Bioética e gênero: a vulnerabilidade das mulheres no contexto de pandemia

AutorCamila Vasconcelos e Sarah Carvalho Santos
Ocupação do AutorAdvogada em Direito Médico, Pós Doutoranda em Direito pela FDV/Membro Pesquisadora do Grupo de Estudo e Pesquisa em Bioética (GEPBio) do Centro Universitário Newton Paiva. Advogada
Páginas115-134
BIOÉTICA E GÊNERO: A VULNERABILIDADE
DAS MULHERES NO CONTEXTO DE PANDEMIA
Camila Vasconcelos
Advogada em Direito Médico, Pós Doutoranda em Direito pela FDV, Doutora em
Bioética pela UNB, Mestre em Bioética pela UAÇ/UCP, segunda Vice Presidente da
Sociedade Brasileira de Bioética (2019-2021), Professora Adjunto III da Faculdade
de Medicina da Universidade Federal da Bahia. E-mail: camila.vasconcelos@ufba.br
Sarah Carvalho Santos
Membro Pesquisadora do Grupo de Estudo e Pesquisa em Bioética (GEPBio) do Centro
Universitário Newton Paiva. Advogada.
Sumário: 1. Introdução. 2. Bioética e gênero: a construção de uma bioética feminista. 3. In-
terseccionalidade: uma análise dos marcadores das desigualdades sociais. 4. O impacto dos
papéis de gênero e a Covid-19. 4.1. Masculinidades. 4.2. Aumento exponencial da violência
doméstica. 5. Combate à violência doméstica. 6. Conclusão. 7. Referências.
1. INTRODUÇÃO
Em um contexto de desigualdades sociais, crises vivenciadas pela humanidade ferem
desproporcionalmente as mulheres. O surto do ebola em 2014-2016 e a epidemia de zika
em 2015-2016 apresentaram, às ref‌lexões sobre saúde pública, o necessário enfrentamento
de questões socioeconômicas ligadas ao gênero. Isto porque, a exemplo desses períodos,
pôde-se observar que as mulheres, já vulnerabilizadas socialmente, foram maiormente
expostas aos riscos de saúde, que somaram-se à pobreza e riscos domésticos, situação
semelhante à vivida no decurso da pandemia que ora o Brasil enfrenta, relativa à Covid-19.
As mulheres compõem a maioria na linha de frente contra a pandemia de Covid-19,
o que implica estarem em busca do salvaguardo de inúmeras vidas enquanto se expõem ao
risco de contaminação. Somada a esta conjuntura e, tendo em vista o perf‌il de patriarcado
no Brasil, esta mulher traz, cotidianamente, os cuidados às famílias, às pessoas adoecidas
que as circundam, bem como crianças e idosos, assim como o trabalho doméstico não
remunerado, aumentando a sua sobrecarga.
As políticas de enfrentamento ao avanço da Covid-19 evidenciaram que as mulhe-
res estão sujeitas a outro tipo de problema: a violência doméstica. Tal como disposto a
seguir, ao se aplicar as medidas de isolamento social – necessárias à contenção do vírus
–, passou-se ao contato prolongado entre mulheres e seus agressores, aumentando os
números já expressivos de violências, num momento em que os serviços de apoio estão
interrompidos ou inacessíveis.
CAMILA VASCONCELOS E SARAH CARVALHO SANTOS
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Diante das vulnerabilidades prementes à pandemia, agora potencializadas, faz-se
necessário compreender que eventuais respostas às questões de saúde precisarão consi-
derar o impacto assimétrico às vidas das mulheres. Nessa perspectiva, o presente artigo
nasce do esforço de discutir, por meio de um olhar jurídico e bioético, a inf‌luência do
contexto de pandemia nas problemáticas de gênero já consideradas no Brasil.
2. BIOÉTICA E GÊNERO: A CONSTRUÇÃO DE UMA BIOÉTICA FEMINISTA
A bioética, na perspectiva acadêmica, surgiu no início da década de 1970, nos Estados
Unidos, em razão dos dilemas éticos fomentados pelos impactos do desenvolvimento
tecnológico na perspectiva ecológica e biotecnológico no exercício da medicina. Nesse
sentido, o pesquisador americano Van Rensselaer Potter propôs esta abordagem com
o intuito de introduzir uma ref‌lexão ética sobre os saberes biológicos e os impactos da
tecnociência à vida.1
Para ele seria necessário pensar sobre a sobrevivência da espécie humana sem esque-
cer a manutenção de uma ref‌lexão ética, para que fosse possível o desenvolvimento da
civilização de modo sustentável. Assim, a bioética não só seria uma ponte entre a ciência
biológica e a ética, mas também exigia “uma disciplina que guiasse a humanidade como
uma ponte para o futuro.”2
No decurso da sua proposição, o obstetra holandês André Hellegers, também pesqui-
sador no âmbito biomédico na universidade de Georgetown, apresentou uma discussão
sobre o progresso biotecnológico na reprodução humana e sua implicação ética, pelo
que, em seu ver, a bioética seria uma ponte entre a ética e a medicina.3 Esta proposta,
adotada pelo Instituto Kenedy, conquistou hegemonia e, sobretudo, em razão da redução
principialista da bioética proposta por Beauchamp e Childress em 1979, terminou por
ser universalizada.4 A teoria principialista consolidou a bioética como uma disciplina
maiormente voltada para a ética médica, se pautando em orientar os conf‌litos morais
por quatro princípios básicos universais, a saber, o respeito à autonomia, a benef‌icência,
a não malef‌icência e a justiça.
Essa abordagem da Bioética se expandiu dos Estados Unidos da América aos demais
países, todavia a partir de 1990 começaram a surgir críticas à universalidade destes quatro
princípios e à sua aplicabilidade limitada diante de problemas bioéticos majorados por
contextos socioeconômicos diversos daqueles estadunidenses.
Surgiu, assim, na América Latina, a bioética de intervenção como uma proposta que
recomendava a priorização de tomadas de decisão e políticas que benef‌iciassem o máximo
1. POTTER, Van Rensselaer. Bioética: ponte para o futuro. São Paulo: Edições Loyola; 2016.
2. PESSINI, Leo. Script do vídeo (42 minutos) elaborado e apresentado especialmente para o IV Congresso Mundial de
Bioética (04 a 07 de novembro/1998) em Tóquio. (Transcrição e tradução por Leo Pessini.). O Mundo da Saúde. 1998,
v. 22, n. 6, p. 370-374.
3. REICH, Warren Thomas. The word ´bioethics´: its birth and the legacies of those who shaped it. Kennedy Inst Ethics
Journal, v. 5, n. 01, p. 19-34, 1995. Disponível em .ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/10184226> Acesso
em 07 de abril em 2020.
4. CUNHA, Thiago; LORENZO, Cláudio. Bioética global na perspectiva da bioética crítica. Revista Bioéti-
ca, v. 22, n. 1, p. 116-125, 2014. Disponível em: .scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pi-
d=S1983-80422014000100013>. Acesso em 07 de abril de 2020.

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