Contaminação do bairro recanto dos pássaros em paulínea(SP): caso shell/basf

AutorMaria Inês Corrêa de Cerqueira César Targa
CargoJuíza Titular da 2ª Vara do Trabalho de Paulínia, Mestre em Direito Processual Civil pela Puccamp e Doutora em Educação pela Unicamp
Páginas252-303

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O Conselho Editorial da Revista da Anamatra resolveu publicar, na íntegra, a sentença que analisou o feito de n. 0022200-28.2007.5.15.0126, ao qual foi reunido o de n. 0068400-59.2008.5.15.0126.

Trata-se, em síntese, da sentença proferida nas ações movidas em face das empresas Shell e Basf, em decorrência de um dos maiores casos de contaminação ambiental já ocorrido no Brasil. O desastre ambiental foi produzido no parque fabril por elas ocupado na cidade de Paulínia, onde foram descartados indiscriminadamente pesticidas cuja produção e comercialização já era, há muito, proibida nos Estados Unidos da América.

A decisão teve repercussão internacional em face da relevância econômica da condenação imposta às empresas rés: R$ 1.100.000.000,00, que resultou no imediato recolhimento das custas processuais, pela empresa Shell Brasil Ltda., no importe de R$
22.000.000,00.

Entretanto, muito mais importante do que a repercussão econômica da decisão, é o drama daqueles que viveram no entorno do Recanto dos Pássaros, bairro hoje interditado e desocupado, e pelos trabalhadores que atuaram no parque fabril desativado.

Não menos relevantes são as reflexões advindas da análise do caso concreto. Os fatos que acarretaram a decisão — contaminação de trabalhadores e de seus descendentes, em decorrência de poluição ambiental — exigem amplo debate. Podem ser questionados os seguintes temas: competência da Justiça do Trabalho quanto aos direitos dos dependentes dos trabalhadores afetados pela contaminação produzida pelo empregador ou pelo tomador de seus serviços, prazo prescricional aplicável e destino a ser conferido às indenizações decorrentes da reparação imposta em ações que discutam o cometimento de dano moral coletivo.

É este o teor da sentença proferida. Serão muito bem-vindas as críticas e observações, através do endereço eletrônico mariatarga@trt15.jus.br.

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Processo 0022200-28.2007.5.15.0126

Autores: Ministério Público do Trabalho — Procuradoria Regional do Trabalho da 15ª Região, ACPO — Associação de Combate aos Pops, Instituto “Barão de Mauá” de Defesa de Vítimas e Consumidores contra entes Poluidores e Maus Fornecedores e ATESQ — Associação dos Trabalhadores Expostos a Substâncias Químicas

Réus: Shell Brasil Ltda. e Basf S.A.

Processo 0068400-59.2008.5.15.0126

Autores: ATESQ — Associação dos Trabalhadores Expostos à Substâncias Químicas e Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias dos Ramos Químicos, Farmacêuticos, Plásticos, Abrasivos e Similares de Campinas e Região

Réus: Shell Brasil Ltda. e Basf S.A.

Sentença

SentençaSentença
SentençaSentença

A Ação Civil Pública n. 0022200-28.2007.5.15.0126 foi distribuída em 7.3.2007 e ajuizada, inicialmente, pelo Ministério Público do Trabalho, conjuntamente com a Associação de Combate aos POPS (ACPO), em face das empresas Shell Brasil Ltda. e Basf S.A., com fulcro nos arts. 796 e seguintes, arts. 849 e seguintes do CPC e arts. 4º e seguintes da Lei n. 7.347/1985.

Sustentam os autores, às fls. 2/208, que, na década de 1970, a empresa Shell se instalou na cidade de Paulínia, no complexo industrial denominado Centro Industrial Shell Paulínia. A atividade principal seria a produção de praguicidas, o que teria culminado em um desastre ambiental de tal proporção que atingiu toda uma coletividade, abarcando os trabalhadores que se ativaram no local.

Narraram que, em 1994, a Shell apresentou autodenúncia ao Ministério Público Estadual, noticiando a contaminação no local em que instalado seu parque fabril. Tal contaminação afetou lençóis freáticos e o solo e teria sido causada pela inadequação do tratamento biológico dos dejetos industriais, do tratamento de águas, da utilização do incinerador de líquidos e das bacias de evaporação.

Embasada em auditoria ambiental que foi obrigada a realizar quando da venda de seus ativos para a empresa Cyanamid, a Shell firmou, em 2.8.1995, Termo de Compromisso de Ajustamento de Conduta com o Ministério Público Estadual, reconhecendo a existência de danos ao meio ambiente. Comprometeu-se a construir um sistema de recuperação da qualidade do aquífero e se responsabilizou pelo controle do avanço da contaminação, com a elaboração de relatórios periódicos.

O processo de descontaminação é acompanhado pelo Instituto de Química da Universidade de Campinas (Unicamp), o qual concluiu que, mesmo após 20 anos, subsistem no solo e no lençol freático altos níveis de contaminação por compostos organoclorados, da classe dos DRINS. O Instituto de Química também demonstrou que a contaminação decorreu não só da toxicidade dos compostos lá produzidos, mas, também, da manipulação inadequada dos produtos pela empresa.

Em julho de 1998, mesmo após a assinatura do Termo de Ajuste de Conduta, a Shell prosseguiu descumprindo a legislação ambiental, tendo sido lavrado, pela Companhia Ambiental do Estado de São Paulo (Cetesb), auto de infração e imposição de penalidade.

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Os autores narram que, em março de 2000, a planta industrial foi alienada para a empresa Basf S.A., tendo sido uma parcela remanescente da área adquirida pela empresa Kraton Polymers S.A.

Relatórios posteriormente realizados indicaram a presença de contaminação do local por outros compostos químicos, além daqueles da classe dos DRINS, todos de alta toxicidade.

O Departamento de Medicina Preventiva e Social da Unicamp demonstrou a existência de danos à saúde dos trabalhadores, na medida em que os organoclorados atuam sobre vários sistemas do organismo humano, podendo determinar efeitos prejudiciais ao sistema neurológico, cardiovascular, gastrointestinal e renal.

Ainda foi narrado na petição inicial, que, no início do ano de 2001, fora constatada a existência de contaminação por DRINS em pontos externos do parque industrial.

Em março de 2001, foi realizada avaliação de riscos à saúde humana, elaborada pela Shell Internacional Chemicals B. V., estudo que reconhece o potencial prejuízo à saúde dos residentes nas proximidades do parque fabril em face do contato com os DRINS. Indicam os autores que, se há risco para os moradores do entorno, por óbvio também há para os trabalhadores que lá se ativaram.

Segundo os autores a CETESP elaborou análise evidenciando que os incineradores operados pela Shell não atendiam os padrões adequados de operação do equipamento, bem como que os resíduos das incinerações, pelo menos até 1992, eram enterrados no solo.

Além disso, a narrativa dá conta de que, mesmo após mais de cinco anos do início do tratamento ambiental, a contaminação do solo e do lençol freático permanece crítica.

Em 2002, narram que a Basf encerrou suas atividades no local e, na época, a planta industrial foi interditada pelo Ministério do Trabalho, tendo em vista a contaminação existente e o grave risco à saúde humana.

Conforme parecer elaborado em 2003 pela Faculdade de Engenharia Civil da Unicamp, restou patente que os níveis de contaminação permaneciam acima dos limites admissíveis. Neste contexto, ficaria evidente a exposição dos trabalhadores das empresas rés a diversos contaminantes de altíssima toxicidade, pois teriam se submetido a condições inadequadas de manuseio, produção, embalagem, estocagem e transporte das matérias-primas, produtos e derivados de processos de degradação.

Também foi alegada a lesão a direitos indisponíveis dos trabalhadores, bem como a ofensa à ordem jurídica vigente, fatos que legitimariam a atuação do Ministério Público do Trabalho.

Apontam que os poluentes orgânicos são substâncias químicas persistentes, voláteis ou semivoláteis, bioacumulativas, mutagênicas e cancerígenas, sendo inconteste que a exposição do ser humano a tais produtos causa dano, no mínimo, impondo-lhes a possibilidade de aquisição de doenças de difícil ou remota cura.

Listam que são produtos potencialmente carcinogênicos os compostos químicos aldrim, dieldrin, pentaclorofenol, DDT e seus isômeros, triclorometano, 1,2— dicloroetano, diclorometano, benzeno e etilbenzeno, produtos esses utilizados como matérias-primas no processo produtivo da Shell e que acarretaram sérios danos à saúde dos trabalhadores.

Sustentam os autores que artigo científico produzido por médico do trabalho da Shell indica 177 casos de intoxicações subclínicas e 1 caso de intoxicação aguda, ocorridos na empresa entre 1978 a 1982.

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Dizem que os trabalhadores foram expostos à contaminação por inalação, ingestão e contato dérmico. Segundo os autores, o Centro de Referência em Saúde do Trabalhador avaliou a saúde dos trabalhadores que laboravam nas empresas Shell, Cyanamid e Basf e, em 2005, emitiu parecer, reconhecendo a superior incidência de câncer de tireoide em homens (166 vezes maior que a incidência na população masculina de Campinas, tendo indicado, o documento, que a probabilidade dessa alteração ter ocorrido por acaso é de 1 em 1.000.000).

Ainda informaram que, mesmo antes do início de suas atividades em Paulínia (1977), a Shell já tinha ciência da impropriedade da utilização dos DRINS e ao manter sua manipulação, atentou contra o Princípio da Precaução e assumiu o risco de expor seus trabalhadores a risco.

Aduziram que as rés não observaram os princípios da boa-fé objetiva, da função social dos contratos e da propriedade. Expuseram os trabalhadores a riscos, prejudicando sua saúde, segurança e o seu bem-estar, além de...

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