Bases para a reconstrução unitária de um regime geral de responsabilidade civil objetiva

AutorFelipe Teixeira Neto
Páginas207-243
CAPÍTULO 5
BASES PARA A RECONSTRUÇÃO UNITÁRIA
DE UM REGIME GERAL DE
RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA
As digressões de cunho teórico que se encontram na base do presente estudo – no-
meadamente no que tange à delimitação da hodierna noção de responsabilidade civil,
à demarcação do fundamento de legitimidade da responsabilidade objetiva enquanto
categoria jurídica e à demonstração da sua estrutura uniforme a partir da releitura
dos seus pressupostos centrais – não apenas aclaram as dúvidas iniciais próprias de
qualquer investigação, como também bem servem a dar coesão à proposta em curso.
Nesta linha é que, para tornar viável a construção de um regime geral de impu-
tação objetiva, mesmo partindo da experiência secular desenvolvida em torno da
responsabilidade assente na culpa, careceu-se de uma releitura de fundamento, de
estrutura e de funções, as quais lhe dão alguma singularidade. Apresentar as bases
sobre as quais se fundam esta proposta, na linha do todo já analisado, é tarefa que
se impõe, porquanto imprescindível a realizar o fecho da reconstrução sistemática
almejada.
1. O FUNDAMENTO UNITÁRIO DA RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA E O
SEU PAPEL NA CONSTRUÇÃO DE UM REGIME GERAL DE IMPUTAÇÃO
Uma das justif‌icativas teóricas que autorizam falar num regime geral de res-
ponsabilidade objetiva é o fato de se poder identif‌icar um fundamento unitário de
legitimação1. Ou seja, uma causa normativa que sirva a atribuir coesão e integração
às mais variadas fattispecie, independentemente da ausência de unidade no que toca
ao nexo de imputação, viabilizando, com isso, a possibilidade de se apresentar uma
hipótese de reconstrução sistemática.
Os esforços desenvolvidos neste sentido permitiram demonstrar que, partindo
da concepção atual de responsabilidade civil e tendo em vista os principais objetivos
por ela perseguidos através de um regime centrado na resposta ao dano ilegitimamen-
te sofrido pela vítima e não do ato ilícito praticado pelo lesante, a noção jurídica (e
1. Consoante ensina MARTINS-COSTA, Judith. Os Fundamentos da Responsabilidade Civil. Revista Trimestral
de Jurisprudência dos Estados, São Paulo, v. 15, n. 93, out. 1991, p. 31, “[o] fundamento, seja de uma regra
ou de uma instituição, é a razão que a justif‌ica e pela qual se estabelece a necessidade de conformidade dessa
regra com os ideais de justiça vigentes em uma determinada sociedade, em um determinado momento de
sua história”.
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revisitada) de solidariedade apresenta-se como elemento agrupador da justif‌icação
do surgimento de um dever de reparar danos para além do princípio da culpa.
Daí que, como forma de demostrar a operatividade deste fundamento de legiti-
midade, cumpre aferir o modo como o princípio em causa opera na consecução de
um regime geral de responsabilidade objetiva.
1.1 Responsabilidade objetiva e balanceamento de interesses
Do todo apresentado no curso da presente investigação, é notório reconhecer
que a responsabilidade civil, no atual cenário da civilística contemporânea, tem sido
chamada a dar respostas a controvérsias que, por certo, sequer podiam ser pensadas
na sua gênese. Partindo do seu nascedouro, associado à ideia de delito, até a sua
conformação atual, várias foram as transformações sofridas, seja no seu fundamento,
seja no seu regime de pressupostos, tudo com o f‌im de bem atender às funções que
lhe foram sendo paulatinamente relegadas.
Nesta linha de sistematização, não há dúvidas que, inserida em um contexto
socioeconômico deveras multifacetado, alternativa não restou ao instituto senão
apresentar-se como um autêntico moderador de interesses, o que se concretiza por
intermédio de um balanceamento entre pretensões contrapostas. Bem compreender
a forma como se dá este processo é tarefa de suma relevância ao estabelecimento, a
partir de um fundamento uniforme de legitimação, das bases para um regime geral
de responsabilidade civil objetiva.
1.1.1 A noção atual de responsabilidade civil e o papel da ponderação entre os
interesses do lesante e do lesado
Diante das digressões formuladas precedentemente acerca da construção do ho-
dierno conteúdo do termo responsabilidade civil, é possível inferir que a complexidade
estrutural adquirida pelo instituto é, em verdade, a reprodução da complexidade das
relações que passaram a ser por ele reguladas. Vencida a estabilidade aparentemente
conquistada com a sistematização oitocentista, o que foi inevitável em decorrência
das profundas transformações pelas quais passou o mundo ocidental de tradição ju-
rídica continental, foi imperioso o reconhecimento de que o princípio da culpa não
tinha potencial para traduzir e sintetizar a totalidade dos anseios sociais envolvidos
e cujas necessidades careciam de ser atendidas.
Neste cenário de transição, marcado que foi por duas “viradas” de grande vulto
ocorridas num relativamente curto espaço de tempo – primeiro para uma sociedade
industrializada e, após, para uma sociedade de massa, assim entendida enquanto
característica indelével da pós-modernidade2 –, a responsabilidade civil restou
2. Assim, JAYME, Erik. Visões para uma teoria pós-moderna do direito comparado. Trad. Cláudia Lima Marques.
Revista dos Tribunais, São Paulo, a. 88, v. 759, jan. 1999, p. e 27-28. Com maiores desenvolvimentos do que
se convencionou chamar de “viradas” de evolução rumo a uma sociedade assim dita pós-moderna e os seus
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chamada a solucionar situações que transcendiam a mera imputação de um dano a
partir da máxima segundo a qual, em sendo livre para agir, o sujeito deve responder
pelos seus atos. E esta transição veio a se materializar de diversas formas, mas no-
meadamente por meio da abertura dos regimes a inf‌luxos de objetivação, tanto por
meio do nexo de imputação propriamente dito, quanto por intermédio da releitura
dos seus pressupostos constitutivos.
Tudo isso, aliado a um grande debate acerca das funções que hoje são esperadas
do instituto, muitas vezes para além da clássica reparação dos prejuízos sofridos pelo
lesado3, contribuiu, em larga escala, para uma revisão da noção atual de responsa-
bilidade civil, resumindo-se a questão central que hoje lhe é posta à satisfação das
dúvidas acerca de quais danos devem ser considerados relevantes num cenário de
inúmeros prejuízos que se projetam nas esferas jurídicas alheias4.
Todo este panorama, já analisado com maior vagar em momento precedente,
serviu a demonstrar que à responsabilidade civil incumbe, hoje, por meio das suas
mais variadas manifestações, a realização de uma ponderação entre interesses contra-
postos – no caso, aqueles atribuíveis ao lesante e aqueles titulados pelo lesado –, con-
traposição esta que surge com a causação do dano. Isso porque a hipercomplexidade
social que caracteriza a pós-modernidade agrega inúmeros fatores (das mais variadas
ordens) às relações interpessoais, fatores estes que não podem ser desconsiderados,
o que torna qualquer pretensa identidade entre responsável e culpado uma noção,
no mínimo, reducionista5.
ref‌lexos no direito privado e na própria noção de responsabilidade civil, permita-se reenviar a TEIXEIRA
NETO, Felipe. Dano Moral Coletivo. A conf‌iguração e a reparação do dano extrapatrimonial por lesão aos
interesses difusos. Curitiba: Juruá, 2014, p. 74, inclusive nota 162.
3. Consoante refere MONATERI, Pier Giuseppe. Natura e scopi della responsabilità civile. Disponível em:
www.academia.edu/21500632/Natura_e_Scopi_della_Responsabilit%C3%A0_Civile>. Acesso em: 11 out.
2017, p. 18, a par das diversas funções hoje atribuídas à responsabilidade civil, nenhuma delas é capaz de,
sozinha, explicar a complexa estrutura sobre a qual o instituto está assentado e, por conseguinte, traduzir
uma noção unitária do conteúdo que o termo empregado para lhe fazer alusão representa. O tema é tratado,
por esta exata razão, em larga medida pela doutrina. Com uma síntese da problemática atual, especialmente
considerando a inegável centralidade da reparação e as controvérsias acerca da viabilidade, com igual apreço,
para a adoção de funções outras, ver, pela sua atualidade e precisão, ROSENVALD, Nelson. As funções da
reponsabilidade civil. A reparação e a pena civil. 3ed. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 100 e ss.
4. Como observa ALPA, Guido. Diritto della responsabilità civile. Roma/Bari: Laterza, 2003, p. 03-04, em uma
sociedade tecnologicamente avançada, marcada por danos catastróf‌icos e de massa, o debate não mais se
pode resumir a um questionamento quantitativo, mas também – e precipuamente – qualitativo, o qual bem
se materializa na evolução da concepção de dano e das técnicas da sua imputação a um assim dito “sujeito
responsável”. Tudo isso acarreta uma mutação na feição tradicional do instituto que, por meio da revisão das
noções clássicas a ele inerentes, inclusive no que tange aos critérios de imputação, tornou mais evanescente
a relação entre responsabilidade e dano.
5. Uma vez mais imperioso retomar a lição de JAYME, Erick. Visões para uma teoria..., cit., p. 27-28, especial-
mente quando lembra que esta hipercomplexidade decorre da velocidade, da ubiquidade e da liberdade
que bem caracterizam a pós-modernidade, produzindo, em decorrência disso, uma antinomia e uma
contraposição de interesses constantes que, transpostas à responsabilidade civil, servem a demonstrar que
a solução de grande parte das controvérsias nem sempre está na maniqueísta pretensão de se identif‌icar
um culpado, mas, no mais das vezes, na ef‌iciente gestão de interesses contrapostos que precisam conviver
em harmonia. Igualmente relevante aparenta-se a observação do mesmo autor no sentido de que, em uma
realidade dita pós-moderna, “[o] comum, o igual não será negado, mas aparece como subsidiário, como
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Desta feita, a gestão do prejuízo não consentido, assim entendido enquanto
produto de interesses contrapostos, ambos legítimos, que entram em colisão,
apresenta-se como o objeto mediato da imputação, ou seja, aquilo que se busca
solucionar por meio da demarcação, em última análise, de quem deverá suportar
os ônus respectivos.
Numa realidade estritamente materializada na noção de ato ilícito enquanto
representação da responsabilidade civil, dita acepção não se assenta como uma decor-
rência lógica, ao menos na sua plenitude, pois a concorrência antijurídica e culposa do
agente para a causação do dano bem serve a delimitar os encargos correspondentes.
Ocorre que em se tornando insuf‌icientes os referidos conceitos para este f‌im, o que
decorreu da ampliação da consciência coletiva segundo a qual situações outras neles
não subsumíveis mereciam idêntica tutela, surge de modo muito evidente o antes
aludido conf‌lito de interesses: ora, agindo lesante e lesado nos limites da licitude
em sentido estrito – ou seja, fora da área de atuação do ato ilícito enquanto conceito
conformador da responsabilidade subjetiva –, como é possível estabelecer, de modo
ef‌iciente, quem deverá suportar o dano?
Não se desconsidera que situações como a antes descrita tinham (e têm) solução
bastante clara em um regime lastreado na culpa, o que se dá por meio da imposição ao
lesado dos ônus de arcar com eventuais prejuízos, nas hipóteses de impossibilidade
de se imputar ao lesante um ato ilícito, tudo reconduzindo à ideia de fatalidade6. Em
linhas mais precisas, se o deslocamento do dano de uma esfera jurídica para outra
constitui hipótese excepcional, já que apenas à vista da concorrência antijurídica e
culposa do agente é que se legitima por meio da imposição de um dever de reparar – sob
pena de que o vínculo jurídico correspondente conf‌lite com os dogmas da liberdade,
da vontade e da autonomia privada, então diretrizes do direito das obrigações como
um todo7 –, a tendência era de que grande parte dos prejuízos permanecessem nas
respectivas esferas em que verif‌icados.
Ocorre que a mudança do paradigma econômico-social fez multiplicarem-se
exponencialmente as então ditas fatalidades, assim entendidas porque verdadeiras
obras do acaso que, não sendo atribuíveis à responsabilidade (enquanto sinônimo de
delito em sentido lato) de ninguém, deveriam ser suportados pelas próprias vítimas.
Exatamente por isso é que o tendencial imobilismo do dano passou a contrastar com
o senso de justiça então vigente, implicando na intolerância da manutenção deste
menor”. Tal representa, com bastante precisão, o que pode suceder com a responsabilidade civil e a forma
como opera a imputação dos danos: não signif‌ica que o princípio da culpa seja negado ou deva ser descon-
siderado porquanto ultrapassado, mas que deve ser compreendido como algo que, por se estabelecer entre
iguais ou, em outras palavras, por bem regular relações que se pautam pela igualdade, nem sempre é de
todo adequado à satisfação das novas necessidades que se impõem.
6. BARCELLONA, Mario. La responsabilità extracontrattuale, cit., p. 09-10.
7. Como bem observa CASTRONOVO, Carlo. La nuova responsabilità civile, cit., p. 333, as máximas assentadas
no individualismo e nas premissas teóricas sobre as quais se funda eram mais sensíveis à tutela da liberdade
do agente (no caso, do lesante) do que à defesa do interesse lesado (no caso, da vítima do dano).
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status quo, mas não sem acarretar o surgimento do autêntico conf‌lito de interesses
entre lesante e lesado, o qual careceu de ser gerido pela responsabilidade civil8.
É de se notar que esta gestão por intermédio de uma ponderação entre interesses
que se dá fora da margem de abrangência do regime do ato ilícito, tal qual se está a
propor, não se trata de um juízo a ser exercido com ampla liberdade pelo intérprete,
sob pena de conduzir ao estabelecimento de uma típica “justiça com o coração”9.
A valoração comparativa dos interesses que se apresentam contrapostos diante da
causação do dano deve ser feita nos estritos limites dos valores consagrados pelo di-
reito positivo10, o que não signif‌icar dizer, entretanto, que não há alguma margem de
construção (mesmo que limitada), porquanto as regras de imputação vêm previstas
em autênticas cláusulas gerais que, por isso, necessitam ser concretizadas.
Para este f‌im, a ponderação imprescindível à demarcação do dano a ser ressarci-
do – que se apresenta ainda mais intrincada no campo da responsabilidade objetiva
– passará por uma valoração de cunho jurídico que pressupõe a individualização
dos interesses que, na situação versada, mostram-se preponderantes para f‌ins de
proteção. Incumbe, nesta linha, valorar o interesse do lesado em ser ressarcido (ou,
visto de outro modo, o interesse do lesado em permanecer indene) e, em paralelo, o
interesse do lesante na realização do ato ou do fato, no desenvolvimento da atividade
ou no exercício da posição jurídica (elementos que se constituem em possíveis fatores
legais de imputação objetiva), solvendo a controvérsia advinda da causação do dano
por intermédio de um balanço entre ambos e a partir de um juízo axiológico à vista
dos preceitos normativos vigentes11.
E tal processo de demarcação não se pode dar de todo a priori12, prescindindo da
situação concreta, já que somente diante da análise de todas as intercorrências rela-
cionadas à causação do dano é que será possível concretizar a seleção dos interesses
que, na espécie, mostram-se prevalentes, tudo através de um juízo de comparação
pautado, como dito, pelas normas vigentes no ordenamento jurídico13.
8. Neste particular é que se deu a def‌initiva ruptura entre responsabilidade penal, enquanto resposta ao ilícito,
e responsabilidade civil, enquanto resposta ao dano, que já se iniciara em momento precedente, com a au-
tonomia dogmática dos institutos, mas talvez não ideológica. Nas situações associadas às ditas fatalidades,
não se podia falar propriamente na existência de um culpado, mas na causação de um dano cuja imputação
à vítima não podia ser admitida e, por isso, carecia de ser resolvida através de uma ponderação de interesses
que passou a ser realizada pela responsabilidade civil.
9. Para usar aqui uma expressão atribuível a FRADA, Manuel Carneiro da. A equidade (ou a ‘justiça com o
coração’), cit., p. 109, o que não condiz nem de perto com o que se busca concretizar por meio do juízo de
ponderação de interesses do qual se está a tratar.
10. DI LAURO, Antonino Procida Mirabelli; FEOLA, Maria. La responsabilità civile, cit., p. 190.
11. Nesta linha, MONATERI, Pier Giuseppe. L’ingiustizia di cui all’art. 2043 C.C.: una nozione salda o un’occasione
di revisione codicistica? Rivista di Diritto Civile, Padova, a. 52, n. 6, p. 523-529, nov./dic. 2006, p. 525, fala
na instituição de uma ordem axiológica de prevalência entre as posições subjetivas contrapostas por meio
da individualização de critérios decisórios resolutivos do conf‌lito entre lesante e lesado.
12. MONATERI, Pier Giuseppe. L’ingiustizia..., cit., p. 525.
13. O reconhecimento da necessidade de se estabelecer uma clara ponderação de interesses na concretização
da responsabilidade civil, especialmente a partir de premissas estabelecidas tendo em conta a natureza dos
bens jurídicos em causa, f‌ica claro quando se atenta à forma como a matéria veio tratada, por exemplo, nos
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A operacionalização desta ponderação terá contornos variados que tomarão por
base, por primeiro, em qual dos dois grandes regimes se sustenta a imputação: se no
de matriz subjetiva, fundado no princípio da culpa, ou se no de matriz objetiva, fun-
dado no princípio da solidariedade. Portanto, deve-se ter em mente que, consoante
já af‌irmado, a mudança de paradigma que permitiu uma maior atenção aos regimes
de responsabilidade objetiva não signif‌icou uma negação absoluta da relevância
jurídica da culpa, mas apenas a sua realocação em paralelo com situações outras nas
quais fossem buscadas (não apenas a sua legitimidade, mas a própria atribuição de
responsabilidade) em fatores alternativos ao ato ilícito.
Daí porque se fala em um sistema bipolar de responsabilidade civil14, o qual se
materializa por intermédio de um paradigma dicotômico15. Partindo da premissa
segundo a qual enquanto as atividades individuais, características que são da vida
normal de relação, submetem-se a ao regime tradicional alicerçado na culpa, haverá
uma gama de situações outras relacionadas a condutas, atividades ou mesmo posi-
ções jurídicas cuja relevância e especial desconexão com a normalidade da atuação
humana demandam um regime de imputação que, partindo de critérios diversos
(risco, perigo, vulnerabilidade e garantia, dentre outros), autorizem o surgimento
de um dever de indenizar para além da constatação da prática de um ato ilícito.
A verif‌icação desta realidade bem permite concluir que não se trata da absoluta
substituição do regime da culpa por outro de matriz objetiva; a evolução, aqui, sig-
nif‌ica exatamente compatibilizar ambos os regimes, cada um tendente a regular as
situações que lhe são características16.
trabalhos desenvolvidos pelo European Group on Tort Law. Na síntese apresentada por meio dos Princípios
de Direito Europeu da Responsabilidade Civil, em especial no seu título II, capítulo 2, quando são tratados
acerca dos interesses protegidos para f‌ins de delimitação do conceito de dano ressarcível, restou assentado
(artigo 2:102) que “[a] extensão da protecção de um interesse depende da sua natureza; quanto mais valioso
e mais precisa a sua def‌inição e notoriedade, mais ampla será a sua proteção”, bem como que “[a] extensão da
proteção poderá também ser afectada pela natureza da responsabilidade, de forma que um interesse possa ser
mais extensamente protegido face a lesões intencionais do que em outros casos” e que “[n]a determinação da
extensão da proteção, devem também ser tomados em consideração os interesses do agente, especialmente na
sua liberdade de acção e no exercício dos seus direitos, bem como no interesse público”. Não há dúvidas de que
houve não só um expresso reconhecimento de que a responsabilidade civil contemporânea vem reconduzida,
inexoravelmente, a uma ponderação de interesses contrapostos, como também que tal mister deve tomar por
base balizas bem postas – consoante sintetizado com propriedade – que, no entanto, somente serão concretizadas
na sua plenitude à vista das circunstâncias em concreto do problema posto, a partir do qual se possam delimitar
os interesses em causa, a natureza de cada um, o grau de comprometimento a partir da lesão e a sua especial
relevância tendo em vista as natureza e as características da violação, sempre guardando a necessidade de se
conciliar a proteção do ofendido com a liberdade de atuação e de exercício dos direitos titulados pelo lesante e
o interesse público. O mesmo se infere em CASTRONOVO, Carlo; MAZZAMUTO, Salvatore. Manuale..., cit.,
p. 224-226, quando, tratando das características da responsabilidade civil no direito europeu comunitário,
atentam para a especial atenção dispensada aos danos à pessoa, de modo a ressaltar, com isso, a prevalência
da proteção conferida aos interesses correspondentes quando contrapostos a outros e reforçar a relevância da
natureza dos bens jurídicos quando da realização da ponderação que caracteriza o instituto em causa.
14. SALVI, Cesare. La responsabilità civile, cit., p. 148-149.
15. BARCELLONA, Mario. La responsabilità extracontrattuale, cit., p. 13-15.
16. HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Responsabilidade pressuposta. Evolução de fundamentos
e de paradigmas da responsabilidade civil na contemporaneidade. Revista Jurídica, São Paulo, v. 364, p.
35-62, fev. 2008, p. 49.
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Tendo em conta tais premissas é que cumpre delimitar como e com quais pa-
râmetros será realizado, no campo da imputação objetiva, o juízo de ponderação de
interesses que se apresenta como marca da responsabilidade civil na pós-modernidade,
extraindo-se disso fator de unidade do regime geral cuja existência se está a sustentar.
1.1.2 A seleção dos danos ressarcíveis no regime geral de imputação objetiva
Na linha do que fora até aqui desenvolvido, a colisão entre interesses, em tese,
igualmente legítimos, associados à ocorrência de um dano e à imprescindibilidade
de bem gerir o exercício de cada uma das esferas jurídicas envolvidas, permitiu o
alargamento do campo operativo da responsabilidade sem culpa. Isso porque, to-
mando-se por base um regime de natureza subjetiva, é possível delimitar, por meio
do conceito de ato ilícito, uma transgressão atribuível ao lesante que, deste modo,
legitima o surgimento do vínculo obrigacional reparatório, realidade que não se
replica com a mesma clareza nos regimes de matriz objetiva.
Parte-se, portanto, da máxima segundo a qual inúmeras atuações das quais
provêm os danos são, em princípio, não apenas lícitas, mas, mais do que isso, úteis
e relevantes socialmente, de maneira que a sua proscrição, total ou parcial, não é
alternativa razoável; a gestão é, pois, a única alternativa ef‌iciente na composição dos
interesses contrapostos.
Para solucionar os problemas de imputação que decorrem desta realidade é que
se estrutura a responsabilidade civil objetiva, permitindo seja realizada a pondera-
ção antes tratada, que se estabelece a partir do balanceamento entre a atuação ou a
condição jurídica do lesante e a posição em que se encontra a vítima17. Tal se dá por
intermédio da avaliação e da valoração da situação sob exame, para o f‌im de se esta-
belecer se é razoável que o dano permaneça na esfera jurídica em que se consumou
ou se é oportuno o seu deslocamento a partir de diretrizes de cunho exclusivamente
jurídico.
Uma vez mais cumpre destacar que não se trata de um processo intuitivo ou pau-
tado por um juízo de equidade, sob pena de, com o intuito de solucionar o problema
advindo da causação do dano, incorrer-se em arbitrariedade voluntariosa. Trata-se,
como dito, de um balanceamento em termos exclusivamente jurídico-normativos,
à vista do direito posto, apenas com alguma margem interpretativa no que tange à
subsunção dos fatos nas regras e nos princípios vigentes em cada sistema em matéria
de responsabilidade civil objetiva.
17. A este propósito, consoante SALVI, Cesare. Il danno extracontrattuale. Modelli e funzioni. Napoli: Jovene,
1985, p. 36, a valoração comparativa dos interesses contrapostos, que se situa no certe na responsabilida-
de civil, pressupõe compreender, de igual sorte, que o juízo de imputação respectivo é intrinsecamente
permeado por uma valoração que, na essência, pode transcender uma consideração estritamente privada
acerca da posição das partes. Exatamente por isso é que identif‌icar o grau desta transcendência será tarefa
de suma importância na realização da ponderação ora sob exame, especialmente no campo da responsabi-
lidade civil, no qual os preceitos normativos vigentes autorizam um olhar atendo à situação da vítima, em
razão de dadas peculiaridades do caso.
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A busca, então, de um equilíbrio entre os interesses em jogo e, na impossibili-
dade disso, da imposição de um maior ônus ao agente que mais estreitamente esteja
conectado ao dano – e não apenas àquele cuja culpa possa ser provada ou àquele
que tenha melhores condições econômicas de suportá-lo18 – foram as alternativas
encontradas, que se materializaram na aplicação das diversas fattispecie de impu-
tação objetiva. E, nos moldes em que já asseverado em linhas gerais até o presente
momento, cumpre reconhecer que as balizas de ponderação que estão subjacentes
à solução deste conf‌lito são postas no próprio direito vigente19.
Num plano precedente, através do estabelecimento das hipóteses nas quais, a
partir de uma ponderação em abstrato dos interesses envolvidos, legitima-se o esta-
belecimento de um regime agravado de responsabilidade, com vistas a privilegiar a
tutela da vítima (ou, visto a partir de outro ângulo, das situações nas quais é pertinente
deixar que os preceitos elementares de imputação lastreados no princípio da culpa
regulem a controvérsia). Neste momento, é o próprio ordenamento jurídico que,
valorando abstratamente situações e condições, permite que a transferência do dano
ao sujeito assim legalmente predisposto como responsável prepondere em relação
ao imobilismo que poderia advir de uma imputação assentada na culpa.
Num plano subsequente, quando, por meio da subsunção do caso concreto
às fattispecie que predispõem regimes de imputação objetiva, opera-se a valoração
jurídica dos fatos à luz do preceito vigente, modulando-se, com isso, o âmbito de
aplicação da responsabilidade agravada. Dita modulação pode-se dar seja com a ve-
rif‌icação do atendimento, por parte da situação posta, do suporte fático necessário
ao surgimento do dever de indenizar para além da culpa, seja com a interpretação
do alcance das situações de exclusão da responsabilidade.
Não há dúvidas que o grupo de situações que integra o então dito plano sub-
sequente é aquele no qual a riqueza do juízo de ponderação se mostra mais intensa,
porquanto permite ajustar às necessidades do ordenamento jurídico as regras de
18. Tem sido frequente na doutrina, especialmente de língua inglesa, o recurso à expressão deep pocket para
aludir a esta situação, que se caracteriza na hipótese em que são tomadas em conta as melhores condições
econômicas de um determinado agente para suportar os prejuízos, independentemente de uma valora-
ção mais acurada acerca do que legitima esta atribuição de ônus para além dos seus assim ditos bolsos
profundos. A crítica que se formula a esta proposição simplista reside no fato de que não se constitui em
autêntico critério de responsabilidade, já que tal pressupõe uma constante através da formulação de um
modelo que sirva a explicar internamente o surgimento do vínculo obrigacional, o que não se apresenta
minimamente viável apenas tendo em conta as condições patrimoniais mais favoráveis de uma das partes.
Sobre o tema, CASTRONOVO, Carlo. La nuova responsabilità civile, cit., p. 336. Tanto que, aludindo a esta
situação – também identif‌icada, em língua francesa, pela expressão richese oblige – CASTRONOVO, Carlo.
Responsabilità oggettiva, cit., p. 09, fala, com o intuito de bem demonstrar a sua atecnia, em “modelos falsos
de responsabilidade objetiva”.
19. A este respeito, atenta CASTRONOVO, Carlo. Responsabilità oggettiva, cit., p. 04, para o fato de que o
desenvolvimento da responsabilidade objetiva dá-se por meio de duas linhas, sendo uma legislativa, com a
expansão das regras de imputação, nos termos do que se tem verif‌icado desde os primórdios do século XX,
e outra jurisprudencial, com o aprimoramento da interpretação possível dos dispositivos vigentes, para o
f‌im de, por meio desta tarefa, modular o juízo de ponderação a se estabelecer entre as posições do lesante
e do lesado em uma diversidade de situações.
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CAPÍTULO 5 • BASES PARA A RECONSTRUÇÃO UNITÁRIA DE UM REGIME GERAL
imputação objetiva20. Sem prejuízo dos riscos que possa encerrar, pois, ao menos em
tese, permitiria eventuais extensões indevidas do âmbito da responsabilidade civil,
não é o que se tem verif‌icado na prática, que vem materializada por intermédio de
uma aplicação lúcida dos preceitos legais de regência21.
Dois exemplos, aliás, são bastante elucidativos do que se está a sustentar.
O primeiro diz respeito à forma como a Corte de Cassação italiana, interpretando
o preceito dos artigos 2.047 (dano causado pelo incapaz), 2.049 (responsabilidade
do comitente), 2.050 (responsabilidade pelo exercício de atividades perigosas),
2.051 (danos causados pela coisa em custódia), 2.052 (dano causado por animais) e
2.053 (danos causados pela ruína de edifício) do Codice Civile de 1942, reconduziu
normas cuja redação não era clara quanto à opção pelo regime adotado a hipóteses
de imputação objetiva22. Nestes casos, interpretando os elementos do suporte fáti-
co das fattispecie referidas, a jurisprudência afastou o que tendencialmente seriam
regras de matriz subjetiva23 – até mesmo pela época em que redigidos os preceitos
20. Esta maior riqueza que decorre do processo de subsunção f‌ica ainda mais evidente quando contraposta às
limitações inerentes às reduzidas possibilidades de inovações no que tange à opção legislativa quanto ao
regime jurídico de imputação. Isso porque o entendimento preponderante é no sentido da inadmissibilidade
de extensão analógica das normas de responsabilidade objetiva. Neste sentido, FORCHIELLI, Paolo. Res-
ponsabilità oggettiva, cit., p. 05; BARBOSA, Mafalda Miranda. Estudos..., cit., p. 97 e ss., inclusive notas 176
e 177. Não obstante não se esteja de acordo com o fundamento normalmente invocado para justif‌icar esta
inadmissibilidade, qual seja, a natureza excepcional da imputação objetiva (a qual já é deveras questionada
nos dias atuais, tendo em vista a igual magnitude com que os ordenamentos preveem ambos os regimes),
não há como se deixar de reconhecer que, com efeito, não há espaço para a analogia neste particular. Ora, se
o sistema jurídico, operando em abstrato a ponderação correspondente, estabelece que, em dada situação,
o nexo de imputação será ou não a culpa, não cabe ao intérprete, com base em qualquer sorte de argumen-
tação, contrapor esta opção. Questão mais intrincada reside, contudo, nas situações em que esta opção não
é expressa, existindo margem interpretativa a respeito, tal qual, aliás, sucedeu no sistema jurídico italiano
com diversos dos dispositivos do Código Civil de 1942. Nestes casos, como não está estabelecido o regime
jurídico de imputação, af‌igura-se viável, por meio da subsunção, interpretar se os elementos do suporte
fático exigem ou não a presença do ato ilícito, sem que tal se caracterize como uma aplicação analógica.
21. A propósito, mesmo que a temática volte a ser retomada, não há como se deixar de fazer menção da experiência
brasileira na aplicação do artigo 927, parágrafo único, do Código Civil de 2002, o qual contém uma típica
cláusula geral cuja imputação se dá com base no risco da atividade. Sobre o tema, inclusive assinalando a
prudência e a moderação com que o dispositivo tem sido aplicado nos seus já quinze anos de vigência, ver
SANSEVERINO, Paulo de Tarso Vieira. Cláusula geral de risco e a jurisprudência dos Tribunais Superiores. In:
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Doutrina: edição comemorativa, 25 anos. Brasília, Superior Tribunal
de Justiça, 2014, p. 361.
22. O tema foi largamente tratado na parte primeira do capítulo segundo da presente investigação, com referência
a diversos precedentes a respeito, mesmo que, na altura, o intento fosse outro, qual seja, demonstrar que as
situações de responsabilidade objetiva estruturadas a partir da interpretação judicial daqueles dispositivos
não encontravam a sua fonte de legitimação unitária nas diversas teorias do risco. Daí porque, para f‌ins de
não tornar a exposição demasiado longa, consinta-se reenviar à abordagem anterior, especialmente § 1º,
itens 2.1 e 2.2 e as suas respectivas subdivisões.
23. A propósito, como ressalta CASTRONOVO, Carlo. Responsabilità oggettiva, cit., p. 06, esta mutação não
foi uma realidade vivida apenas no direito italiano, sendo observável, com igual intensidade, no sistema
jurídico francês, com a reinterpretação de uma série de dispositivos para o f‌im de reconduzi-los a regras de
imputação objetiva. Exemplo clássico deste fenômeno, consoante analisado com vagar no curso do primeiro
capítulo, sucedeu com o artigo 1.384, n. 1, do Code Napoléon, com base no qual, vencido o princípio pas de
responsabilité sans faute, foi possível a criação de uma ampla regra de responsabilidade objetiva pelo fato da
coisa. Sobre o tema, JOSSERAND, Louis. Evolução..., cit., p. 555.
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RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA DA FRAGMENTARIEDADE À RECONSTRUÇÃO SISTEMÁTICA
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legais em comento –, fazendo-o por meio do reconhecimento da ausência de ex-
presso condicionamento à concorrência culposa e da limitação da prova liberatória
consentida ao lesante.
O segundo, à maneira como a jurisprudência brasileira tem interpretado o
alcance das excludentes do caso fortuito e da força maior, consoante também ana-
lisado em momento precedente24, no âmbito das quais tem sido possível identif‌icar
uma progressiva restrição, inclusive com a tendência de modular a sua incidência
ao escopo da norma de proteção dos interesses lesados. É bem representativa desta
realidade25 a diferenciação estabelecida entre os conceitos de fortuito interno e for-
tuito externo, para o f‌im de entender que apenas nesta última situação será possível
reconhecer como insubsistente o nexo de causalidade imprescindível ao surgimento
do dever de indenizar, que vai assim obstado26.
Ambas as situações por meio das quais se operacionaliza o balanceamento de in-
teresses que, na atualidade, tem caracterizado a responsabilidade civil – especialmente
a de natureza objetiva, pelo conf‌lito mais agravado que se apresenta entre a liberdade
de ação do sujeito que exerce uma atividade, em tese, permitida e a necessidade de
preservação dos interesses da vítima – tendem a ganhar relevo com o estabelecimento
de preceitos mais abertos para regular a matéria27. Como não são infrequentes até
mesmo a disposição de normas de imputação objetiva através de genuínas cláusulas
gerais28, nestes casos será necessário, quando da sua concretização, uma demarcação
mais ou menos alargada dos seus limites, por meio da modulação dos elementos do
suporte fático da fattispecie.
24. Neste particular, mais uma vez permita-se a remissão ao item 2.1.3, § 2º, do capítulo terceiro.
25. Realidade que se lastreia na conveniência de se ponderar as posições do lesante e do lesado a partir das
regras que preveem a imputação objetiva, adaptando-as para o f‌im de atribuir os ônus ao agente que mais
intimamente esteja conectado com o dano e com a fonte da qual provém.
26. Isso porque se entende que, no fortuito interno, como o fato que, em tese, seria interruptor do nexo de
causalidade está, de algum modo, associado à fonte do dano (por isso ele é dito interno), não seria legítimo
imputar à vítima os ônus de suportar o prejuízo respectivo. Trata-se, evidentemente, de uma ponderação
entre os interesses contrapostos no caso, para o f‌im de, a partir do seu balanceamento, demarcar o alcance
da regra de imputação objetiva, por meio da limitação das suas possibilidades de exclusão.
27. Como acentua SALVI, Cesare. Il danno extracontrattuale, cit., p. 153, o fato de a disciplina da responsabilidade
civil, inclusive objetiva, recorrer de modo mais intenso a cláusulas e normas gerais consente-lhe a realização
de interpretações mais perspicazes do que aquelas possíveis em outros setores do direito privado.
28. Muito já se debateu acerca da pertinência de que as regras de responsabilidade objetiva pudessem ser reguladas
por meio de cláusulas gerais. Sobre o tema, BARBOSA, Mafalda Miranda. Estudos a propósito..., cit., p. 97 e
ss.; igualmente, relevante é a síntese apresentada em MORAES, Maria Celina Bodin de. Risco, solidariedade
e responsabilidade objetiva. Revista dos Tribunais, São Paulo, a. 95, v. 854, p. 11-37, dez. 2006, p. 17. Não há
como se negar, porém, que com maior ou menor amplitude, as previsões existentes nos três ordenamentos
jurídicos sob comparação assim o fazem quando tratam da responsabilidade pelo risco/perigo da atividade,
pois, no caso concreto, caberá ao interprete precisar o que é uma atividade perigosa ou arriscada. A situação
é ainda mais evidente acerca do emprego das cláusulas gerais quando se atenta aos dispositivos do Código
Civil brasileiro que, por datar de 2002, foi mais explícito na sua opção a respeito, nomeadamente tendo
em conta a regra do seu artigo 927, parágrafo único, que de algum modo retoma a problemática do âmbito
de aplicação das regras dos artigos 2.050 do Código Civil italiano e 493, n. 2, do Código Civil português,
relativamente à responsabilidade pelas atividades de risco (para aludir ao elemento de imputação da norma
brasileira) ou perigosas (nos termos das normas italiana e portuguesa).
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CAPÍTULO 5 • BASES PARA A RECONSTRUÇÃO UNITÁRIA DE UM REGIME GERAL
Deve-se aqui reconhecer que não obstante este processo de ponderação que se
estabeleça por meio da subsunção dos fatos às regras de imputação objetiva tenha uma
natureza eminentemente normativo-dogmática, pois pautados por critérios jurídicos,
existe certa margem para a atuação de elementos de ordem variada – não apenas socio-
econômicos, mas até mesmo culturais29 –, o que pode levar a soluções diversas, mesmo
à vista de regras semelhantes, especialmente no âmbito da comparação jurídica30.
À vista de todas as ponderações até aqui postas e considerando a forma como a
responsabilidade civil objetiva, por meio do juízo de ponderação que lhe é intrínse-
co, opera a seleção dos interesses merecedores de tutela no seu âmbito de aplicação,
cumpre reconhecer que a mudança de paradigma que hoje permite falar em um re-
gime geral paralelo àquele legitimado no princípio da culpa31 deu-se por intermédio
29. A este respeito, SMORTO, Guido. Il criterio di imputazione..., cit., p. 423 e ss., atenta para a necessidade de
atenção às mudanças de ordem econômica e social que, a par da padronização que é típica de uma realidade
globalizada, nem sempre é vivida de igual forma e com igual intensidade em todos os sistemas jurídicos.
Neste particular é que ganha relevo o elemento cultural de que fala CASTRONOVO, Carlo. La nuova res-
ponsabilità civile, cit., p. 339, em especial para que se compreenda a forma como, por meio de um processo
histórico de estruturação, dá-se a demarcação do campo operativo da responsabilidade objetiva em cada
sistema jurídico, inclusive no que toca à formação dos juristas, que são os responsáveis pela mudança dos
paradigmas interpretativos.
30. Especial interesse desperta no comparatista a situação do artigo 2.050 do Código Civil italiano (“Qualquer
um que causa dano a outrem no desenvolvimento de uma atividade perigosa, pela sua natureza ou pela
natureza dos meios usados, é obrigado ao ressarcimento, se não prova de haver adotado todas as medidas
idôneas a evitar o dano”), quando comparada àquela vivenciada a partir da aplicação do artigo 493, n. 2,
do congênere português (“Quem causar danos a outrem no exercício de uma atividade, perigosa por sua
própria natureza ou pela natureza dos meios utilizados, é obrigado a repará-los, exceto se mostrar que
empregou todas as providências exigidas pelas circunstâncias com o f‌im de os prevenir”). Não obstante a
redação dos preceitos seja, em essência, a mesma, a Corte di Cassazione conduziu a sua jurisprudência no
sentido da existência de uma regra de imputação objetiva, ao passo em que o Supremo Tribunal de Justiça
luso manteve-se f‌iel à responsabilidade subjetiva, reconhecendo que “[a] presunção legal de culpa do n. 2
do artigo 493.º do Código Civil tem com facto-base o exercício de uma actividade perigosa” (PORTUGAL.
Supremo Tribunal de Justiça. Processo n. 1593/07.7TBPVZ.P1.S1. 1ª Secção. Rel. Cons. Sebastião Póvoas.
Julgado em: 28 out. 2014). Em idêntico sentido, inclusive de maneira mais expressa, tem asseverado que
“[a] obrigação repousa nas normas do art. 493.º CC, que elegem como sua fonte a omissão do dever de agir
para evitar o dano por quem criar ou mantiver uma “fonte especial de perigo” do qual esse dano resulte.
(...) A violação dos deveres de prevenção do perigo ou deveres de tráfego, quando comprovada a efectiva
abstenção do dever de adoptar as necessárias medidas de prevenção, permite basear a responsabilidade
em culpa efectiva e não meramente presumida” (PORTUGAL. Supremo Tribunal de Justiça. Processo n.
95/08.9TBAMM.P1.S1. 1ª Secção. Rel. Cons. Alves Velho. Julgado em: 11 jul. 2013). Ambos os preceden-
tes disponíveis em: . Acesso em: 17 out. 2017. É
notório reconhecer que, no caso da responsabilidade pelo exercício das atividades perigosas, os juízos de
ponderação realizados quando da aplicação dos preceitos não foram os mesmos (ao menos não com o mesmo
alcance), pois, quando da sua aplicação, partindo de um ponto de largada muito próximo – no caso, a letra
dos preceitos em causa –, foi possível chegar a destinos diversos a respeito da natureza da imputação.
31. Por isso se fala, tal qual já se teve oportunidade de aludir, na construção de um autêntico sistema bipolar,
binário ou dualista de gestão dos danos, no qual os regimes de matriz subjetiva e objetiva são, em paralelo,
gêneros de uma mesma espécie, formadores conjuntos de uma ideia global de responsabilidade civil. As-
sim, SALVI, Cesare. La responsabilità civile, cit., p. 148-149. A diferença entre ambos, conforme MORAES,
Maria Celina Bodin de. Risco..., cit., p. 20, nota 43, estaria no fato de cada um destes ditos polos fundar-se
em conceitos diversos de justiça (retributiva ou comutativa na responsabilidade subjetiva e distributiva na
responsabilidade objetiva); ainda segundo a autora, af‌irmação que faz com respaldo nas doutrinas alemã e
francesa, dita diferenciação tem adquirido relevos de consensualidade, sendo reconhecida até mesmo pelos
críticos do sistema dualista.
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RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA DA FRAGMENTARIEDADE À RECONSTRUÇÃO SISTEMÁTICA
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de um inegável processo de objetivação do dado em relação ao qual vai pronunciado
o juízo de responsabilidade, com o desvio da atenção da f‌igura do lesante para a do
lesado32. Nesta tarefa, será de grande valia o estabelecimento de um diálogo efetivo
entre as suas estruturas e o seu fundamento de legitimação, no caso, o princípio da
solidariedade.
1.2 O princípio da solidariedade e a unidade da responsabilidade objetiva
Vencido um contexto cultural impregnado pelo dogma da culpa e na medida em
que as hipóteses de responsabilidade objetiva deixaram de ser marginais e passaram
a ocupar um espaço considerável no quadro da imputação de danos33, apresentou-se
imprescindível estruturar uma fundamentação teórica com adequadas condições a
justif‌icar o surgimento de um dever de reparação para além das situações em que
evidenciada a prática de um ato ilícito, ao menos nas suas feições clássicas.
E, nesta linha, não obstante a estrutura geral da responsabilidade subjetiva fosse
um ponto de partida relevante para f‌ins de se efetivar a tentativa de construção do
fundamento e do regime jurídico da imputação objetiva, foi necessário reconhecer
que a divisão do campo operativo do instituto em duas partes – então já dito antes
modelo binário – criou institutos de algum modo autônomos, com pressupostos e
modo de operação diversos34. Antes de mais, reconhecer esta realidade é tarefa im-
prescindível à consecução do f‌im a que ora se propõe realizar.
Atentando-se à dicotomia aqui assinalada, buscou-se apresentar, em momento
precedente, a forma como a aparente fragmentariedade da regulação da responsabi-
lidade objetiva, que lança mão de nexos de imputação variados à formação do vín-
culo obrigacional reparatório, tem em si subjacente um fundamento de legitimação
unitário. Nestes termos, a noção revisitada de solidariedade – em especial na sua
interconexão com as ideias de justiça distributiva e de igualdade substancial e na
consideração do indivíduo enquanto sujeito situado – permitiu legitimar uma série de
situações que, não tendo solução satisfatória a partir do juízo de desvalor decorrente
da culpa, careciam de um princípio uniforme de justif‌icação.
Imprescindível, por isso, para f‌ins de colmatar a validação de um regime geral
e unitário, nos moldes ora propostos, verif‌icar a forma como a responsabilidade
objetiva concretiza a realização do princípio da solidariedade – que, como visto, lhe
serve de fundamento de legitimação –, o que o faz por meio da constituição de um
ef‌icaz f‌iltro de seleção dos interesses merecedores de tutela.
32. DI LAURO, Antonino Procida Mirabelli; FEOLA, Maria. La responsabilità civile, cit., p. 188.
33. Consoante assevera SILVA, João Calvão da. Responsabilidade civil do produtor, cit., p. 101, o reconhecimento
do princípio da solidariedade na responsabilidade civil implicou na incorporação do ethos do Estado So-
cial de Direito que, na sua interface com a culpa, permitiu o alargamento progressivo da responsabilidade
objetiva.
34. CASTRONOVO, Carlo. La nuova responsabilità civile, cit., p. 330-331.
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CAPÍTULO 5 • BASES PARA A RECONSTRUÇÃO UNITÁRIA DE UM REGIME GERAL
1.2.1 A concretização da noção jurídica de solidariedade por meio da
responsabilidade objetiva
A superação de um modelo de imputação excessivamente liberal, assente na
unidade do ato ilícito (juridicamente qualif‌icável como antijurídico e culposo)
enquanto fonte do dever de indenizar35, representou uma forma de trazer maior
proteção a eventuais vítimas do fato danoso. Ocorre que a forma como se operam
os desdobramentos desta superação – nomeadamente por intermédio da ampliação
dos regimes de imputação objetiva – deve ser adequadamente manejada, sob pena de
desvirtuamento da responsabilidade civil enquanto categoria jurídica, quanto mais
tendo em vista que o emprego equivocado ou adulterado de conceitos normativos
pode implicar na violação da sua própria natureza, conduzindo-os a f‌inalidades
diversas daquelas que lhes são próprias36.
Assim, partindo-se de um conceito revisitado apto a atender as necessidades de
uma sociedade mista37, pode-se af‌irmar que a responsabilidade civil é, hoje, a qualif‌i-
cação negativa de um fato, de um ato, de uma atividade ou de uma condição jurídica
associados à causação de um dano, não necessariamente para caracterizá-los como
ilícitos [rectius, antijurídicos e culposos], mas para o f‌im de permitir transmutarem-se
em fator de atribuição, gravando, com isso, o custo correspondente ao prejuízo na
esfera jurídica de um dado agente por meio de uma obrigação indenizatória38.
Nesta linha, o instituto, em sentido amplo, passa a ser considerado como o ins-
trumento de transferência do prejuízo verif‌icado em uma dada esfera jurídica (aquela
em que se deu) para outra (a do sujeito responsável), pressupondo, para isso, além
de uma norma de imputação apta a autorizar este processo à vista de critérios jurí-
dicos, a existência de um dano não justif‌icável a partir do ponto de vista da vítima39.
Com isso se opera uma redef‌inição funcional da responsabilidade civil, o que se
manifesta por intermédio do deslocamento do foco de atenção da f‌igura do lesante à
35. Neste particular, não é demais relembrar que este processo não é uniforme, fazendo com que etapas inter-
mediárias entre a unicidade de um regime de matriz subjetiva e a amplitude hoje conhecida em matéria de
responsabilidade objetiva, representadas por uma maior objetivação da noção de culpa e pelo estabelecimento
de inversões do ônus da prova ou mesmo de presunções de culpa, tenham sido igualmente relevantes à
recondução da noção atual de responsabilidade civil. Assim, SILVA, João Calvão da. Responsabilidade civil
do produtor, cit., p. 95. No mesmo sentido, MORAES, Maria Celina Bodin de. Risco..., cit., p. 13, nota 10,
quando atenta para a evolução sofrida, por exemplo, no campo da responsabilidade civil decorrente dos
acidentes do trabalho. Partindo do regime geral da culpa e verif‌icada a sua inef‌iciência para fazer frente às
peculiaridades das relações jurídicas correspondentes, os prejuízos a elas associados passaram, primeiro,
a serem geridos por meio de presunções de culpa e, após, por intermédio da responsabilidade objetiva, até
que fosse possível chegar a efetivos regimes de previdência social, o que se fez partindo da premissa de que
“a responsabilidade pelos danos advindos dos acidentes do trabalho deve ser da coletividade, tendo em
vista a função social que a empresa desempenha”.
36. Esta advertência aparece muito clara em CASTRONOVO, Carlo. La nuova responsabilità civile, cit., p. 339,
recomendando, por isso, cautela no manejo do instrumental jurídico disponível no campo da responsabi-
lidade civil.
37. PONZANELI, Giulio. La responsabilità civile. Prof‌ili di diritto comparato. Bologna: Il Mulino, 1992, p. 36.
38. CASTRONOVO, Carlo. La nuova responsabilità civile, cit., p. 338.
39. RODOTÀ, Stefano. Il problema..., cit., p. 139.
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RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA DA FRAGMENTARIEDADE À RECONSTRUÇÃO SISTEMÁTICA
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f‌igura do lesado40, realidade esta, aliás, que adquire especial relevo através do reforço
da função reparadora, a qual se manifesta de maneira precípua na imputação objetiva,
ao contrário do que se pode verif‌icar num regime de matriz subjetiva.
Exatamente por isso é que, nestes termos, a observância do princípio solida-
rístico na seara da gestão dos danos concretiza-se de maneira viva por intermédio
da responsabilidade civil objetiva, na medida em que aumenta a possibilidade da
vítima de se ver reparada pelos prejuízos sofridos, independentemente da efetiva
demonstração de uma concorrência culposa por parte do agente.
Isso, contudo, não signif‌ica dizer que todos os danos que venham a se verif‌icar
poderão ser indenizados, pois, consoante já asseverado em outras oportunidades,
tal se constitui em premissa irrealizável no plano concreto de aplicação do direito.
Por isso é que a atribuição de responsabilidade a partir de uma ponderação entre os
interesses do lesante e do lesado não deixa de ser, em última análise, a concretização
de uma opção jurídica41, carecedora, portanto, não só de legitimação, mas de ade-
quada operacionalidade.
Deve-se aqui retomar a premissa nos termos da qual a atuação de cada sujeito,
seja por meio de ações, omissões, atividades ou mesmo do exercício de posições jurí-
dicas, pela sua própria natureza e tendo em vista a sua interconexão com os demais,
produz efeitos na esfera jurídica de terceiros. Em sendo prejudiciais ditos efeitos ou
mesmo não consentidos, ainda assim é possível que venham a ser legítimos, desde
que produzidos nos precisos limites da legítima tutela dos interesses próprios.
Esta constatação, não obstante intimamente ligada à noção de ato ilícito (espe-
cialmente a partir das clássicas hipóteses de exclusão da ilicitude), não é estranha à
responsabilidade civil objetiva, pois representa o exato ponto de delimitação entre
os prejuízos que serão e que os não serão fonte de reparação. E o princípio da soli-
dariedade não contrasta com esta lógica, muito antes pelo contrário, já que fornece
instrumental42 à ponderação que será estabelecida para f‌ins de delimitação do dano
juridicamente relevante, ou seja, daquele que poderá satisfazer os elementos do su-
porte fático previsto na norma de imputação objetiva e, por conseguinte, legitimará
o surgimento de um vínculo obrigacional indenizatório.
A partir destas diretrizes, deve-se reconhecer que a solidariedade passa a cons-
tituir autêntico valor estrutural e estruturante do direito privado em geral, tradu-
zindo-se, no campo operativo da responsabilidade civil, por meio da exaltação de
uma função ressarcitória que se manifesta de maneira muito clara por intermédio da
40. SALVI, Cesare. Il danno extracontrattuale, cit., p. 155.
41. MORAES, Maria Celina Bodin de. Risco..., cit., p. 13.
42. Neste particular, como assinala MORAES, Maria Celina Bodin de. Risco..., cit., p. 25, “[o] princípio da so-
lidariedade não designa, mas funda-se em um dever”, de maneira que se revela na sua plenitude por meio
do reconhecimento da “interdependência humana”, manifestando-se, no campo da responsabilidade civil,
“na ampla difusão da responsabilidade objetiva”.
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CAPÍTULO 5 • BASES PARA A RECONSTRUÇÃO UNITÁRIA DE UM REGIME GERAL
imputação objetiva43. A propósito, não se desconsidera que, na atualidade, diversas
são as funções relegadas à responsabilidade civil44; a de cunho reparatório (inegavel-
mente preponderante no âmbito de aplicação da responsabilidade objetiva), contudo,
é aquela por meio da qual os ideais solidarísticos concretizam-se de maneira mais
evidente, na medida em que permitem maior atenção à vítima com o surgimento de
um dever de reparar danos independentemente de um juízo de desvalor da conduta
do qual decorrem45.
Constatada a interligação entre o princípio da solidariedade e a função prepon-
derantemente reparadora da responsabilidade objetiva, cumpre estabelecer uma
demarcação muito clara entre o seu campo operativo e o dos demais instrumentos
de socialização dos prejuízos, em especial os seguros46, por meio dos quais também
se concretiza este ideal.
Ora, não obstante tenham áreas de atuação lindeiras, são institutos diversos
que não possuem objeto ou utilidade idênticas, nomeadamente tendo em vista que a
responsabilidade civil – seja ela subjetiva ou objetiva – pressupõe o estabelecimento
de uma razão com legitimidade jurídica para estabelecer a imputação e, deste modo,
coligar uma ocorrência danosa a um sujeito responsável47. Quanto mais porque se
af‌igura deveras questionável a conveniência de se estabelecer que se possa vir a con-
43. SILVA, João Calvão da. Responsabilidade civil do produtor, cit., p. 96.
44. Por mais paradoxal que pareça, o retorno a funções preventivas ou mesmo sancionatórias implicam no
ressurgimento do desvalor da conduta e, por conseguinte, da culpa, não obstante todos os inf‌luxos dire-
cionados à superação da sua hegemonia no campo da legitimação da responsabilidade civil. Ocorre que,
tendo em vista a predominância do viés reparatório da imputação objetiva, o qual se associa intimamente à
concretização do princípio da solidariedade, vai autorizada a dispensa de uma atenção residual a esta pro-
blemática, quanto mais porque, no âmbito investigativo proposto, a reparação dos danos não justif‌icáveis
a partir do ponto de vista da vítima é o intento que se coloca em primeiro plano.
45. É bem verdade que esta atenção à vítima seria passível de ser alcançada por intermédio de medidas preven-
tivas do dano, evitando-se, assim, o prejuízo ao invés de remediá-lo. Contudo, quando se tratou acerca do
princípio da prevenção (capítulo 2, § 2º, item 2), o qual representa a própria concretização da preocupação
com o objetivo de evitar danos, foi possível verif‌icar que não obstante a existência de um regime mais gravoso
de reponsabilidade possa, de algum modo, induzir no agente uma maior atenção com as medidas tendentes
a este f‌im, a responsabilidade civil objetiva está mais intimamente ligada com a ideia de reparação. O intento
preventivo, desta feita, não seria um objetivo principal – sem prejuízo da sua inegável relevância –, mas um
efeito indireto alcançado pela ciência que o possível lesante tem de que, em caso de dano, as suas chances
de ser chamado a responder são maiores.
46. Cita-se como exemplo o regime securitário em função da sua maior abrangência, mas devem ser conside-
rados, também, os regimes de previdência social ou os sistemas no fault, pois identif‌icável em todas estas
hipóteses um traço comum que consiste na possibilidade de transferência dos prejuízos suportados pela
vítima independentemente da satisfação de um juízo de imputação, nos moldes do que se opera com a res-
ponsabilidade civil. Isso porque, consoante já se teve oportunidade de tratar, mesmo na responsabilidade
objetiva, por intermédio da qual se manifesta em algum grau o intento de socialização das externalidades
negativas, opera-se um juízo de valoração do dano sofrido e dos interesses em jogo, sendo pressuposto da
sua possibilidade de atuação a existência de uma estrutura normativa de validação apta a desencadear o
surgimento do dever de reparar, ao contrário do que se passa com os demais instrumentos referidos (seguros,
previdência social e sistema no fault), nos quais não há propriamente um sujeito responsável, para o rateio
do prejuízo entre os integrantes de uma dada coletividade, mais ou menos ampliada. Em palavras mais
precisas, mesmo na responsabilidade civil objetiva, ao contrário do que ocorre nos seguros, por exemplo,
ocorre uma imputação de responsabilidade, havendo, por conseguinte, um sujeito responsável.
47. CASTRONOVO, Carlo. La nuova responsabilità civile, cit., p. 338.
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RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA DA FRAGMENTARIEDADE À RECONSTRUÇÃO SISTEMÁTICA
222
verter em um esquema “assistencialista e securitário” para o qual se prescinda de um
fator de atribuição que, aliás, é consectário da própria noção de responsabilidade48.
Assim, a despeito da interconexão entre solidariedade e responsabilidade ob-
jetiva, não se trata de estabelecer uma reparação indiscriminada, mas de permitir
que o sistema jurídico, à vista de ponderações de cunho estritamente normativo,
permita uma facilitação do acesso à reparação por meio da imputação, mas não uma
autêntica cobertura securitária ampla e irrestrita, para além das hipóteses em que
se legitime uma transferência do dano da esfera jurídica do lesante para a do lesado.
Exatamente por isso é que a ampliação dos seguros, que se tornam obrigatórios
em um número cada vez mais alargado de situações49, não elide a importância da
responsabilidade objetiva, pois, mesmo nas situações em que a cobertura dos danos
decorrerá do pagamento do prêmio correspondente, a indenização estará limitada
a patamares previamente estabelecidos que nem sempre farão frente à totalidade
dos prejuízos verif‌icados. Assim é que, mesmo nestas situações – abstraindo-se,
portanto, o plano metodológico, no qual a diferença decorre da existência de um
juízo de imputação inexistente nos seguros – o dever de reparar que se estabelece
por meio de um juízo de responsabilidade permanece tendo utilidade residual apta
à satisfazer o questionamento que se põe por meio da ponderação entre a mais valia
de uma reparação eventual, mas integral, e uma reparação automática, mas parcial50.
Em linhas gerais, verif‌icada a forma como o princípio da solidariedade, cuja
aplicação transpassa as mais diversas disciplinas do direito privado, concretiza-se
por intermédio da função reparadora exercida de modo muito evidente através da
responsabilidade civil objetiva, cumpre analisar a sua constituição enquanto autên-
tico f‌iltro de seleção dos interesses merecedores de tutela.
1.2.2 O princípio da solidariedade enquanto ltro da reparação
Os estudos desenvolvidos acerca da evolução da responsabilidade objetiva em
áreas dispersas da regulação jurídica, culminando com uma expansão em grau tal apta
a autorizar a proposição de um regime geral unitário para a sua disciplina, permite
concluir, como já se teve oportunidade de ressaltar, que a sua ocorrência está asso-
ciada, em sentido lato, ao conceito alargado de acidente, assim entendido enquanto
48. BARBOSA, Mafalda Miranda. Responsabilidade subjectiva..., cit., p. 568, nota 18.
49. Sobre o tema, CUOCCI, Valentina Vincenza. Crisi dell’assicurazione obbligatoria R.C.A.: I possibili mecca-
nismi correttivi tra risarcimento direto e no fault insurance. In: BUSNELLI, Francesco Donato; COMANDÉ,
Giovanni (a cura di). L’assicurazione tra Codice Civile e nuove esigenze: per un approccio precauzionale
al governo dei rischi. Milano: Giuffrè, 2009, p. 59 e ss. igualmente, na doutrina portuguesa, mesmo que
partindo de uma perspectiva mais limitada (acidentes de viação), mas com oportuna contextualização entre
seguro obrigatório e responsabilidade civil, MATOS, Filipe Albuquerque de. O contrato de seguro obrigatório
de responsabilidade civil automóvel: alguns aspectos do seu regime jurídico. Boletim da Faculdade de Direito,
Coimbra, v. 78, 2002, p. 329 e ss.
50. SILVA, João Calvão da. Responsabilidade civil do produtor, cit., p. 109-110.
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CAPÍTULO 5 • BASES PARA A RECONSTRUÇÃO UNITÁRIA DE UM REGIME GERAL
evento jurídico causador de danos que “devem acontecer”51. Uma maior preocupação
com a vítima – que no campo da responsabilidade civil tende a se concretizar por
intermédio da imputação objetiva – constitui-se em ref‌lexo da socialização que veio
a permear diversas das disciplinas do direito privado52, a qual exige, todavia, cautela
na sua operacionalização, sob pena de o remédio converter-se em veneno em função
do equívoco na dose.
Por esta razão, a especial consideração da situação do lesado, ao passo em
que busca a sua fonte de legitimação no princípio da solidariedade, encontra a sua
concretização por intermédio de um conceito juridicizado de dano, conceito este
que, aliado ao nexo de imputação legalmente previsto, apresenta-se apto a operar a
demarcação entre os prejuízos que merecem ser ressarcidos e aqueles que deverão
permanecer na esfera jurídica em que ocorreram. E, nesta tarefa, é de se reconhecer
que o fundamento da responsabilidade civil objetiva tende a se converter em elemento
mediato de seleção dos danos ressarcíveis53, tarefa que está associada à ideia de gestão
dos recursos disponíveis e das ações individuais e coletivas54.
Nesta linha de concretização é que um rigoroso e preciso critério de demarcação
dos danos ressarcíveis somente pode ser legitimamente encontrado na idoneidade
objetiva da situação em concreto considerada, ao ponto de se compreender que a
intervenção na esfera jurídica alheia não seja legítima. Por isso, a tutela aquiliana dos
interesses protegidos no campo de um regime geral de responsabilidade civil objetiva
deve vir operacionalizada por um duplo f‌iltro: de um lado, a presença de uma situ-
ação juridicamente relevante (pois que tutelada em abstrato pelo ordenamento por
meio da previsão de um nexo de imputação estranho à ideia de ato ilícito); de outro,
a concretização do conceito juridicizado de dano por intermédio do exame, na situ-
ação concreta, da legitimidade, ou não, do prejuízo produzido na esfera do lesado55.
Tal se justif‌ica no fato de que, para que seja justif‌icável, a intervenção corretiva
da responsabilidade objetiva deverá ter lugar nas situações em que esteja legalmente,
faticamente e, mais do que isso, principiologicamente legitimada. Daí porque a con-
veniência de que se submeta a um duplo f‌iltro de valoração, não apenas satisfazendo
de modo objetivo o nexo de imputação previsto no suporte fático da norma que a
prevê (f‌iltro legal), mas também satisfazendo a necessidade de concretização do
princípio da solidariedade, que se manifesta por meio do atendimento do conceito
juridicizado de dano, nos moldes em que proposto no curso da presente investigação
(f‌iltro interpretativo).
51. RODOTÀ, Stefano. Il problema..., cit., p. 21.
52. FRANZONI, Massimo. Dei fatti illeciti (art. 2403-2059). In: GALGANO, Francesco (a cura di). Commentario
del Codice Civile Scialoja-Branca. Bologna: Zanichelli, 1993, p. 40.
53. Mediato porque o elemento imediato é o próprio fator de imputação previsto em cada uma das fattispecie
de responsabilidade objetiva.
54. RODOTÀ, Stefano. Solidarietà, cit., p. 85.
55. BARCELLONA, Mario. La responsabilità extracontrattuale. ..., cit., p. 25-27. Nas palavras do autor, o segundo
critério de demarcação do âmbito de aplicação da responsabilidade civil pode ser sintetizado por meio da
“idoneità oggetiva di una situazione soggetiva ad essere ingiustamente lesa”.
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RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA DA FRAGMENTARIEDADE À RECONSTRUÇÃO SISTEMÁTICA
224
Para dito f‌im, cumpre aqui retomar a ideia estruturante segundo a qual, no
hodierno cenário de evolução do direito privado, a imputação objetiva ganha signi-
f‌icativa relevância no redesenho da noção geral de responsabilidade civil, que veio
profundamente inf‌luenciada por uma rápida transição das relações privadas tradi-
cionais àquelas despersonalizadas, típicas de uma genuína sociedade de massa56.
Nesta senda, o princípio da solidariedade – visto como valor ético e, por isso, como
verdadeira diretriz – materializa a preocupação com o alter de modo amplo, com
o intuito de, por este meio, viabilizar a realização de cada um no contexto coletivo
em que se insere57, fazendo com que uma realidade rica de aspectos diversif‌icados
rejeite a possibilidade de leitura do instituto em termos reducionistas, assim postos
enquanto mera resposta a ações individuais personalizadas.
Visto de outro prisma, pode-se af‌irmar que o movimento contemporâneo da
responsabilidade civil, que resta por ampliar a imputação objetiva para além de situ-
ações meramente excepcionais [rectius, marginais], nasce a partir da demarcação do
distanciamento a ser observado entre dano civil e delito. Assim, permite-se a cons-
trução da ideia segundo a qual não é o sujeito que responde, mas o seu patrimônio,
pelo que não faria senso invocar como pressuposto de todo e qualquer ressarcimento
a antijuridicidade, que é categoria de qualif‌icação da ação.
Tem-se como pressuposto desta ideia a premissa segundo a qual a responsa-
bilidade objetiva encontra o seu ponto de partida exatamente na, em tese, licitude
da conduta, pressupondo a sua caracterização, contudo, a ilegitimidade do dano58.
Dita premissa, contudo, não tem sido percebida de modo linear, fazendo com que a
imputação sem culpa seja, não raro, nocivamente identif‌icada como aquela assente
na mera causalidade, o que tende a enfraquecer a adequada operacionalização do
instituto, ao ponto de até mesmo comprometer a sua legitimidade.
Não há dúvidas de que, num cenário de evolução conceitual, o reconhecimento
de situações amplas e estruturalmente bem concatenadas de responsabilidade objetiva
representou uma opção por parte do ordenamento de promover a retirada do dano da
esfera jurídica da vítima, independentemente da efetiva verif‌icação de um ato ilícito
imputável ao agente59. E isso se dá, sem sombra de dúvidas, em consequência de
uma ponderação que se estabelece a partir dos interesses contrapostos envolvidos.
Tal constatação demanda atente-se para a bilateralidade da relação que se esta-
belece entre lesante e lesado, a qual decorre da própria ideia de solidariedade (que
56. CASTRONOVO, Carlo. La nuova responsabilità civile, cit., p. 275-276.
57. TEPEDINO, Gustavo. Temas de Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, t. II, p. 445. No mesmo norte,
sinaliza MORAES, Maria Celina Bodin de. Risco..., cit., p. 27, para o fato de que “subordinando-se o conceito
de responsabilidade à efetiva reparação dos danos (injustos) sofridos pela vítima, independentemente da
identif‌icação de um culpado, ressalta-se a relação de solidariedade entre a coletividade (na qual se inclui o
autor dano) e a vítima, evidenciando-se desta forma a opção, pelo ordenamento jurídico, da valorização da
pessoa humana, a qual terá o seu prejuízo ressarcido”.
58. CASTRONOVO, Carlo. La nuova responsabilità civile, cit., p. 283.
59. MORAES, Maria Celina Bodin de. Risco..., cit., p. 13.
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CAPÍTULO 5 • BASES PARA A RECONSTRUÇÃO UNITÁRIA DE UM REGIME GERAL
diz respeito a todos os sujeitos e não apenas a alguns). Dito de outro modo, não obs-
tante a responsabilidade objetiva traduza, em um plano inicial (a partir da previsão
abstrata de um regime de imputação agravada previsto na lei), a preocupação com
a necessidade de não deixar sem reparação situações que escapariam do regime da
culpa, a sua concretização, na medida em que se realiza por meio de um juízo de
ponderação (a partir da subsunção dos fatos à regra de imputação), reclama seja
avaliada a situação como um todo, inclusive sob o aspecto da forma como a vítima
se comporta em relação à produção do dano60.
Pelo todo exposto até aqui, cumpre reconhecer que consoante ocorre com toda
opção jurídica, a f‌im de que seja legítima61, deve estar lastreada em um fundamento
de validade visto a partir de uma perspectiva dúplice (em abstrato e concreto). Exa-
tamente por isso é que a identif‌icação deste fator de legitimação – que no caso da
responsabilidade civil objetiva encontra-se no princípio da solidariedade – foi tarefa
da qual não era possível furtar-se, quanto mais porque repercute de maneira direta
na própria demarcação das situações em que se justif‌icará a imputação do dano ao
sujeito identif‌icado como responsável.
Assim, o contraponto entre esferas jurídicas vai remodelado pelo princípio da
solidariedade que, quando da delimitação (em concreto) do dano juridicamente
relevante, amplia a tutela que se materializada por meio da responsabilidade civil
para o f‌im de abranger também as posições jurídicas que, mesmo não recebendo
uma proteção ampla (nos moldes da modelagem conferida aos direitos subjetivos
propriamente ditos), gozam de relevância. Representa, portanto, a criação de uma
nova fonte de deveres jurídicos, a qual se desenvolve, contudo, por meio da obser-
vância das diretrizes objetivamente f‌ixadas pela própria ordem vigente e não pelo
arbítrio do interprete62.
60. Em razão desta bilateralidade é que se af‌igura conveniente, sem prejuízo da atenção inicial (ainda que
abstrata) dos interesses da vítima, a prevalência utilitarista dos efeitos globais decorrentes do dano e da sua
indenizabilidade. Em palavras mais precisas, não obstante, num cenário de responsabilidade objetiva, exista
uma opção preponderante do ordenamento jurídico no sentido de que os danos relacionados à fattispecie
respectiva sejam ressarcidos, é de se atentar para o fato de que a vítima não pode ser desincentivada a con-
tribuir, naquilo que lhe compete, a prevenir a ocorrência ou a minimizar os efeitos do dano. Por esta razão
é que, quando do exame da ponderação que se estabelecerá para, em concreto, aferir a (i)legitimidade do
prejuízo sofrido, deve-se atentar para a inconveniência de se chancelar um autêntico risco moral (moral
hazard) por parte da vítima que, podendo contribuir para a prevenção, não o faz por se saber protegida por
um regime de responsabilidade objetiva. Sobre o tema, ARAÚJO, Fernando. Teoria económica do contrato.
Coimbra: Almedina, 2007, p. 855 e ss. Segundo o autor, p. 868, é característico dos regimes de imputação
objetiva (strict liability) o fato de “a potencial vítima perder incentivos à precaução” ao passo em que “o
potencial lesante toma demasiadas precauções”, o que tem condições de favorecer o incremento de “um
nível inef‌icientemente elevado de acidentes”. Tais constatações apenas reforçam a tese sustentada até aqui,
no sentido da imprescindibilidade de uma valoração em concreto, por meio do conceito normativo de dano
ora proposto, do efetivo cabimento de uma reparação, mesmo à vista de um regime de responsabilidade
objetiva.
61. Em assim não sendo, como bem pondera CASTRONOVO, Carlo. La nuova responsabilità civile, cit., p. 356,
estar-se-ia diante de um “arbítrio do legislador”.
62. RIZZO, Nicola. Giudizi di valore e “giudizi di ingiustizia”. Europa e Diritto Privato, Milano, n. 2, p. 295-354,
2015, p. 301 e ss. Com isso se quer dizer que a ampliação da responsabilidade civil para o f‌im de tutelar
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RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA DA FRAGMENTARIEDADE À RECONSTRUÇÃO SISTEMÁTICA
226
Ou seja, não se trata de uma série aberta de hipóteses em que vai livremente
autorizada à imputação de responsabilidade por meio da interpretação e da apreensão
de uma assim dita “consciência coletiva” reinante em um dado momento histórico,
quanto mais porque o limite da solidariedade deve estar operante em todas as situ-
ações nas quais prevista qualquer forma de proteção legislativa63.
Por dita razão é que se mostra importante reconhecer que o princípio em causa,
no seu papel de legitimador do regime geral ora proposto, pode se converter tanto
em fator de ampliação da responsabilidade, especialmente quando justif‌ica a retirada
de uma série de situações da submissão à exigência da culpa, quanto em fator de
restrição, quando autoriza, por meio da concretização do conceito juridicizado de
dano, a permanência do prejuízo na esfera da vítima nas hipótese em que assim se
considere justif‌icado, mesmo diante de uma previsão abstrata de imputação objetiva.
Verif‌icar, pois, como isso ocorre é tarefa a ser empreendida.
2. OS PRESSUPOSTOS DA IMPUTAÇÃO OBJETIVA E A REESTRUTURAÇÃO
DA IDEIA DE RESPONSABILIDADE CIVIL
Nos moldes do que fora desenvolvido no percurso investigativo trilhado até o
momento, não há dúvidas de que a simples previsão de um regime de imputação de
matriz objetiva não basta a bem operacionalizar o instituto. A complexidade normativa
adquirida pela responsabilidade sem culpa exige, portanto, que o problema da sua
concretização seja tratado de modo não simplista, sob pena de desvirtuamento dos
seus objetivos por meio da condução a patamares semelhantes aos obtidos por inter-
médio de um regime securitário amplo e, portanto, não só ilegítimo, mas indesejado.
Isso decorre de dois fatores importantes. Primeiro, porque não se tratam mais,
na realidade hoje vigente, de ilhas dispersas de imputação, seja em decorrência do
fato de abrangerem uma larga plêiade de situações, seja em razão da inegável hetero-
geneidade, tanto interna quanto externa, destas mesmas situações. Segundo, porque
um exame mais acurado da forma como se dá o surgimento do vínculo obrigacional
indenizatório bem serve a demonstrar que não se trata apenas de extirpar a relevân-
cia da verif‌icação de um ato ilícito (antijurídico e culposo) do juízo imputacional,
já que permanece a necessidade de reacomodar elementos normativos que eram
por ele geridos, mas que são também relevantes na construção deste processo de
realocação do dano.
Examinar e sistematizar como isso ocorre, portanto, af‌igura-se de extrema
relevância à efetivação da tese da unidade da responsabilidade objetiva, tarefa que
merece ser feita, de início, em um plano geral e, em seguida, em um plano especial de
situações jurídicas relacionadas aos mais variados interesses não se dá ao alvitre do intérprete, mas por
meio da subsunção dos fatos à norma de regência e, após isso, pela ponderação acerca da efetiva existência
de um dano que, na situação posta, não é legítimo ou justif‌icado.
63. RODOTÀ, Stefano. Il problema..., cit., p. 112-113.
EBOOK RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA.indb 226EBOOK RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA.indb 226 02/12/2021 09:14:0402/12/2021 09:14:04
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CAPÍTULO 5 • BASES PARA A RECONSTRUÇÃO UNITÁRIA DE UM REGIME GERAL
concretização. E os pressupostos do juízo de imputação constituir-se-ão em material
de extrema relevância para tanto, dissecando-os, nas suas relações interna e externa,
e conjugando-os com o fundamento que legitima a dispensa do ato ilícito enquanto
baliza de atribuição de relevância jurídica aos danos sofridos pela vítima.
2.1 Elementos para uma reconstrução unitária
Partindo-se de um plano geral de valoração e tendo em vista a possibilidade de
se subdividir os pressupostos da responsabilidade objetiva em dois polos, af‌igura-se
relevante concatenar as descobertas produzidas tendo em vista o exame da neces-
sidade de cada um deles no deslocamento do dano da esfera jurídica da vítima para
a esfera jurídica daquele que o sistema normativo permite considerar responsável.
Isso porque, tal qual referido, não se trata de identif‌icar um culpado ou mesmo um
lesante propriamente dito, mas, mais do que isso, um sujeito responsável, ou seja,
uma esfera jurídica à qual será atribuído o encargo de suportar os ônus correspon-
dentes ao prejuízo cuja gestão se está a operar.
Propõe-se, com isso, a recolha e a síntese do material dogmático que, por in-
termédio da valoração crítica empreendida, permitirá a reconstrução da unidade
necessária à demonstração da validade de um modelo geral unif‌icador das hipóteses
de responsabilidade civil objetiva. Daí que, a f‌im de bem compreender como tudo se
projeta sobre os pressupostos do dever de indenizar, cumpre compreender o diálogo
que se estabelece entre um plano assim dito subjetivo e outro de matriz, em tese,
objetiva, conjugando-os e concatenando os seus termos para f‌ins de (re)construção
sistemática do regime geral em causa.
2.1.1 As reminiscências dos pressupostos subjetivos
Tal qual visto, os pressupostos de natureza subjetiva – também passíveis de serem
ditos jurídicos, caso vistos a partir de ângulo diverso, noutra formulação igualmente
possível64 – encontram viva importância em um regime geral de natureza subjetiva,
não havendo como se falar, nestes casos, em atribuição de responsabilidade sem
a concorrência da culpa, da imputabilidade e da ilicitude, todas, direta ou indire-
tamente, associadas à conduta causadora do dano. Isso se justif‌ica no fato de que,
constituindo-se a imputação, nestes casos, em uma resposta ao ato ilícito, a aferição
dos três aludidos pressupostos é de vital importância à sua concretização.
As novas feições assumidas pela noção hodierna de responsabilidade civil,
contudo, permitem inferir que, não obstante tal se constitua em uma realidade
importante, a qual não pode e não deve ser desconsiderada, não basta à adequada
conf‌iguração do instituto na sua plenitude. Isso porque a sua mais abalizada noção
deve ser hoje compreendida não apenas como resposta ao ato danoso, mas como
64. CORDEIRO, António Menezes. Da responsabilidade civil..., cit., p. 423.
EBOOK RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA.indb 227EBOOK RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA.indb 227 02/12/2021 09:14:0402/12/2021 09:14:04
RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA DA FRAGMENTARIEDADE À RECONSTRUÇÃO SISTEMÁTICA
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um problema de gestão de externalidades negativas, o qual pode ter a sua solução a
partir de mais de um paradigma.
Nesta linha é que se deverá considerar a gestão dos danos que decorrem das
relações assim ditas tradicionais, pois que se estabelecem entre dois sujeitos bem
determinados, no exercício de atividades inerentes à sua liberdade e à sua autonomia
privada, em paralelo àqueles que provêm de relações f‌luídas, típicas de uma socie-
dade hipercomplexa, nas quais os sujeitos envolvidos e as ações ou omissões em si
consideradas não podem ser delimitadas com a mesma clareza.
Para as primeiras situações, a noção normativa de culpa e os dogmas sobre
os quais se assenta são suf‌icientes a permitir a demarcação dos danos que poderão
ser retirados da esfera em que se tenham consumado (no caso, do lesado); para as
segundas, tendo em conta as suas peculiaridades, será necessário uma ponderação
que tome por base a relevância – e a preponderância – dos interesses envolvidos e, a
partir disso, lance mão de uma estrutura previamente posta, apta assim a autorizar
a transferência do dano mesmo à vista da impossibilidade de identif‌icação de um
culpado em sentido técnico.
Nestes casos, não signif‌ica dizer que não exista um lesante propriamente dito,
que possa assim ser juridicamente considerado culpado; apenas signif‌ica que, diante
de interesses contrapostos, o princípio da solidariedade autoriza a lei a conferir uma
especial consideração à f‌igura da vítima, reconhecendo-se, para tanto, a existência
de um responsável, que será chamado a suportar os prejuízos em causa.
Trata-se de olhar o suporte fático da relação obrigacional indenizatória a partir
de outro ângulo, tomando em conta a dinamicidade e a f‌luidez das relações que se
estabelecem e, por conseguinte, os interesses envolvidos, de modo a compreender
que, em determinadas situações, será legítimo fazer preponderar o interesse da vítima
a uma reparação, sem que tal precise constituir-se em regra geral para todos os casos.
A constatação desta dualidade não quer dizer que um regime é preponderante
em relação ao outro; sequer que tenha mais ou menos legitimidade normativa ou
superioridade dogmática. Signif‌ica apenas que, em dadas situações, tendo em vista
a natureza das relações jurídicas e dos interesses envolvidos, estabelece-se uma pon-
deração – que se dá em dois planos: primeiro pela previsão legal abstrata e, depois,
pela subsunção dos fatos à norma, à vista do caso concreto – que autoriza a gestão
dos danos tendo em conta um regime ou outro.
Sem prejuízo do paradigma adotado para a investigação, que dividiu os pres-
supostos em subjetivos e objetivos65, nenhum deles, é na verdade, puramente fático
ou jurídico, exclusivamente relativo à conduta ou ao prejuízo. Tanto porque mesmo
os ditos integrantes do primeiro grupo, relacionados à conduta da qual provém o
dano, trazem em si elementos de ponderação que dizem respeito, de algum modo,
65. Tal opção levou em conta a inegável premissa de que a responsabilidade objetiva “desenvolveu-se como
um ref‌lexo da imputação delitual”; assim, CORDEIRO, António. Tratado..., cit., v. II, t. III, p. 594.
EBOOK RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA.indb 228EBOOK RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA.indb 228 02/12/2021 09:14:0402/12/2021 09:14:04
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CAPÍTULO 5 • BASES PARA A RECONSTRUÇÃO UNITÁRIA DE UM REGIME GERAL
também ao lesado ou ao prejuízo em si, o que, por isso, não permite sejam de todo
desconsiderados.
A responsabilidade civil objetiva, é verdade, toma por base a existência de uma
vítima que carece de satisfação; já a responsabilidade subjetiva, por sua vez, uma
conduta que demanda uma resposta do ordenamento jurídico. Este é o ponto de
partida de ambos os regimes.
Não obstante os enfoques sejam diversos e estejam relacionados a objetivos
perseguidos pelo ordenamento em algum grau também diversos, ambas as situações
pressupõem a existência de um prejuízo a ser reparados, o que, aliás, dá unidade à
responsabilidade civil enquanto instituto jurídico. Nestes termos, seja em relação
à responsabilidade objetiva, seja em relação à subjetiva, sempre haverá um intento
reparatório, o qual poderá, contudo, ser preponderante – quiçá exclusivo – ou con-
corrente com outros f‌ins, em especial de viés retributivo, tanto para f‌ins de sanção
ou de prevenção. A vítima, em um cenário ou outro, será indenizada, o que se poderá
dar por via mais facilitada ou mais dif‌icultada, a depender da valoração ou não da
conduta do agente enquanto pressuposto da imputação66.
A diferença reside no fato de que enquanto na imputação objetiva o norte será dado
por um juízo de justiça distributiva, naquela de matriz subjetiva o será por um juízo de
justiça comutativa. Exatamente por isso é que enquanto numa o ponto de partida é o
dano, assim considerado enquanto perda de uma utilidade relevante em razão da lesão
de um interesse juridicamente protegido, noutra será a conduta lesiva, assim considerada
como aquela que se dá em contrariedade ao direito (dita, portanto, ilícita ou antijurídica)
e pode ser normativamente considerada reprovável (dita, portanto, culposa).
Ocorre que a aludida ideia de contrariedade ao direito não é atributo exclusivo
do ato ilícito, tanto porque, para este f‌im, pode-se estabelecer um juízo de desvalor
em relação à conduta danosa ou ao prejuízo dela decorrente. Não se trata, contudo,
tal qual visto, de se exigir uma escolha em termos absolutos entre uma ou outra teo-
ria – até mesmo porque, a partir de um viés ontológico, sequer af‌igura-se viável uma
separação absoluta entre conduta e resultado, já que constituem uma continuidade,
o que recomenda o emprego de soluções intermediárias67.
Por esta razão é que parcela da componente designada ilicitude ou antijuridicida-
de interessa à responsabilidade objetiva, não podendo ser desconsiderada, justamente
porque haverá danos que, mesmo estando submetidos a um regime de imputação
desta natureza, poderão ser considerados legítimos na medida em que decorrerem do
66. A problemática das funções da responsabilidade civil, como já se teve oportunidade de referir, é deveras
intrincada, não podendo ser esgotada neste plano; quanto mais porque, num regime geral de imputação
objetiva, é notória a preponderância do intento reparador, retirando, por isso, alguma atenção das demais
funções que, sem prejuízo, poder-se-ão manifestar de algum modo (especialmente a preventiva, diante da
simples previsão de um regime agravado de responsabilidade). A este respeito, consinta-se uma vez mais
reenviar-se a TEIXEIRA NETO, Felipe. Há espaço para uma função punitiva..., cit., p. 269 e ss.; também,
TEIXEIRA NETO, Felipe. Dano Moral Coletivo, cit., p. 178.
67. CORDEIRO, António Menezes. Tratado..., cit., v. II, t. III, p. 438.
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RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA DA FRAGMENTARIEDADE À RECONSTRUÇÃO SISTEMÁTICA
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regular exercício de um direito por parte do, em tese, lesante. Nestes termos, levando
em conta que o pressuposto em si, na sua plenitude, deve ser tido como irrelevante
nestes casos, pois a sua acepção atualmente vigente tende a associá-lo a um juízo de
desconformidade jurídica em relação à conduta, será necessário englobar esta faceta
de relevância em pressupostos outros que lhe sejam imprescindíveis.
Tanto isso é verdade que é possível identif‌icar linha de fundamentação que pro-
cura justif‌icar a responsabilidade civil objetiva no reconhecimento de uma hipótese
de ilicitude imperfeita68. Não obstante se entenda que o marco teórico desenvol-
vido a partir do princípio da solidariedade, o qual serviu de referencial à presente
investigação, satisfaça de modo mais adequado, diante da sua maior abrangência, a
problemática da legitimação do dever de indenizar para além da culpa, não se pode
desconsiderar que a aludida construção, na medida em que identif‌ica alguma conexão
entre o instituto sob exame e a ilicitude – mesmo que assim dita imperfeita –, repre-
senta o reconhecimento da tese ora sustentada, no sentido da relevância, mesmo que
parcial, do juízo que se manifesta por meio do pressuposto referido à conformação
jurídica da responsabilidade objetiva.
E isso é possível em decorrência da assim dita “dupla limitação” ínsita ao pres-
suposto da ilicitude que, para tanto, concretiza-se através de uma acepção positiva
(violação de um interesse juridicamente tutelado) e de uma acepção negativa (não
concorrência de uma causa de justif‌icação), ambas cumulativas para f‌ins da sua ca-
racterização69. No plano da responsabilidade objetiva, considerando que a conduta
do agente não pode ser tida como pressuposto essencial, tendo em vista que o seu
âmbito de aplicação tem lugar em situações nas quais nem sempre é possível bem
identif‌icar um agir humano comissivo ou omissivo completamente delimitado ou
caracterizado70, terá interesse apenas a faceta negativa ou non iure da ilicitude (ou do
dano dela decorrente), importando realocá-la, em razão disso, em outro elemento
do suporte fático hipotético do dever de reparar.
68. Sobre o tema, CORDEIRO, António Menezes. Tratado..., cit., v. II, t. III, p. 595, esclarece que “[a] ilicitude im-
perfeita recorda que, no fundo, o Direito pretende que não haja danos: nenhuns. Assim, embora em certos casos
não seja possível imputá-los a título de delito, a imputação objectiva é um poderoso incentivo para que sejam
tomadas medidas preventivas atempadas”. O problema desta abordagem, entretanto, parece estar na necessidade
de que se atente para a prevenção enquanto fenômeno bilateral, consoante tratado supra, e para a necessidade de
desincentivar o, em tese, possível risco moral da vítima em não adotar a parcela de prevenção que lhe compete.
Daí porque se ter optado por seguir outra linha teórica, a qual se entende mais apta a solver esta controvérsia.
69. CORDEIRO, António Menezes. Tratado..., cit., v. II, t. III, p. 483. Tal é o que sucede, aliás, quando da aferição
da injustiça do dano, na experiência jurídica italiana, na qual, para que se possa verif‌icar o surgimento do
dever de reparar, é imprescindível que o prejuízo seja non iure, ou seja, não se dê no âmbito de uma causa
de justif‌icação, e contra ius, quer dizer, decorra da violação de uma situação jurídica protegida. A propósito,
DI LAURO, Antonino Procida Mirabelli; FEOLA, Maria. La responsabilità civile, cit., p. 189; AUTORINO,
Gabriella. La responsabilità aquiliana, cit., p. 10; VISITINI, Giovanna. Itinerario dottrinale..., cit., p. 78;
dentre outros. Ainda sobre o tema, consinta-se reenviar ao § 2º, item 1.2.2, do capítulo terceiro, onde a
problemática da dualidade do dano injusto foi mais detalhadamente examinada.
70. Seja nas situações em que decorre do exercício de uma atividade (por isso mesmo complexa, fazendo com
que, por vezes, não se possa identif‌icar, na sua cadeia de desenvolvimento, atos individuais bem delimitados),
seja nas hipóteses em que decorre de uma condição jurídica titulada pelo sujeito responsável (v.g., fato da
coisa ou do animal e relação de f‌iliação ou de comissão, para citar apenas duas situações).
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CAPÍTULO 5 • BASES PARA A RECONSTRUÇÃO UNITÁRIA DE UM REGIME GERAL
Deve-se reconhecer que a estreita correlação que se estabelece entre o exercício
de um direito e a ideia de (i)licitude reclama, aqui, viva atenção, especialmente em
decorrência de dois grupos de situações de extrema relevância à sistematização da
responsabilidade objetiva.
O primeiro deles está relacionado, em um plano geral, à problemática decorrente
da forma como as causas de justif‌icação repercutem no âmbito da imputação obje-
tiva; trata-se, portanto, de aferir como serão geridos os danos que, mesmo estando
submetidos a um regime de responsabilidade que não pressupõe a verif‌icação de um
ato ilícito, podem ser considerados legítimos em razão de uma autorização genérica
conferida pelo ordenamento jurídico ao sujeito para que assim proceda, já que o faz
no exercício regular de um direito. Nestes casos, não obstante o juízo de ponderação
hipotético previsto na lei estabeleça uma preponderância da posição da vítima, o que
decorre da previsão de um regime de responsabilidade objetiva, o juízo de ponde-
ração realizado em concreto fará prevalecer a posição do lesante, já que se entende
que, naquela hipótese faticamente aferida, o exercício de um direito seu permite a
projeção de externalidades negativas na esfera de terceiros (no caso, o lesado).
O segundo, que se dá em um plano especial, diz respeito a situações pontuais
em que o agir do, em tese, lesante vai desde logo autorizado (por uma causa de justi-
f‌icação típica), não obstante, como contraprestação desta autorização, estabeleça-se
o pagamento de uma prestação pelos prejuízos eventualmente causados em razão
disso. Trata-se das denominadas hipóteses de responsabilidade civil por atos lícitos71,
nas quais, não obstante o primeiro juízo de ponderação – aquele posto na própria
lei – estabeleça que a atuação do agente é legítima, ainda assim, diante dos interesses
da vítima aferidos no caso concreto, haverá uma obrigação de repará-los, mesmo que
de modo parcial, a qual incumbirá ao causador do prejuízo72.
71. Como bem sintetiza TELLES, Inocêncio Galvão. Direito das Obrigações, cit., p. 215, “[t]rata-se de acto que a
lei consente por considerar justif‌icado em atenção à natureza do interesse que visa satisfazer”, mas como deste
ato podem decorrer prejuízos não consentidos, “a lei considera de justiça que o titular daquele interesse, po-
dendo embora realizar o acto, não deixe, contudo, de indemnizar o terceiro pelos danos que lhe cause”. Não há
dúvidas que se trata de uma dupla ponderação: primeiro, quando a lei autoriza a atuação, independentemente
da possibilidade de que venha a lesar terceiros, justif‌icando, assim, a sua prática; depois, quando a mesma lei,
ponderando os interesses do lesante e do lesado entende que mesmo que aquele estivesse legitimado a agir, não
é adequado que este suporte os ônus desta atuação, pelo que estabelece um dever de indenizar centrando na
ocorrência do dano e, de modo excepcional, operacionalizado pela equidade. Não há dúvidas de que se trata
de uma situação de responsabilidade objetiva, mesmo que excepcional e decorrente do expresso comando
legal (por isso mais restritiva do que as demais hipóteses tradicionalmente associadas ao dito regime). E isso
porque traz em si os três pressupostos de unidade da categoria jurídica em questão: a existência de um dano,
a previsão de imputação de responsabilidade independentemente de culpa e um juízo de ponderação a esta
subjacente, consubstanciado na valoração dos interesses contrapostos entre lesante e lesado, com a conclusão
de que, na situação concreta, o dano está mais conectado à espera jurídica daquele, o que não justif‌ica, portanto,
que permaneça ao encargo deste (ainda que parcialmente, diante da indenização equitativa).
72. Como observa ALPA, Guido. Diritto della responsabilità civile, cit., p. 135, trata-se de uma lógica diversa na
qual, não obstante exista uma autorização do agente para agir, caber-lhe-á o dever de pagar uma prestação
indenizatória – assim dita, pois não se trata de uma autêntica reparação –, já que, não obstante a sua atuação
estivesse amparada em um permissivo legal, a ponderação dos interesses contrapostos reconhece que, ainda
assim, o dano está mais intimamente conectado à sua esfera jurídica do que a do lesado.
EBOOK RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA.indb 231EBOOK RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA.indb 231 02/12/2021 09:14:0402/12/2021 09:14:04
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Estas situações são resolvidas, na responsabilidade subjetiva, por intermédio do
pressuposto da ilicitude; a sua irrelevância num regime geral de natureza objetiva,
todavia, não permite que tais hipóteses sejam desconsideradas por completo, mesmo
que quando da verif‌icação de outro dos seus pressupostos essenciais.
Pelo que se percebe, o plano de valoração tradicionalmente dito jurídico-subje-
tivo dos pressupostos gerais do dever de indenizar não é, na verdade, exclusivamente
jurídico ou mesmo apenas subjetivo, pois, sem prejuízo de uma preponderância
neste sentido, haverá uma pequena fração do conteúdo a eles relacionada que terá
interesse e utilidade em um regime unitário de responsabilidade objetiva. Daí que
compatibilizar estes fragmentos no corpo da estrutura remanescente é uma atribuição
a ser feita no campo dos pressupostos objetivos.
2.1.2 A releitura dos pressupostos objetivos
Os assim ditos pressupostos objetivos são (ou eram) aqueles cuja designação
decorre exatamente no fato de que, em tese, não carecerem de uma maior ponde-
ração normativa para serem evidenciados, porquanto a sua constatação decorreria,
em tese, de um puro juízo de verif‌icação naturalística em razão da alteração produ-
zida no mundo dos fatos73. Por isso é que o dano, então entendido em uma acepção
reducionista correspondente à perda patrimonial avaliável economicamente, e o
nexo de causalidade, assim concebido como a relação física de causa e efeito havida
entre o prejuízo e a conduta do agente, tinham a sua aferição em muito facilitada74,
73. Tal premissa toma por base, mesmo que apenas em parte, a sistematização proposta por JORGE, Fernando
Pessoa. Ensaio..., cit., p. 53, segundo a qual os pressupostos da responsabilidade civil resumir-se-iam a
dois: o ato ilícito (a englobar a ação ou omissão, a ilicitude e a culpa) e o dano (a abranger o prejuízo em si
e o nexo de causalidade); aquele dito subjetivo, pois relativos à conduta do agente, e este, objetivo, já que
associado ao prejuízo. Nestes termos é que a conotação objetiva usada para aludir ao grupo formado pelo
dano e ao nexo de causalidade tem, em última análise, dupla acepção, pois não apenas quer dizer que não
guardam relação direta com o lesante, mas também que estariam, em tese, desprovidos de normatividade.
Ora, partindo-se de relações jurídicas mais simples (preponderantes no cenário econômico e social prévio
à sistematização moderna do direito privado), não há dúvidas que seria possível verif‌icar, somente pelo uso
dos sentidos, o dano, assim predominantemente entendido na altura enquanto perda patrimonial avaliável
em pecúnia, e a relação de causa e efeito entre ele e o fator de atribuição (no caso, o ato ilícito). O incremento
da complexidade das fontes da responsabilidade extraobrigacional, contudo, tem levado a um progressivo
abandono desta tese, tendendo-se à adoção da assim denominada “pentapartição” (fato, ilicitude, culpa, dano
e causalidade), diante da notória autonomia normativa de cada um dos pressupostos, o que recomenda, aliás,
o não uso dos agrupamentos unif‌icadores. Neste sentido, inclusive com explicitações acerca da alteração
da sua opção sistemática, com a migração do rol bifásico (dano e imputação) para o pentafásico, o que se
justif‌ica, segundo o autor, não em um equívoco daquele, mas numa maior clareza deste, ver CORDEIRO,
António Menezes. Tratado..., cit., v. II, t. III, p. 433. Deve-se consignar que não obstante a tese tradicional
tenha sido parcialmente adotada no curso da presente exposição (capítulo III, § 1º e § 2º), tal foi feito tão
somente para f‌ins de facilidade da exposição; tanto que não se falou em dois pressupostos, mas em dois
planos de aferição (subjetivo e objetivo). Ademais, as conclusões então postas foram justamente no sentido
da inviabilidade de uma visão que permita a redução do exame dos requisitos do dever de reparar a dois
elementos, quanto mais num cenário de unidade da imputação objetiva, que estaria restrita, em tese, ao
dano e à imputação legal, requisitos estes que já se mostraram insuf‌icientes.
74. SILVA, Clóvis do Couto e. O conceito de dano no direito brasileiro e comparado. Revista dos Tribunais, São
Paulo, v. 80, n. 667, p. 07-16, mai. 1991, p. 08.
EBOOK RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA.indb 232EBOOK RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA.indb 232 02/12/2021 09:14:0402/12/2021 09:14:04
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CAPÍTULO 5 • BASES PARA A RECONSTRUÇÃO UNITÁRIA DE UM REGIME GERAL
já que o surgimento do vínculo obrigacional propriamente dito vinha centrado nos
pressupostos ditos subjetivos.
Ocorre que com a já tantas vezes referida perda de exclusividade por parte da
culpa e, por conseguinte, com a migração do epicentro do instituto para o dano75,
demanda-se uma revisão deste paradigma, fazendo com que não se possa falar em um
plano simplesmente naturalístico de valoração no que tange aos pressupostos então
ditos objetivos. Nestes termos, os conceitos entendidos como meramente fáticos
juridicizam-se, passando a ser reinterpretados com vistas a permitir a imputação
por intermédio de um sistema de atribuição de responsabilidade que, em decorrên-
cia da sua crescente complexidade, demanda pressupostos jurídicos cada vez mais
elaborados do ponto de vista dogmático.
Nesta linha – e sem receio de parecer redundante –, é de vital relevância rea-
f‌irmar que é justamente o afastamento da culpa da sua condição de princípio geral
de legitimação que se converte em fator decisivo para este processo76. Isso porque
a unidade do ato ilícito, num regime geral de matriz subjetiva, constitui-se em
f‌iltro de seleção dos danos a serem ressarcidos por meio verif‌icação da sua dúplice
faceta (antijuridicidade e culpa/dolo)77; não mais se constituindo em requisito
obrigatório do dever de reparar, o que sucede nos regimes de matriz objetiva, os
demais pressupostos que lhe são essenciais são chamados a, em algum grau, de-
sempenhar este papel, que somente é possível por intermédio do incremento da
sua carga normativa.
Também é premissa à aceitação desta necessidade o reconhecimento de que
apenas a ocorrência de um prejuízo – na linha do que preconizaria uma autêntica
regra de neminem laedere – não pode bastar ao surgimento do vínculo obrigacional
indenizatório. É necessário, mesmo na responsabilidade objetiva, que o dano sofrido
pela vítima seja relevante sobre o prisma jurídico, o que não se satisfaz apenas com
a tipicidade, decorrendo não só da subtração de uma utilidade tutelada pelo orde-
namento, mas, mais do que isso, da constatação de que a sua causação é ilegítima à
vista dos preceitos de tutela do interesse lesado previstos no ordenamento jurídico.
75. Fala-se, por isso, em um sistema monocêntrico de responsabilidade civil; assim, DI LAURO, Antonino Procida
Mirabelli; FEOLA, Maria. La responsabilità civile, cit., p. 167. No mesmo sentido, assinalando f‌igurar o dano
no centro do instituto da responsabilidade civil, COELHO, Francisco Manuel Pereira. O enriquecimento e
o dano. Coimbra: Almedina, 2003, reimpressão, p. 35.
76. É de se referir que tal fenômeno não é exclusivo da responsabilidade objetiva, sucedendo também naquela
de matriz subjetiva. E decorre da mesma recolocação da culpa, que perde o status de fundamento para
se converter em um dos pressupostos de imputação, inclusive no regime que lhe é próprio. Tal alteração
demanda, nesta linha, a conversão do dano e do nexo de causalidade, até então tidos como conceitos de
natureza preponderantemente naturalística, em pressupostos com acentuada carga normativa, consoante
já se teve oportunidade de analisar, o que sucede também com a própria culpa, que se reinventa ao passo
em que se normatiza. Sobre o tema, CALIXTO, Marcelo Junqueira. A culpa na responsabilidade civil. Rio de
Janeiro: Renovar, 2008, p. 07 e ss.
77. Para o exame da “erosão” da culpa enquanto f‌iltro de reparação, ver SCHREIBER, Anderson. Novos para-
digmas da responsabilidade civil. São Paulo: Atlas, 2011, p. 51.
EBOOK RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA.indb 233EBOOK RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA.indb 233 02/12/2021 09:14:0402/12/2021 09:14:04
RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA DA FRAGMENTARIEDADE À RECONSTRUÇÃO SISTEMÁTICA
234
Ocorre que, de um modo geral (ao menos nos sistemas jurídicos sob compa-
ração), a estrutura normativa associada à responsabilidade civil é bastante aberta78,
fazendo com que a integração das suas regras se dê a partir do processo de subsunção
dos fatos ao suporte fático da fattispecie. Sem prejuízo da ponderação de interesses
que aqui se estabelece, nos termos em que, aliás, há pouco foi tratado, a agregação
de um conteúdo normativo prévio aos preceitos a serem materializados por meio de
tal processo não apenas agrega segurança jurídica, restringindo a margem de criação
livre do intérprete, como facilita a sua concretização, por intermédio do emprego de
conceitos jurídicos cujo conteúdo esteja bem demarcado.
A tipicidade que marcou o desenvolvimento dos diversos regimes de responsa-
bilidade objetiva permitiu que, no curso da fase na qual era compreendida como um
fenômeno meramente excepcional e, por isso, desprovido de uma ideia de conjun-
to, fosse possível sustentar a suf‌iciência da mera previsão legal à sua legitimação e,
por conseguinte, à sua operacionalização. Ocorre que uma inegável abertura neste
campo – tanto pela previsão de situações amplas, permissíveis de uma aplicação
estendida, quanto pela própria possibilidade, mesmo que ainda controversa (não
obstante incontornável), da instituição de autênticas cláusulas gerais – passou a
chamar a atenção para o fato de que era necessário algo a mais para além da previsão
legal e dos elementos então ditos objetivos a f‌im de viabilizar, de modo adequado, o
surgimento do dever de reparar79.
Tal decorre da constatação de que a abertura do sistema jurídico à responsabili-
dade objetiva, reconhecendo a sua imprescindibilidade em diversas áreas da vida de
relação, o que decorre dos atuais anseios sociais em matéria de gestão de dano, em
sendo desprovida de um conteúdo normativo mais denso para além da sua previsão
legal (aqui denominada tipicidade), restaria reconduzida à imputação pela simples
causalidade, o que já se teve oportunidade de rechaçar. Tal decorre do simples fato
de que a reparação automática, assim entendida como aquela que se mostre alheia
ao comportamento do autor do dano e, ao mesmo tempo, desprovida de estrutura
imputacional dotada de uma normatividade suf‌iciente a lhe dar substrato, é opção
que, caso venha a ser feita, deverá lançar mão de outras categorias jurídicas que não
aquelas inerentes à responsabilidade civil80.
78. Consoante observa MONATERI, Pier Giuseppe. Natura e scopi della responsabilità civile. Disponível em:
www.academia.edu/21500632/Natura_e_Scopi_della_Responsabilit%C3%A0_Civile>. Acesso em: 05 nov. 2017,
p. 15, “[a]nzi se è vero che codif‌icare per claosole generali equivale a non codif‌icare, si può dire che il diritto della
responsabilità civile è solo parzialmente codif‌icado. (...) Perciò si può dire che il diritto della responsabilità civile
è essenzialmente un diritto elaborato dagli interpreti: dalla giurisprudenza e dalla dottrina”.
79. BUSNELLI, Francesco Donato. Diritto Giurisprudenziale e responsabilità civile. Napoli: Editoriale Scientif‌ica, 2007,
p. 34, atenta para a imprescindível necessidade de se atentar para a demarcação dos limites dos danos ressarcíveis,
para o f‌im de evitar o que denomina “sllipery slope” associada aos perigos de uma “voragine risarcitoria”.
80. MONTEIRO, António Pinto. A responsabilidade civil no direito contemporâneo, cit., p. 326. Nas precisas
palavras do autor, “a responsabilidade civil visa reparar o lesado – mas não esgota os meios de reparação; e
repará-lo à custa do lesante – mas só quando este for responsável pelo dano causado ao lesado”. E justamente
a satisfação de uma série de requisitos de cunho normativo é que poderá legitimar o reconhecimento da
condição de responsável.
EBOOK RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA.indb 234EBOOK RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA.indb 234 02/12/2021 09:14:0402/12/2021 09:14:04
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CAPÍTULO 5 • BASES PARA A RECONSTRUÇÃO UNITÁRIA DE UM REGIME GERAL
Por isso é que a subtração da relevância dos pressupostos de matriz subjetiva
vem complementada pela necessidade de jurisdicização daqueles de natureza obje-
tiva, fazendo com que se apresentem, por isso, aptos a converterem-se não apenas
em epicentro da responsabilidade civil objetiva, mas, para além disso, em autênticos
f‌iltros da reparação, complementando, deste modo, a previsão legal predisposta acerca
dos grupos de danos que se submeterão ao aludido regime jurídico.
Dito de outro modo, a obrigação indenizatória – especialmente aquela que se
estabelece a partir de um nexo de imputação de matriz objetiva – pressuporá, mais
do que nunca, a verif‌icação de um elemento nuclear com contornos deveras juridi-
cizado, tudo com o f‌im de se estabelecer, por meio desta operação normativa, um
f‌iltro ef‌iciente à seleção dos danos que, diante das suas características, ensejarão um
dever de indenizar independentemente da valoração em concreto do comportamento
do qual provêm.
Por isso é que compreender como tal se dá no plano de verif‌icação do atendi-
mento do suporte fático da imputação objetiva é tarefa relevante à demarcação das
bases de um regime geral de responsabilidade objetiva.
2.2 Responsabilidade civil objetiva e revisão dogmática
Tal qual se vem procurando demonstrar ao longo da presente exposição, não é
mais possível bem compreender e bem operacionalizar a responsabilidade civil ob-
jetiva, hoje, se não por meio de um profundo processo de ruptura da sua vassalagem
ao regime geral de matriz subjetiva.
Ou seja, a sua disciplina não mais pode ser compreendida como um vínculo
obrigacional no qual basta a supressão da relevância da culpa e da ilicitude a partir de
um comando legal predisposto neste sentido. E isso seja porque os objetivos a serem
perseguidos, não obstante comuns na essência (daí a unidade da responsabilidade
civil), são diversos na sua variação, seja porque a forma como opera a concretização
dos seus intentos, sem prejuízo de uma aparente homonímia, também é diversa.
Nos termos em que postos, a carga normativa centralizada na culpa e na ilicitude
veio dispersa no conteúdo das noções juridicizada de dano e de nexo de causalidade,
fazendo com que, aliadas à previsão legal acerca da incidência de um regime agravado
de imputação, possam bem fazer as vezes de demarcadores do seu âmbito de aplicação.
A responsabilidade civil objetiva, diante disso, somente se legitima se, aten-
dida a previsão legal que a autorize, seja possível verif‌icar a existência de um dano
juridicamente relevante que se conecte por meio de uma relação causal ao fator de
atribuição, sendo ambos os referidos conceitos atendidos no seu conteúdo normativo
e não meramente naturalístico.
Por isso é que, no intuito de bem sistematizar o regime geral de responsabilidade
objetiva que se está a propor, legitimado pelo princípio da solidariedade e materializa-
do por meio da ponderação dos interesses contrapostos que se apresentam por meio
EBOOK RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA.indb 235EBOOK RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA.indb 235 02/12/2021 09:14:0402/12/2021 09:14:04
RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA DA FRAGMENTARIEDADE À RECONSTRUÇÃO SISTEMÁTICA
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da causação de um prejuízo não consentido que necessita ser equalizado, mostra-se
de vital relevância analisar o modo como tal se concretiza – e se sintetiza – nos seus
pressupostos centrais.
2.2.1 A centralidade do conceito normativo de dano
Nos termos em que se tem assinalado ao longo da presente investigação, ideia
que ganha especial relevo em um regime geral de responsabilidade civil objetiva, a
adoção de uma noção juridicizada de dano é de vital relevância à atual compreensão
do instituto. Pressupõe, portanto, ter-se presente que o conceito em causa nem de
longe pode ser associável a uma mera alteração fática da realidade, carecendo de ser
justif‌icado por intermédio de critérios de natureza normativa, os quais se fundam,
por isso mesmo, em ponderações de cunho estritamente jurídico81.
Tal implica em identif‌icar que a delimitação dos prejuízos indenizáveis daque-
les que não legitimarão uma transferência à esfera jurídica de terceiro tem por f‌im
operacionalizar o intento precípuo da responsabilidade civil, que é a proteção dos
bens jurídicos tutelados pelo ordenamento por meio da sua indenização quando com-
prometida a utilidade que deles se pode extrair. Para tanto, esta tarefa será exercida
tendo em conta não apenas um viés essencialmente estático, assim considerado na
relação entre o bem jurídico e a sua atribuição a um dado sujeito, mas, mais do que
isso, também dinâmico, de modo a permitir seja ponderado o seu uso, emprego ou
aplicação concreta, a partir de uma premissa utilitarista82.
Não há dúvidas que, tal qual já explicitado, dito processo rumo a um conceito
normativo passa pela sua compatibilização com a ideia de lesão a interesse protegido,
o que se dá de modo tão estreito que, não raro, a própria noção de dano juridicamente
relevante vai assim sintetizada83. É, contudo, mais do que isso, não obstante a teoria
do interesse esteja integrada ao seu conteúdo84, pressupondo a verif‌icação de uma
alteração ou mesmo de um prejuízo no interesse em si considerado, por meio do
comprometimento da sua funcionalidade85.
O dano em sentido jurídico deve ser entendido como a perda de uma utilidade
tutelada pelo direito – por isso associada à lesão a um interesse juridicamente pro-
81. FRADA, Manuel A. Carneiro da. Direito Civil. Responsabilidade Civil. O método do caso. Coimbra: Alme-
dina, 2006, p. 89.
82. COELHO, Francisco Manuel Pereira. O enriquecimento..., cit., p. 35.
83. Neste particular, concorda-se com FRADA, Manuel A. Carneiro da. Direito Civil..., cit., p. 90, nota 106,
quando observa a impossibilidade de que o dano, mesmo em sentido normativo, seja assim def‌inido como
lesão a um interesse juridicamente protegido, sob pena de se chancelar uma sobreposição de conceitos.
84. PINTO, Paulo Mota. Interesse contratual positivo e interesse contratual negativo. Coimbra: Coimbra, 2008,
v. I, p. 546-547.
85. SCOGNAMIGLIO, Renato. Responsabilità civile e danno. Torino: Giappichelli, 2010, p. 225. Neste particu-
lar, bem observa o autor que o dano não reside apenas na supressão de um bem, mas, mais do que isso, na
diminuição ou na perda de idoneidade à satisfação das necessidades do lesado cuja proteção é reconhecida
pelo direito. Tanto porque a simples ideia de lesão a interesse não basta a fornecer a base e os elementos
idôneos para uma def‌inição de dano em termos rigorosos.
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CAPÍTULO 5 • BASES PARA A RECONSTRUÇÃO UNITÁRIA DE UM REGIME GERAL
tegido – em um contexto que permita reconhecer que a intervenção da qual decorre
não estava legitimada. Trata-se, portanto, de um conceito complexo, na medida em
que implica relevar não apenas a alteração negativa produzida na esfera da vítima,
mas também o fato de decorrer da violação de uma situação juridicamente tutelada, o
que deve ser avaliado tanto do ponto de vista do lesante (a partir do seu fato gerador,
com o f‌im de verif‌icar se esta atuação não estava legitimada), quando do lesado (em
razão da esfera violada sem o devido consentimento do seu titular).
Neste particular é que o paradigma do dano ingiusto não pode e não deve ser
desconsiderado. Mesmo contendo em si estrutura normativa que não se replica (ao
menos em termos legislativos) nos demais sistemas sob comparação, já que apenas
o Código de 1942 exige de modo expresso a injustiça do dano como pressuposto da
responsabilidade civil, dito modelo bem tem servido, ao longo da sua vigência, para
compatibilizar a necessidade de promover uma avaliação intermediária (e conci-
liadora) entre o desvalor da conduta e o desvalor do resultado, na linha que se tem
sustentando até aqui86.
Ou seja, superadas as dif‌iculdades iniciais envolvendo a delimitação do juízo de
desvalor que se estabelece a partir do predisposto no preceito legal italiano, não há
dúvidas que a experiência jurídica construída em torno da peculiar ideia de ingius-
tizia (sem prejuízo das críticas que possam ser dirigidas à terminologia utilizada)
permitiu a construção de um modelo rico em normatividade, o qual vem integrado
no próprio conceito de dano – e não mais na conduta, a partir da operacionalização
dos conceitos clássicos de ilicitude e de antijuridicidade –, permitindo convertê-lo
em importante f‌iltro de seleção dos prejuízos passíveis de reparação. Quanto mais
porque esta função adquire especial relevância em um regime no qual os outros
pressupostos que poderiam exercer esta função tiveram a sua aferição suprimida87.
E tal não signif‌ica, como se poderia sustentar, na importação de um problema
alheio88, na medida em que o artigo 2.043 do Codice Civile faz alusão expressa à
86. Este reconhecimento é expresso por parte da doutrina italiana, a qual tem sistematicamente asseverado
que “l’ingiustizia si conferma como l’ùnico criterio giuridico che permete di qualif‌icarei il dano risarcibi-
le”; assim, DI LAURO, Antonino Procida Mirabelli; FEOLA, Maria. La responsabilità civile, cit., p. 189. No
mesmo sentido, BUSNELLI, Francesco Donato. La parabola della responsabilità civile. Rivista critica del
diritto privato, Bologna, v. 6, n. 4, p. 643 e ss., dec. 1988, p. 654.
87. Conforme tem-se reconhecido acerca da questão ora em exame, “[o] conceito normativo de dano não
resolve o problema do seu preenchimento. Embora evite as dif‌iculdades de uma compreensão social ou
empírica de prejuízo, por si só é inoperante. Para o aludido preenchimento relevam outros pressupostos da
responsabilidade, particularmente a ilicitude”; assim, FRADA, Manuel A. Carneiro da. Direito Civil, cit., p.
90. Está-se de total acordo com estas premissas e delas se pode extrair que, no campo da responsabilidade
civil, não apenas vai ratif‌icada a impossibilidade de se considerar absolutamente irrelevante o conteúdo da
ilicitude, porém, diante da impossibilidade da sua integral aplicação, promover-se a integração dos seus
elementos residuais no próprio conceito normativo de dano, nos moldes do que se opera por intermédio
de uma valoração nos moldes da injustiça do dano italiana.
88. Assim se diz “problema” porque não há dúvidas que o Código de 1942, ao associar a por ele denominada
injustiça ao dano e não à conduta, trouxe grande inovação aos modelos então vigentes e, por conseguinte,
criou intensa controvérsia que precisou ser destrinchada pela doutrina italiana ao longo dos anos, de modo
acelerar uma mudança de paradigma.
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RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA DA FRAGMENTARIEDADE À RECONSTRUÇÃO SISTEMÁTICA
238
injustiça do dano e não da conduta, o que não se verif‌icada com igual clareza nas
ordens jurídicas portuguesa e brasileira, ou mesmo nos sistemas paradigmáticos
francês e alemão89.
Trata-se, ao invés, de reconhecer uma solução que foi forjada ao longo dos anos
na tentativa de bem equacionar a inovação trazida pelo Diploma de 1942 – é bem
verdade, para resolver um problema prático da experiência italiana –, e que, agora,
diante da forma como estão a se colocar as novas necessidades a serem geridas pela
responsabilidade civil, passa a se constituir em meio de bem satisfazer a imprescin-
dível atenção que merece ser dada, em paralelo, aos interesses contrapostos que se
apresentam na complexa gestão do dano a partir de uma perspectiva de imputação
objetiva.
Em palavras mais precisas, é de se af‌irmar que não se pretende a estrita adoção
de um modelo cujos termos (do ponto de vista legislativo) não têm uma expressa
adoção por parte dos demais sistemas jurídicos. O que se deseja é lançar mão de um
conceito que, corporizado por meio da experiência do danno ingiusto – especialmente
tendo em vista a sua aferição por meio de um duplo exame non iure e contra ius que
se projeta em relação ao dano, ainda que na sua interface com o fato gerador do qual
provém –, vem concretizado em termos normativos e apresenta-se adequado a suprir
necessidades bem perceptíveis em um regime geral de responsabilidade objetiva.
E o fato de os sistemas jurídicos não preverem a necessidade de um requisito
nos moldes da injustiça do dano – a designação, reconhece-se, não se apresenta a
mais adequada, af‌igurando-se preferível algo associado à ideia de (i)legitimidade,
diante das dif‌iculdades semânticas próprias do termo (in)justiça – não é empecilho
ao reconhecimento da necessidade de uma valoração complexa, nos moldes em que
por meio dele representada. Isso porque, tal qual visto, o processo de subsunção
dos fatos na norma de imputação objetiva bem permite que, quando da consecução
deste processo, observe-se para a imprescindibilidade de que o prejuízo sofrido pela
vítima, a f‌im de justif‌icar o dever de indenizar respectivo, encerre uma violação a
um interesse juridicamente protegido (do ponto de vista da ponderação a partir dos
interesses do lesado) e não se dê no âmbito do exercício regular de um direito (do
ponto de vista do sujeito responsável)90.
89. A condescendência com importações estéreis por simples invocação da autoridade do direito comparado
tem sido preocupação de há muito manifestada. Nesta linha, ao contrário da noção jurídica de dano injusto,
que se apresenta útil à solução de um problema concreto (a necessidade de integração de elementos nor-
mativos relevantes à responsabilidade objetiva, mas que restaram desalojados do processo de surgimento
do vínculo obrigacional indenizatório em razão da irrelevância da ilicitude, nos seus termos genuínos), já
se teve oportunidade de sustentar, por exemplo, a inutilidade do conceito de dano existencial, igualmente
caro à experiência jurídica italiana, mas inútil a outras realidades jurídicas, em razão dos moldes como os
danos extrapatrimoniais vêm regulados (de maneira aberta) nos sistemas jurídicos português e brasileiro,
por exemplo. Assim, TEIXEIRA NETO, Dano moral coletivo, cit., p. 45, nota 60.
90. Neste aspecto, como obser va SACCO, Rodolfo. Che cos’è il diritto comparato. Milano: Giuffrè, 1992, p.
276, “[i] francesi sono passati dalla regola della lesione del diritto alla declamazione del neminem laedere
senza norma autorizativa. I tedeschi stanno demolendo gli steccati dei §§ 823 e 826 senza bisogno di uma
norma autorizativa”, constatações que bem demonstram a possibilidade que, por meio de um processo
EBOOK RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA.indb 238EBOOK RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA.indb 238 02/12/2021 09:14:0502/12/2021 09:14:05
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CAPÍTULO 5 • BASES PARA A RECONSTRUÇÃO UNITÁRIA DE UM REGIME GERAL
Esta é a concretização que se está a propor: que a ponderação acerca da ilegiti-
midade ou da relevância do dano seja verif‌icada em decorrência da violação de um
interesse jurídico titulado pela vítima em razão do prejuízo que lhe fora causado
(prisma do lesado) e em razão da impossibilidade de se verif‌icar que este mesmo
prejuízo tenha decorrido do regular exercício de um direito por parte do sujeito
responsável (prisma do lesante).
Quanto mais porque esta forma de concretizar o conceito de dano, permitindo
uma mais precisa delimitação entre aqueles cuja reparação se legitima e aqueles que
devem permanecer na esfera jurídica em que ocorreram, na medida em que releva
ambos os interesses contrapostos por meio das duas valorações que traz em si, resta
por se constituir em notória ferramenta de concretização da solidariedade91, nos
exatos moldes do que se espera de um regime geral de responsabilidade objetiva.
Dito processo, na sequência, vem completado por uma avaliação também nor-
mativa do nexo de causalidade, nos termos em que se passa a tratar.
2.2.2 A operatividade da noção juridicizada de nexo causal
Na linha do que sucede com o conceito de dano, também a noção jurídica de
causalidade vem chamada a atender necessidades próprias da responsabilidade civil
objetiva, relacionadas, em última análise, à imprescindibilidade de bem delimitar os
prejuízos que justif‌icarão o surgimento de um vínculo obrigacional reparatório não
legitimado pelo princípio da culpa e pela noção de reprovabilidade a ele associada.
Isso porque não obstante a realocação de elementos normativos provenientes
de outros pressupostos seja predominantemente concretizada, nos moldes em que
visto supra, por meio da reestruturação do conceito de dano juridicamente relevante,
ocorre que, quando da aplicação das variadas fattispecie, não é infrequente verif‌icar-se
a necessidade de algum ajuste na demarcação do campo operativo da responsabi-
lidade objetiva, o que deverá ser solucionado por meio da adoção de um conteúdo
normativo para a causalidade.
Contribui a viabilizar esta operação o fato de não se ter, em qualquer dos sistemas
jurídicos em exame, a adoção taxativa (e, portanto, exclusiva/excludente) de uma ou
outra teoria acerca do pressuposto em causa, reconduzindo à construção do que se
tem chamado nexo causal f‌lexível92. Daí a possibilidade de, quando da sua concreti-
zação, à vista da situação de fato posta, seja possível – a partir de um sequencial lógico
interpretativo bem estruturado, é possível promover ajustes de aplicação da norma sem a necessidade de
um comando legal expresso a respeito. Tais evidências bem servem, assim, para sustentar que a forma como
se interpreta a regra que exige a presença do dano para f‌ins de surgimento do dever de indenizar pode ser
concebida a partir de um viés preponderantemente normativo (nos moldes do danno ingiusto) mesmo à
vista da ausência de uma regra textualmente idêntica àquela do artigo 2.043 do Codice Civile.
91. BARCELLONA, Mario. La responsabilità civile, cit., p. 23.
92. VIOLANTE, Andrea. Responsabilità oggettiva e causalità f‌lessibile. Napoli: Edizioni Scientif‌iche Italiane,
1999, p. 59.
EBOOK RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA.indb 239EBOOK RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA.indb 239 02/12/2021 09:14:0502/12/2021 09:14:05
RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA DA FRAGMENTARIEDADE À RECONSTRUÇÃO SISTEMÁTICA
240
que parte da condicio sine qua non e leva em conta os demais elementos normativos
disponíveis no ordenamento – construir-se um conceito útil de nexo de causalidade,
suf‌iciente não apenas a concretizar de modo adequado as funções da reponsabilidade
civil objetiva, mas também a temperar eventuais excessos que decorreriam de uma
aplicação excessivamente rigorosa dos seus termos93.
É bem verdade que tal não se trata de uma realidade exclusiva da imputação
objetiva, pois também o regime geral assente na culpa, em vários casos, tem de-
mandado uma revisão do pressuposto em causa, inclusive com uma conjugação de
teorias a f‌im de viabilizar um resultado prático útil, independentemente, aliás, da
terminologia adotada. O que ocorre é que os maiores questionamentos postos em
matéria de causalidade estão, em grande parte, associados a situações tipicamente
submetidas a regimes cuja imputação se estabelece a partir de requisitos de matriz
objetiva94, o que aumenta a relevância de ressistematização de dito pressuposto para
f‌ins da adequada operacionalização de um regime geral desta natureza.
Não se desconsidera que, tal qual antes referido, parcela da doutrina tem aten-
tado para o fato de que, ao menos a partir de uma valoração em abstrato do juízo
de imputação, seria preferível que a problemática concernente à seleção dos danos
ressarcíveis não fosse operada por intermédio do nexo causal, mas apenas por meio
da concretização do conceito de dano juridicamente relevante95. Isso porque é no
seu âmbito de demarcação – através da sua normatividade – que se deve verif‌icar o
alcance das regras de responsabilidade civil, independentemente da sua matriz, o
que somente se agrava naquelas de ordem objetiva.
Não obstante, em tese, tal assertiva não seja equivocada, a verdade é que, espe-
cialmente diante da supressão de pressupostos pela qual passa um regime geral de
imputação objetiva, tal qual já referido em diversas oportunidades, haverá situações
nas quais a simples concretização do conceito de dano, mesmo quando normatizado,
93. SCHREIBER, Anderson. Novos paradigmas da responsabilidade civil. 3ed. São Paulo: Atlas, 2011, p. 66-67.
Não obstante se esteja de acordo com as premissas postas pelo autor, não se pode concordar com a af‌irmação
no sentido de que dito procedimento tende a garantir, na prática, uma maior indenizabilidade dos danos
sofridos pelas vítimas. Isso porque se entende que a concretização do nexo causal por meio de um processo
juridicizado não pode tomar, de antemão, um partido ou um objetivo a ser alcançado, mas ter por f‌inalidade
garantir uma adequada aplicação da responsabilidade objetiva, independentemente de isso representar uma
ampliação ou uma restrição do seu alcance. Em suma, o que importa e deve ser perseguido é uma adequada
operacionalização do instituto e não a garantia de uma ressarcibilidade que, se desprovida de fundamento
normativo, poder-se-ia apresentar até mesmo ilegítima.
94. FRADA, Manuel A. Carneiro da. Direito Civil, cit., p. 101; nas palavras do autor, “os riscos da sociedade
pós-industrial multiplicaram-se e os processos causais danosos não são, com enorme frequência, nem
singulares nem transparentes”. Considerando que as hipóteses tipicamente – ou ao menos com maior
frequência – características de uma realidade pós-industrial estão, em larga escala, submetidas a regras de
responsabilidade objetiva, mesmo que com nexos de imputação variados, é compreensível que a proble-
mática associada à causalidade venha a tomar contornos particulares em um regime geral nos moldes do
que se está a propor, assumindo funções que um simples juízo naturalístico de condicio sine qua non não
está apto a responder.
95. MONATERI, Pier Giuseppe. Responsabilità civile (voce). AAVV. Digesto delle Discipline Privatistiche. Sezione
Civile. Torino: UTET, 2011, t. XVII, p. 12.
EBOOK RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA.indb 240EBOOK RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA.indb 240 02/12/2021 09:14:0502/12/2021 09:14:05
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CAPÍTULO 5 • BASES PARA A RECONSTRUÇÃO UNITÁRIA DE UM REGIME GERAL
não baste à adequada consecução deste f‌im. Daí a necessidade de que, em determi-
nados casos, mesmo que por uma via corretiva, quando os caminhos assim ditos
tradicionais à demarcação da causalidade suf‌iciente à imputação não se mostrarem
de todo adequados, seja a aferição do dito pressuposto empregada para f‌ins de deli-
mitação entre os prejuízos que serão objeto de um dever de ressarcimento e aqueles
que, legitimamente, permanecerão na esfera jurídica da vítima96.
Tal f‌ica especialmente bem evidenciado quando se examinam diversas situações
nas quais se mostra imprescindível a compatibilização do nexo de causalidade com
o escopo da norma violada. Por meio deste recurso será possível – tanto para f‌ins de
ampliação quanto de restrição da responsabilidade civil – uma delimitação mais pre-
cisa dos danos a serem ressarcidos, nomeadamente através de uma aferição corretiva,
quando a equivalência das condições e a causalidade adequada não se mostrarem
suf‌icientes para este f‌im, diante da sua preponderância fático-naturalística.
Nestes termos, af‌igura-se relevante a compreensão da possibilidade de se re-
construir, tendo em conta o escopo da norma violada, a relação probabilística em
abstrato que se estabelece entre a fonte de responsabilidade e o dano, demonstran-
do-se, assim, que o evento deve estar inserido nos limites do risco correspondente.
Em outras palavras, o escopo da norma passa a ser tomado, no estabelecimento dos
limites do dever de indenizar, como guia à concretização dos limites da relação cau-
sal entre o dano indenizável e o fator de atribuição previsto na fattispecie respectiva,
permitindo a consideração das situações que, normativamente, visam a ser tuteladas
pelo ordenamento jurídico97.
96. Como bem observa FRADA, Manuel A. Carneiro da. Direito Civil, cit., p. 101, não há como se desconsiderar o
fato de que o debate em torno da causalidade, ao menos visto a partir de um prisma precipuamente jurídico,
está permeado “por critérios de distribuição dos riscos em sociedade (mesmo que não assumidos explicita-
mente)”. Esta constatação, assim, reforça a necessidade de conexão entre a demarcação da causalidade e a
aferição do escopo da norma violada, exatamente com o f‌ito de estabelecer em que margem determinados
danos são atribuídos a determinadas esferas jurídicas.
97. BORDON, Raniero. Una nuova causalità per la responsabilità civile. Persona e danno (a cura di Paolo Cendon),
Trieste, 13 feb. 2008. Disponível em: .personaedanno.it/articolo/una-nuova-causalita-per-la-
-responsabilita-civile-raniero-bordon>. Acesso em: 06 ago. 2017. A propósito, o autor cita importante decisão
proferida pelas Sezioni Unite Civili da Corte de Cassação italiana (sentença n. 581, de 15 jan. 2008), a qual
reconheceu, partindo das premissas extraíveis do escopo da norma violada, a possibilidade de que, em uma
situação envolvendo danos associados à contração de doença infectocontagiosa verif‌icada após a realização
de terapia com o uso de sangue humano, fosse reconhecido o dever de reparar a partir do estabelecimento
do nexo de causalidade com base no preceito “più probabile che no”. Ou seja, reconhece-se que a causali-
dade, mesmo diante de alguma parcela de dúvida, pode ser estabelecida a partir da uma forte probabilidade
extraível do risco normal associado a uma dada atividade, tendo em vista o escopo da norma que regula a
proteção respectiva nos casos a ela vinculados. No caso, entendeu-se que era “mais provável que não” o fato
de a contaminação decorrer da transfusão realizada, especialmente tendo em vista os parcos mecanismos
de controle utilizados na época para as doenças contraídas. A íntegra da decisão está disponível em:
www.studiolegalegiovanniromano.it/cassazione__ss__uu___sent__581_2008___danni_da_sangue_in-
fetto___testo_da_altalex_nr__2011_del_15_01_08_122.html>. Acesso em: 06 jan. 2018. Aliás, a regra
probabilística acerca da causalidade civil (justamente o que a diferencia da causalidade penal, na qual vige
a máxima “oltre il ragionevole dubbio”), já havia sido reconhecida pela Cassação, por meio da sua 3ª Seção
Cível, quando proferida a sentença n. 21619, de 16 out. 2007, o que veio apenas reaf‌irmado pelas Seções
Unidas, dando caráter de generalidade à construção jurídica em causa.
EBOOK RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA.indb 241EBOOK RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA.indb 241 02/12/2021 09:14:0502/12/2021 09:14:05
RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA DA FRAGMENTARIEDADE À RECONSTRUÇÃO SISTEMÁTICA
242
Exatamente por isso é que, não desconsiderando vozes em sentido contrário98,
está-se de acordo com a proposição segundo a qual a adoção de uma aferição assim dita
normativa do nexo de causalidade será, quiçá, a única adequada à responsabilidade
objetiva99. E tal decorre do seu potencial para resolver as necessidades de alocação
dos elementos que, remanescendo de um juízo de valoração nos moldes da ilicitude
e não sendo de todo absorvidos pelo conceito juridicizado de dano defendido até
aqui, mostram-se imprescindível à adequada operacionalização de um regime geral
nos moldes em que proposto.
Não se trata de sustentar a imprescindibilidade da existência de um risco especial
de ocorrência de danos para f‌ins de justif‌icar a imputação, o que já se teve oportunida-
de de rechaçar em momento precedente, ao menos enquanto regra geral. Trata-se tão
somente de reconhecer que toda e qualquer atividade (aqui compreendida em sentido
amplo) traz em si algum risco, mesmo que sequer tenha relevância para justif‌icar
um agravamento da imputação; a identif‌icação deste risco é que permite completar/
integrar o processo de aferição do nexo de causalidade, para o f‌im de determinar
que um dado evento possa ou não ser razoavelmente inserido nos desdobramentos
decorrentes da atividade sob exame, o que deverá ser feito a partir da consideração
do escopo da norma por ele violada.
Para este f‌im, é imperioso tenha-se presente que, na responsabilidade civil
objetiva, são os critérios de imputação legalmente estabelecidos que delimitam a
sequência causal que releva para f‌ins de surgimento da responsabilidade, e não a
conduta de um dado agente que se pretende responsável100. Tal faz com que os ele-
mentos normativos, devidamente ordenados pelo elemento cultural, estabeleçam,
em conjunto, a partir da subsunção dos fatos à fattispecie, o campo de atuação da
imputação correspondente101.
A propósito, não se pode esquecer que o nexo causal é de vital importância
justamente a concretizar diversas das situações de exclusão da responsabilidade
objetiva, em razão da sua ruptura. Tanto que a modulação da concretização das res-
pectivas f‌iguras – caso fortuito e força maior, fatos exclusivos da vítima e de terceiro
–, por meio do reconhecimento de que apenas aquelas que são externas à fonte de
responsabilidade (v.g., exercício de uma atividade ou situação/condição jurídica
98. OLIVEIRA, Ana Perestrelo de. Causalidade e imputação na responsabilidade civil ambiental. Coimbra: Al-
medina, 2007, p. 60; ATAÍDE, Rui Paulo Coutinho de Mascarenhas. Responsabilidade civil por violação de
deveres de tráfego. Coimbra: Almedina, 2015, p. 770; dentre outros.
99. CORDEIRO, António Menezes. Da Responsabilidade Civil dos Administradores das Sociedades Comerciais.
Lisboa: Lex, 1997, p. 539. Cumpre retomar que, nas exatas palavras do autor, a teoria do escopo da norma
“cobriria bem a imputação objectiva; seria mesmo a única forma de, aí, determinar a causalidade”.
100. CASTRONOVO, Carlo. La nuova responsabilità civile, cit., p. 338.
101. Daí que, neste norte, consoante leciona BUSSANI, Mauro. La responsabilità civile al tempo della crisi. Rivista
Trimestrale di Diritto e Procedura Civile, Milano, v. 69, n. 2, p. 567-581, giu. 2015, p. 572-573, todo o cenário
que envolve a forma como se processa a imputação objetiva converte o nexo causal em instrumento dúctil e
potente para a f‌ixação da linha de corte entre as posições ressarcíveis daquelas que deverão permanecer sob
o encargo do lesado, fazendo com que o emprego ponderado da sua normatividade seja hábil a “capturar
na rede aquiliana” uma série de situações que lhe escapariam.
EBOOK RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA.indb 242EBOOK RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA.indb 242 02/12/2021 09:14:0502/12/2021 09:14:05
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CAPÍTULO 5 • BASES PARA A RECONSTRUÇÃO UNITÁRIA DE UM REGIME GERAL
do sujeito dito responsável), bem servem a este f‌im, o que não deixa de, conforme
já af‌irmado precedentemente, representar, por meio da causalidade, um esforço a
situar o âmbito de incidência da imputação apenas nos limites do seu real e efetivo
fator de atribuição.
Dito de outro modo, no momento em que se reconhece que apenas o fortuito
externo tem potencial para excluir a responsabilidade civil objetiva, consagra-se,
mesmo que não de modo expresso, por intermédio da aferição do escopo da norma
violada – dos limites que a norma de proteção visa a dar ao risco de determinadas
atividades, por exemplo –, uma visão normativa do próprio nexo de causalidade, atri-
buindo-lhe a prerrogativa de, juntamente com o conceito juridicizado de dano, fazer
as vezes de f‌iltro do dever de reparar situado fora dos limites do princípio da culpa
Neste cenário, é possível verif‌icar que a concretização do nexo de causalidade
em um regime geral de imputação objetiva passa a se constituir – a partir de uma
perspectiva juridicizada, que leva em conta não apenas a relação fática de causa e
efeito, mas, mais do que isso, também a interconexão lógica com o intuito protetivo
das regras de responsabilidade que autorizam, na hipótese específ‌ica em análise,
o surgimento de um dever de indenizar102 – em ef‌iciente instrumento a promover,
mesmo que com frequência e intensidade variadas em cada fattispecie, a seleção dos
danos ressarcíveis103.
102. Neste particular, não obstante critique o exagero da importância atribuída à teoria do escopo da norma
violada, que prefere denominar “f‌im de proteção da norma”, FRADA, Manuel A. Carneiro da. Direito Civil,
cit., p. 101-102, atenta para o fato – com o que se está de acordo – de que o preenchimento da causalidade
não pode ser visto se não como um problema de interpretação normativa.
103. Assim, ALPA, Guido. La responsabilità civile. Principi. Torino: UTET, 2015, p. 315.
EBOOK RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA.indb 243EBOOK RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA.indb 243 02/12/2021 09:14:0502/12/2021 09:14:05

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