Avosidade e responsabilidade civil: um diálogo em construção
Autor | Nelson Rosenvald |
Ocupação do Autor | Pós-Doutor em Direito Civil Universidade Roma Tre (IT) |
Páginas | 265-284 |
AVOSIDADE E RESPONSABILIDADE CIVIL:
UM DIÁLOGO EM CONSTRUÇÃO
Nelson Rosenvald
Pós-Doutor em Direito Civil Universidade Roma Tre (IT). Pós-Doutor em Direito Socie-
tário pela Universidade de Coimbra (PO). Doutor e Mestre pela PUC-SP. Professor de
Direito Civil do Doutorado e Mestrado do IDP/DF. Procurador de Justiça do Ministério
Público de Minas Gerais. Presidente do IBERC – Instituto Brasileiro de Estudos de
Responsabilidade Civil.
“Bibiana é bem como a avó, dessas que só gostam dum homem em toda a vida.
Essas nunca esquecem”.
Érico Verissimo
Sumário: 1. Introdução. 2. A avosidade e a responsabilidade civil. 3. A responsabilidade civil
por omissão de cuidado. 3.1 Omissão de cuidado na avosidade. 3.2 Cabe o Ilícito de omissão
de cuidado inverso na avosidade? 4. A responsabilidade civil pela alienação parental. 4.1 A
alienação avoenga. 5. A reparação de danos extrapatrimoniais é o caminho preferencial? 6.
Conclusão.
1. INTRODUÇÃO
Esta obra coletiva pioneira e sistematicamente descreve o fenômeno interdiscipli-
nar da “avosidade”, entendido como “laço de parentesco entre avós e netos, sobretudo
estando os últimos no período da infância; é tema que cria um elo entre a pediatria e
a gerontologia. Envolve os estudos que vinculam o laço e parentesco nas relações de
filiações trigeracionais do ponto de vista pessoal, social e familiar. Aproximar gerações
é o objetivo do trabalho social que busca quebrar barreiras entre gerações, eliminar
preconceitos e vencer discriminações”.1
A família, como se sabe é um organismo mutável, construído historicamente. Os
seus sentidos, papéis e funções se reconfiguram. Neste contexto dinâmico se insere o
neologismo avosidade. Trata-se de uma derivação do termo espanhol abuelidad,2 fazendo
referência as relações intergeracionais construídas no contexto familiar pela interação
entre seus membros. Avosidade se associa com o vocábulo equivalente “paternidade”
para descrever o vínculo e função entre pais e filhos.
1. OLIVEIRA Alessandra Ribeiro Ventura; GOMES, Lucy; TAVARES, Adriano Bueno; CÁRDENAS Carmen Jansen.
Relação entre avós e seus netos no período da infância. Disponível em: [https://revistas.pucsp.br/kairos/article/
view/4420/2992]. Acesso em: 20.05.2020.
2. Abuelidad é um conceito desenvolvido pela psicanalista argentina Paulina Redler em 1980 para denominar a
relação e função dos avós com respeito aos netos e os efeitos psicológicos do vínculo. No idioma inglês o conceito
pode ser traduzido como “grandparenthood”, utilizados desde o século XIX. Para significar o mesmo, na língua
francesa se introduziu desde a década de 1990, o conceito de “grand-parentalité”.
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Na contemporaneidade, um dos fatores que imprimem mudanças nesse cenário é
o crescente processo de envelhecimento populacional, trazendo uma presença cada vez
mais acentuada dos avós em várias famílias, sobremaneira em nações periféricas como o
Brasil, onde a precariedade econômica remete a uma contenção financeira que culmina
por unir diferentes gerações sob um mesmo teto. A experiência aponta para o envelhe-
cimento das mulheres, acompanhada por filhos adultos que nem sempre deixam a casa
dos pais ao constituírem uma nova família. Filhos adultos que morrem antes de chegar
à terceira idade. Filhos adultos que não assumem a criação de seus filhos e consequen-
temente, netos sendo criados pelas avós. Avôs e avós assumem a criação não apenas de
netos biológicos, mas a avosidade afetiva de crianças adotadas por seus filhos, novos
filhos da nora viúva e sobrinhos-netos do marido.
Em sua genialidade, Guimarães Rosa frisava a importância de “fugirmos das formas
estáticas, cediças, inertes, estereotipadas e lugares comuns... a maneira de dizer tem de
funcionar, a mais, por si”.3 Em seus livros o leitor é chocado, despertado de sua inércia
mental, da preguiça e dos hábitos. Com a introdução do neologismo avosidade em
uma obra coletiva capaz de captar a sua transversalidade, talvez o civilista possa tomar
consciência viva do escrito, aprendendo novas maneiras de refletir sobre um fenômeno
extremamente atual. Avosidade é um recurso expressivo que nos remete para muito além
do formalismo do parentesco em linha reta.4
Tampouco a avosidade remete à tutela da pessoa idosa, calcada na proteção de uma
pessoa vulnerável, que resulta, tanto de sua natural assimetria em um contexto indivi-
dual de declínio das potencialidades psicofísicas, como também de sua dificuldade de
inserção em um ambiente social culturalmente marcado por práticas discriminatórias.5
A avosidade se localiza no plano da intersubjetividade, ressignificando o direito das
famílias, como local de comunhão de vidas.
A avosidade é um tema novo. Porém, somente será um modelo jurídico autônomo
se transcender a compreensão genética do parentesco e a condição de vulnerabilidade
3. MARTINS, Nilce Sant’Anna. O léxico de Guimarães Rosa. São Paulo: Edusp, 2001.
4. Parentes em linha reta são os que mantêm entre si uma relação de descendência direta, decorrente, ou não, de vínculo
biológico. Procede direta e sucessivamente de cada pessoa para os seus antepassados e para os descendentes. São
os avós e netos, pais e filhos... Como reza o art. 1.591 do Codex, “são parentes em linha reta as pessoas que estão
umas para com as outras na relação de ascendentes e descendentes”. Bem por isso, a linha reta pode ser ascendente
ou descendente, a depender da perspectiva do parente que se esteja analisando, partindo-se da pessoa considerada
para os seus antepassados (do filho para o pai, do neto para o avô etc.) ou para os seus descendentes (do pai para
o filho, do avô para o neto...). A linha reta ascendente, por sua vez, pode bifurcar-se em linha paterna e materna,
dizendo respeito ao parentesco relativo ao pai e à mãe e aos parentes de cada um deles.
5. Heloisa Helena Barbosa explica que, “a proteção especial dos vulneráveis não se limita ao consumidor. A definição
de vulnerabilidade compreende além da ideia de risco, outras como carência, inferioridade, constrangimento
e sofrimento, não episódicos, mas “naturalizados”, ínsitos a situação da pessoa. Por definição, todos os seres
humanos são vulneráveis, mas não basta afirmar a vulnerabilidade que lhes é intrínseca para que recebam tutela
adequada. Para tanto é indispensável verificar as peculiaridades das diferentes situações de cada indivíduo e/
ou grupo. Desse modo é preciso distinguir a vulnerabilidade – condição ontológica de qualquer ser vivo – da
suscetibilidade ou vulnerabilidade secundária. Muitas pessoas têm a sua vulnerabilidade potencializada por
problemas socioeconômicos ou de saúde e podem ser qualificados como vulnerados. Uma pessoa idosa é vulnerável,
em razão do processo de envelhecimento, que pode atingir pessoas já vulneradas por doenças, pobreza ou deficiência
física ou psíquica; estas estarão nitidamente em situação mais grave a exigir proteção diferenciada, diversa da
conferida aos “apenas” idosos”. BARBOSA, Heloisa Helena. Proteção dos vulneráveis na Constituição de 1988.
In: NEVES, Thiago Ferreira Cardoso (coord.). Direito e justiça social. São Paulo: Atlas, 2013, p. 107-10.
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