Blacks only: o caso dos trainees do Magazine Luiza

"Eu sei que o ódio, o egoísmo, a hipocrisia, a ambição,

Almas escuras de grutas, onde não desce um clarão,

Peitos surdos às conquistas, olhos fechados às vistas, vistas fechadas à luz,

Do poeta solitário, lançam pedras ao calvário, lançam blasfêmias à cruz"

(Castro Alves)

Na "Divina Comédia", conta-se que, ao atravessarem a porta do Inferno, Dante e Virgílio leram a epígrafe de seu frontispício, que assim dizia: "lasciate ogni speranza voi ch'entrate" [1], impondo aos ingressantes a renúncia à esperança, porquanto a realidade inclemente não lhes permitiria tergiversar acerca do infausto destino.

A alegoria contada na peregrinação dos poetas é mimetizada — nos dias atuais — por qualquer cidadão não negro entre os 13,8% de desempregados brasileiros [2] a postular uma vaga de trainee do Magalu: "Abandone todas as suas esperanças antes mesmo de tentar!". Sob o louvável propósito de "trazer mais diversidade racial para os cargos de liderança da companhia" [3], a rede varejista lançou uma campanha de recrutamento que proscreve — de antemão todas as demais cores [4].

É impossível ignorar o quanto é trôpega a marcha civilizatória por uma sociedade que reduza desigualdades e promova o bem de todos (CF, 3º, III e IV). Até a edificação do postulado segundo o qual "tous les êtres humains naissent libres et égaux en dignité et en droits" [5], sociedades democráticas como a norte-americana tiveram uma Suprema Corte a chancelar a ideia de que negros não estavam protegidos pela Constituição e jamais poderiam se tornar cidadãos (Dred Scott v. Sandford, 60 U.S. 393 (1857)) e a declarar a constitucionalidade da segregação racial em locais públicos, sob a doutrina do "separate but equal" (Plessy v. Ferguson, 163 U.S. 537 (1896)). No Brasil, "a escravidão foi uma tragédia humanitária de proporções gigantescas", uma "história de domínio e opressão de um grupo de seres humanos pelo outro, de muita dor e injustiça" [6].

Diante dessa enorme dívida histórica com os afrodescendentes, soa mesmo antipático lançar questionamentos sobre um processo seletivo desse jaez, notadamente num contexto social polarizado em que muitos possuem convicções tão arraigadas que são absolutamente refratários ao diálogo construtivo. Conquanto o maniqueísmo fundamentalista não propicie um cenário auspicioso, a manifestação do pensamento deve resistir, sob a admoestação de Sófocles: [7] "Não carregues em ti só uma morada da verdade: o que tu dizes, nada mais que isso. Quem julga deter saber exclusivo, possuir língua e mente estranhas aos demais, nesse, se o abres, verás o vazio. (…). Do nauta que firma resolutamente o pé e não arreda um passo, o barco vira e a viagem termina com o casco ao vento".

A contratação de trabalhadores tendo a cor como critério excludente de todos os demais candidatos é desafiada por um obstáculo constitucional, qual seja o inciso XXX, do artigo da CF, cujo teor é o seguinte:

"Artigo 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:

(...)

XXX - proibição de diferença de salários, de exercício de funções e de critério de admissão por motivo de sexo, idade, cor ou estado civil."

Ao esmiuçar a regra, a Lei nº 9.029/1995 reafirma ser "proibida a adoção de qualquer prática discriminatória e limitativa para efeito de acesso à relação de trabalho, (...) por motivo de (...) cor" (artigo 1º). As Convenções 111 (artigo 1.1 "a") e 117 (artigo 14. 1. "b") da OIT igualmente censuram tais atos.

Nos limites normativos destacados, é necessário — no mínimo — discutir a constitucionalidade da exclusão de todas as demais cores de uma oferta de emprego, haja vista a Suprema Corte afirmar que o "nosso sistema veda, no inciso XXX do artigo 7º da CF, qualquer discriminação decorrente — além, evidentemente, da nacionalidade – de sexo, idade, cor ou estado civil" (STF, RE 161.243, 2ª T, DJ de 19-12-1997).

O primeiro impulso de justificação da medida adotada é o recurso à ideia de isonomia (CF, 5º, caput) enquanto fator de distinção positiva, pois é correta a ideia de Aristóteles segundo a qual "a igualdade parece ser a base do direito, e o é efetivamente, mas unicamente para os iguais e não para todos. A desigualdade também o é, mas apenas para os desiguais" [8]. Rui Barbosa refinou o conceito ao explicar que "a regra da igualdade não consiste senão em quinhoar desigualmente aos desiguais, na medida em que se desigualam. Nesta desigualdade social, proporcionada à desigualdade natural, é que se acha a verdadeira lei da igualdade" [9].

A questão é que a medida não promove ...

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