Biodireito , Biotecnologia e Bioética: um caminho comum

AutorRui Geraldo Camargo Viana e Maria Áurea Hebling de Marchi
Páginas9-50
CAPÍTULO 1
BIODIREITO, BIOTECNOLOGIA E BIOÉTICA:
UM CAMINHO COMUM
Rui Geraldo Camargo Viana
Livre-Docente pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo – Largo São
Francisco – FADUSP. Professor Titular de Direito Civil da Faculdade de Direito da
Universidade de São Paulo – Largo São Francisco. Desembargador aposentado do
Tribunal de Justiça de São Paulo. Advogado
Maria Áurea Hebling de Marchi
Advogada. Membro do Grupo de Pesquisa CNPq “Novas Fronteiras da Ciência Jurídica
– Desenvolvimento e Inovação Tecnológica: Biodireito e Biossegurança”. Membro da
Comissão de Biotecnologia e Biodireito da OAB/SP.
Cada um de nós é, indubitavelmente, culpado por todos e por tudo na Terra,
não só pelo pecado de todos no mundo, como cada um é, pessoalmente,
culpado por todos e cada um dos homens nesta Terra.
Fiodor Dostoiévski
Sumário: 1.1. Considerações iniciais – 1.2. Denições e histórico; 1.2.1. Evolução históri-
ca; 1.2.2. Conceitos; 1.2.3. Princípios – 1.3. Discussões: Panorama geral das temáticas da
Bioética e do Biodireito e suas problematizações; 1.3.1. Início e m da vida humana; 1.3.2.
Relação Médico-Paciente, Telemedicina e a Proteção de dados clínicos e genéticos na era
tecnológica; 1.3.3. Reprodução Humana Assistida; 1.3.4. Sexo Biológico, Comportamental
e de Identidade; 1.3.5. Engenharia genética e Biodireito à luz da saúde física e emocional;
1.3.6. Nutrigenômica; 1.3.7. Conselhos de Classe na área da Saúde e Comitê de Bioética;
1.3.8. Transplantes de órgãos e tecidos – 1.4. Possíveis Soluções: Medidas alternativas, inicia-
tiva legislativa e decisões judiciais a partir dos princípios da Bioética; 1.4.1. A necessidade (e
diculdade) de regramento especíco em relação às temáticas da Bioética e do Biodireito;
1.4.2. A dignidade da pessoa humana como paradigma bioético; 1.4.3. A observância dos
princípios da Bioética na aplicação do (Bio)direito e propostas alternativas para a solução de
conitos – 1.5. Referências Bibliográcas
1.1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS
O século XX foi marcado pelo desenvolvimento acentuado das pesquisas cien-
tíf‌icas e das práticas tecnológicas, utilizadas eminentemente no âmbito biomédico.
Já era imaginada por Aldous Huxley a ideia do “Admirável Mundo Novo”, obra
publicada em 1932, que embora à época tida como f‌icção, retrata bem a sociedade
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em que vivemos hoje: uma sociedade de cultura tecnocientíf‌ica, progressista e de-
saf‌iadora de limites.
Limites que são evidenciados pelo entusiasmo de se impulsionar as descobertas
e de se obter melhores resultados, sem, contudo, considerar as questões ético-jurí-
dicas de tais condutas. Daí a necessidade de se criar mecanismos de controle a partir
da Bioética e do Biodireito.
O avanço científ‌ico e tecnológico é notório. A exemplo disso, tem-se as incontá-
veis novas práticas médicas, a aplicação da tecnologia na saúde, a manipulação gené-
tica, a tentativa de melhorias no meio ambiente, dentre uma série de outras questões.
Mas essa busca desenfreada pelo progresso, por vezes, é incompatível com o
que se entende por dignidade da pessoa, primado bioético e fundamento do Estado
Democrático de Direito.
Desde as questões ambientais, das pesquisas com seres humanos, das experi-
mentações em animais, do início até a terminalidade da vida, muitas das implica-
ções éticas, sociais, biomédicas e jurídicas são carentes de regulamentação, sendo
amparadas apenas por resoluções de órgãos de classe, como o Conselho Federal de
Medicina e a Ordem dos Advogados do Brasil, que, vale dizer, não possuem efeito
erga onmes, ou seja, só vinculam as respectivas entidades.
As temáticas do Biodireito, da Bioética e da Biotecnologia despertam interesse e
curiosidade quando postas em debate. Muitos dos temas que serão abordados neste
trabalho podem não ser de conhecimento geral, e aqueles que são, podem causar
certo desconforto quando não enfrentados abertamente, despidos de qualquer tabu.
De todo modo, o que se pretende não é formar opinião sobre cada um dos
assuntos, nem chegar a um ponto comum, mas sim fomentar o debate científ‌ico e
apresentar questões que necessitam de atenção, seja por amparo legislativo ou por
medidas alternativas, mas sobretudo de respeito aos princípios bioéticos.
Nesse passo, o primeiro capítulo traz noções introdutórias da Bioética, do Biodi-
reito e da Biotecnologia, apresentando a evolução histórica, os conceitos e princípios
de cada instituto.
O segundo capítulo denomina-se “Panorama geral das temáticas do Biodireito
e suas problematizações”. Como sugere o título, a pretensão não é esgotar cada um
dos temas apontados, mas sim abordá-los de forma geral e direta, indicando suas
principais discussões e problematizações, o que dará respaldo para o desenvolvimento
do capítulo seguinte.
Por f‌im, o terceiro e último capítulo, aborda algumas medidas que podem ser
adotas para solucionar os conf‌litos oriundos da Bioética, como a necessidade de re-
gulamentação específ‌ica sobre determinadas matérias, a f‌im de promover segurança
jurídica e social, e a relevância de que as decisões judiciais, assim como eventuais leis,
sejam pautadas nos princípios da Bioética, considerando especialmente o princípio
constitucional da dignidade da pessoa humana.
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Capítulo 1 • Biodireito, BioteCnologia e BioétiCa: um Caminho Comum
Não se nega que cada tema genericamente abordado poderia ser assunto de
trabalho próprio, mas não se pode perder de vista a necessidade de apresentar temas
de tamanha importância nesse cenário atual de intenso desenvolvimento científ‌ico
e tecnológico.
Busca-se, portanto, no que for possível, expor as principais discussões em tor-
no de cada matéria e as implicações dali decorrentes. Assim, quem sabe, ao menos
incentive outros pesquisadores a se aprofundarem nas questões aqui levantadas.
1.2. DEFINIÇÕES E HISTÓRICO
Este item trata, em um primeiro momento, da evolução histórica e do desenvol-
vimento da Bioética, notadamente em razão das crueldades cometidas no contexto
da Segunda Guerra Mundial e das práticas médicas revolucionárias, por vezes, em
desrespeito ao ser humano, apresentando, ainda, os principais marcos da inf‌luência
do avanço científ‌ico e tecnológico na vida humana. Expõe, também, algumas def‌i-
nições doutrinárias para o termo Bioética, bem como seus princípios norteadores a
partir do Relatório Belmont.
A mesma sistemática é observada na abordagem do Biodireito, que, aliado à
Bioética, surge para impor limites ao progresso científ‌ico e tecnológico, sobretudo
quando em conf‌lito com a dignidade da pessoa, salientando seus conceitos dou-
trinários e sua principiologia própria. Seguindo o mesmo recorte, a Biotecnologia
é tratada como o avanço científ‌ico e tecnológico que ensejou o surgimento da
Bioética e do Biodireito diante de sua aplicação e consequências na vida humana,
pelo que suas práticas devem ser orientadas pelos princípios bioéticos e reguladas
pelo Biodireito.
1.2.1. Evolução histórica
Bioética
Muito embora o termo bioética só tenha surgido na década de 70, as questões
que englobam a matéria já estavam presentes antes disso, destacando-se como fato
marcante na história da humanidade a Segunda Guerra Mundial, com as experiências
dos nazistas.1
As práticas desumanas foram condenadas pelo Tribunal de Nuremberg, mesmo
período em que foram editadas regras para experiências em seres humanos, com a
criação do Código de Nuremberg, em 1947, indicando a necessidade de respeito ao
ser humano na realização de pesquisas científ‌icas (o Código foi revisto pela primeira
1. SAUWEN, Regina Fiuza; HRYNIEWICZ, Severo. O direito “in vitro”: Da Bioética ao Biodireito. 3. ed. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 23.
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