Bens digitais no direito estrangeiro

AutorBruno Zampier
Páginas209-237
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BENS DIGITAIS NO DIREITO ESTRANGEIRO
7.1. A polêmica dos ativos digitais nos Estados Unidos
Em 2010, no Estado norte-americano de Delaware, veio a falecer,
subitamente, o Sr. Ray Johnson, vítima de um infarto fulminante do
coração. A Sra. Donna Johnson, f‌ilha do morto, foi surpreendida ao
saber que sua mãe, Sra. Cláudia Johnson, mesmo sendo viúva e in-
ventariante dos bens do falecido, não teria direito a acessar sua conta
de e-mail, nem seu arquivo digital com as fotos da família.
Segundo relatos, mãe e f‌ilha se sentiram ainda mais atribuladas
emocionalmente diante desta impossibilidade, sobremaneira após
aquela morte tão inesperada. Não ter acesso, principalmente ao ál-
bum da família digitalizado nem mesmo às contas que eram pagas de
maneira online pelo marido, causava não apenas sofrimentos, mas
transtornos de ordem econômica, com notif‌icações sobre ausências de
pagamentos de prêmios de seguros, dentre outras prestações. A vida
do Sr. Johnson, como a de tantas outras pessoas, estava em grande
parte arquivada digitalmente1.
Diante disso, a Sra. Donna contatou um representante do parla-
mento estadual, que apresentou uma lei visando resguardar os ativos
digitais deixados por uma pessoa morta.
Após mais de dois anos de debate e construção, o Estado de
Delaware aprovou a House of Bill 345, sancionada pelo governador
daquele ente em 12 de agosto de 2014, com efetiva entrada em vigor
apenas em 01 de janeiro de 2015. Esta legislação foi considerada a
primeira em todos os Estados Unidos a abordar de maneira ampla a
questão dos ativos digitais, trazendo a seguinte sinopse introdutória
1. Esta história está narrada em dezenas de sites, em especial da imprensa do
Estado de Delaware (BITTLE, 2014).
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Reconhecendo o crescimento percentual do número de pessoas que
conduzem sua vida de forma online e que isto tem trazido desaos após
a morte ou incapacidade destas, este Ato autoriza especicamente que
inventariantes acessem e controlem os ativos e contas digitais de uma
pessoa incapacitada ou morta, sob uma procuração, descendentes ou
instituidores, e beneciários de conança. O ato deve ser construído
deliberadamente para se permitir tal acesso e controle, especialmente
quando expressamente provido por um instrumento escrito. (DELAWA-
RE, 2014, tradução nossa)2.
Em 2012, no Estado do Oregon, nos EUA, os pais de um jovem
suicida solicitaram à rede social Facebook o acesso ao perf‌il digital do
falecido f‌ilho, sob a nobre justif‌icativa de tentar descobrir as razões
daquele ato fatídico. Porém, o Facebook não concedeu o acesso,
ao argumento de que violaria suas regras de uso preestabelecidas e
aceitas pelo f‌ilho quando da contratação do serviço. Discordando
da decisão da empresa digital, a Corte daquele Estado entendeu que
o perf‌il de um usuário deve ser considerado direito patrimonial,
sendo então possível sua sucessão. Determinou, dessa forma, que
o Facebook disponibilizasse aos pais o acesso à conta do defunto.
Perceba-se, Oregon não tinha lei específ‌ica sobre o tema. A decisão
do Judiciário deste Estado foi contrária à perspectiva ora defendida
neste estudo.
Por tudo o que fora dito nos capítulos anteriores, estes perf‌is de
redes sociais, contas de e-mail e outros ativos não devem ser tidos como
meros direitos de propriedade, apesar de este entendimento ser encon-
trado em várias decisões, especialmente em países do sistema common
law, onde ativos digitais são tidos como propriedades intelectuais.
Volvendo a Delaware (2014), embora esta legislação (HB 345)
tenha sido realmente a mais completa em termos de regulamentação
2. Recognizing that an increasing percentage of people’s lives are being
conducted online and that this has posed challenges after a person dies
or becomes incapacitated, this Act specif‌ically authorizes f‌iduciaries to
access and control the digital assets and digital accounts of an incapaci-
tated person, principal under a personal power of attorney, decedents or
settlors, and benef‌iciaries of trusts. The Act should be construed liberally
to allow such access and control, especially when expressly provided for
in a written instrument.
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