover mudanças de estilo de vida e o resgate da identidade. Assim, a "recuperação" das pessoas se daria pela utilização terapêutica da convivência entre os pares, que promoveria o aprendizado social e a cidadania (SÃO PAULO, 2014).

Entretanto, os estudos disponíveis e a aproximação empírica têm revelado que estas instituições tendem a reafirmar o modelo de internação, marcado por práticas disciplinadoras e religiosas, em geral neopentecostais, pouco mobilizadas pelo campo da saúde. Estas instituições, em geral subsidiadas pelo tripé trabalho, disciplina e espiritualidade, efetivam o isolamento e a abstinência como métodos constantes, estabelecendo práticas como penitência, castigos físicos, laborterapia, violação da orientação sexual e religiosa dos indivíduos, isolamento, proibição do contato com o ambiente externo e com a família, ausências de equipes de saúde, uso de medicamentos sem receita médica e desarticulação com a rede de saúde e saúde mental (IPEA, 2017; CFP, 2018; PERRONE, 2014). Estas práticas contradizem a determinação da Lei n (o) 10.216/2001, que advoga pela internação compulsória apenas quando expedida por um juiz. Na mesma direção da ilegalidade reside a prática de castigos, punições e trabalhos forçados, caracterizados na legislação como tortura (BRASIL, 2001).

A despeito das constatações de violação de direitos humanos demonstrada pelos relatórios de fiscalização destas instituições (IPEA, 2017; CFP, 2018), a história recente aponta para o fortalecimento das CTs, tendo na articulação política conservadora um braço de sustentação que empreende esforços para trazê-las à centralidade da Rede de Atenção Psicossocial (Raps). Nessa direção, são lançados editais para a contratação de vagas de CTs - expressando o desfinanciamento de serviços públicos de saúde -, criadas Frentes Parlamentares em Defesa das Comunidades Terapêuticas, marcos legais e resoluções que a fortalecem, sem garantias de fiscalização ou regulamentação (PASSOS et al., 2020).

Considera-se que a compreensão do fenômeno recente de espraiamento das CTs - indicada como resultante do avanço conservador no país e seus desdobramentos - está hipotecada à análise e ao entendimento da dinâmica das relações sociais que caracterizam a formação social brasileira. Esta dinâmica é marcada, entre outros aspectos, pelo autoritarismo elitista e pelos acordos pelo alto. O legado deste processo é elemento importante na produção e reprodução dos valores morais dominantes no país. No bojo da nossa formação social, a produção de respostas a estas expressões tem se destinado à garantia da reprodução da classe trabalhadora nos limites em que este movimento não afete os interesses de reprodução ampliada do capital. Na conjuntura atual de ultraconservadorismo, se fortalecem respostas de base moral-punitiva e individualista, que tendem a se expressar, inclusive, nas políticas sociais.

Assim, na análise do processo de fortalecimento das CTs no cenário da política de drogas no país, parece haver uma relação indissociável entre a agudização da crise estrutural do capital, com o reconhecimento da incapacidade dessa sociabilidade em responder a demandas civilizatórias; o avanço conservador em sua faceta hodierna, que vem produzido regressividades civilizatórias e possui no fundamentalismo religioso uma de suas bases constitutivas; e o avanço da vertente evangélica neopentecostal na América Latina, expressando uma transformação na identidade religiosa enquanto exemplar histórico do processo de secularização hemiderna (GU-MUCIO, 1995; 2016).

O que se intenciona com esse brevíssimo retrospecto é apresentar, como problema do presente estudo, o fenômeno do fortalecimento e avanço das comunidades terapêuticas, que tem se evidenciado no particular do estado do Rio de Janeiro, a partir de movimentos político-institucionais articulados, dentre os quais se destaca a proposição de inúmeros projetos de lei na Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj) sobre a temática.

Desta forma, a fim de realizar uma análise crítica que visibilize os elementos que se inter-relacionam nos cenários de disputa social e política no campo da saúde, sobretudo no que tange à política de drogas e suas instituições, toma-se como objetivo a análise do Projeto de Lei n (o) 565 (ALERJ, 2019), apresentado à Alerj em 16 de maio de 2019, sob a autoria dos deputados estaduais Márcio Pacheco e Samuel Malafaia, como expressão fenomênica recente do recrudescimento do projeto conservador no campo da saúde mental e drogas no estado do Rio de Janeiro.

O PL, que dispõe sobre o "programa de atuação e acolhimento das comunidades terapêuticas como política pública permanente no estado do Rio de Janeiro e dá outras providências", foi publicado no Diário Oficial do Estado do Rio de Janeiro (Doerj) no dia 4 de outubro de 2019. Interessante perceber que, com a mesma autoria, também foi publicado nessa edição do Doerj o PL n (o) 676/2019, que "dispõe sobre a política estadual sobre drogas no estado do Rio de Janeiro e dá outras providências", o que aponta para um movimento articulado em prol do avanço do viés conservador na disputa sobre o campo das políticas de álcool e drogas (DOERJ, 2019).

O PL n (o) 676/2019, criado na Alerj em 5 de junho de 2019, recebeu parecer favorável no Plenário em 6 de outubro de 2020. Em síntese, seu conteúdo abordava a hegemonia da abstinência como forma de tratamento; o fomento à "guerra contra...

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