A Boa-Fé Processual Como Princípio Fundamental no Novo CPC

AutorFernando Rubin
CargoAdvogado-sócio do Escritório de Direito Social, especializado em saúde do trabalhador. Bacharel em Direito (UFRGS), com a distinção da Láurea Acadêmica e mestre em Processo Civil (UFRGS)
Páginas6-13

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1. Apresentação

Se um dos vetores do código se assenta na maior liberdade concedida às partes para participação ativa ao longo de todo o procedimento comum, conforme estabelecido desde o art. 7º do novo CPC e desenvolvido em outros tantos dispositivos ao longo do codex ficomo no art. 191 que prevê a possibilidade das partes fixarem acordo de procedimento (calendário processual) ?, é segu-ro que, em contrapartida, foram desenvolvidos mecanismos para coibir abusos, corporificados em atos atentatórios à dignidade da justiça1.

Embora a lógica da construção não seja nova, a alteração topológica é, já que a boa-fé no novo CPC aparece em artigo específico ador-nando as normas fundamentais do processo civil, corporificando um verdadeiro direito fundamental à probidade processual2: "assumindo papel de centralidade na compreensão do processo e, por conta disso, nos ônus, poderes, faculdades e deveres processuais"3.

Nesse contexto, então, aparece o art. 5º, na parte principiológica do codex, a regular que "aquele que de qualquer forma participa no processo deve comportar-se de acordo com a boa-fé".

O dispositivo contempla, de forma genérica, o princípio da boa-fé processual, segundo o qual a conduta de todos os sujeitos do processo (juiz, advogado privado ou público, defensor público, membro do MP, auxiliares da justiça e terceiros que intervêm ou são intimados a intervir no processo) deve seguir um padrão ético e objetivo de honestidade, di-ligência e confiança: "trata-se de exigência atrelada ao exercício do contraditório, uma vez que a efetiva participação das partes, em paridade de tratamento e faculdades, só se exaure quando essa participação observa os princípios da cooperação e da boa-fé processual"4.

É por esse caminho que partimos para mais um ensaio especí-fico a respeito do novo CPC, in-vestigando agora especialmente a disposição contida no art. 77 e seguintes da Lei 13.105/15, a tratar da litigância de má-fé.

2. Disciplina da matéria no Código Buzaid

Primeiramente, no entanto, necessário destacarmos os dispositivos no Código Buzaid que regulamentavam a matéria, a fim de confirmar os indícios de que a novel codificação tratou de manei-ra mais detalhada acerca da má-fé processual5.

De acordo com sedimentação inicial contida no art. 14 e seguintes do CPC/1973, tínhamos caracterizada a má-fé na fase de conhecimento, com previsão geral de multa de 1% sobre o valor da causa, além de indenização proporcional ao dano causado pela con-

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duta antiética. Ainda, havia previsão em sede recursal, com multa por fins protelatórios: 1% sobre o valor da causa nos embargos de declaração, com possibilidade de majoração até 10% na reiteração (art. 538), e multa entre 1% e 10% no agravo interno manifestamente inadmissível (art. 557). Por fim, havia previsão em sede de execução, com multa elevada de até 20% sobre o valor da condenação, por ato atentatório à dignidade da justiça, nos moldes estipulados pelo art. 600 e seguintes.

O tema da litigância de má-fé se insere no capítulo que trata dos deveres das partes. Tais deveres poderiam ser reduzidos a uma única assertiva: dever de auxiliar o Estado-juiz no descobrimento da verdade e na efetivação das decisões judiciais, sem utilizar expedientes antiéticos. Assim, incumbem às partes os deveres de expor os fatos em juízo conforme a verdade; proceder com lealdade e boa-fé; não formular pretensões, nem deduzir defesa, quando cientes de que são destituídas de fundamento; não produzir provas, nem praticar atos inúteis ou desnecessários à declaração ou defesa do direito; cumprir com exatidão os provimentos executivos, pro-visórios ou definitivos, sem criar embaraços à efetivação6.

A previsão mais emblemática contida no tradicional dispositivo regulamentador da litigância de má-fé envolve o dever de lealdade e de boa-fé (CPC/73, art. 14, II). Lealdade aqui no sentido de sinceridade, fidelidade, honesti-dade. A lealdade que se exige é a consciência de não agir de modo manifestamente contrário ao direito, que há alguma possibilidade no pleito, que a hipótese aventada não é absurda ou grosseira. Está de boa-fé no processo aquele que se comporta de forma aceitável, segundo padrões de conduta socialmente adequados7.

Ainda se insere nesse contexto a proibição de serem empregadas expressões injuriosas nos escritos apresentados no processo, cabendo ao magistrado mandar riscá-las; ou se proferidas em defesa oral, o juiz, nas palavras do antigo código, tem o dever de advertir o advogado que não as use, sob pena de lhe ser cassada a palavra.

"Expressões injuriosas" (CPC/73, art. 15), a partir de consolidação pretoriana, não tem o sentido empregado no Código Penal, referindo-se à dignidade e ao decoro. Ao contrário, visa abranger palavras escritas ou orais incompatíveis com a linguagem de estilo forense, a que estão vinculados os operadores do direito, em homenagem à seriedade do processo: "a veemência da postulação precisa cingir-se aos limites da polidez"8.

3. O conceito de boa-fé objetiva no âmbito processual

A boa-fé exigida dos sujeitos do processo em todas as etapas procedimentais é a de natureza objetiva - na esteira do que já constava no art. 422 do Código Civil 9-10.

A boa-fé objetiva revela-se no comportamento merecedor de fé, que não frustre a confiança do ou-tro, que não haja abuso do direito e por conseguinte maculação à boa-fé como regra de conduta11-12.

Evidente que há situações bastante tênues e que exigem do intér-prete enorme cautela na fixação da multa e na responsabilização civil daquele que praticou aparente improbidade processual; daí por que se deve perquirir situações, como as mencionadas no art. 80 da Lei 13.105/1513, em que objetivamen-te se identificam condutas viola-doras da boa-fé (má-fé objetiva), dispensando maior perquirição sobre o elemento volitivo (subjetivo) da conduta processual14.

Nota-se, portanto, que a boa-fé objetiva determina um dever de conduta, pois tem relação com o comportamento que se espera nas relações jurídicas, logo, não se dedica apenas à análise do estado mental subjetivo (se houve ou não realmente má intenção das partes): "basta uma análise perfunctória para se constatar que o dispositivo projetado impõe uma boa-fé comportamental; trata-se de necessária probidade e lealdade que deve nortear as condutas perpetradas durante o processo, o que, por certo, ultrapassa os aspectos anímicos da já conhecida boa-fé subjetiva, na qual a análise fica circunscrita ao âmbito da in-tenção das partes"15.

Nesse diapasão, por exemplo, é inadmissível que as partes adotem postura contraditória em juízo, não em uma determinada peça (respeitado o princípio da eventualidade), mas ao longo da tramitação do iter, o que pode resultar em reconhecimento de preclusão lógica (decorrente de abuso de direito)16.

Façamos, pois, de maneira mais clara essas diferenciações. A preclusão lógica é a que extingue a possibilidade de praticar-se determinado ato processual, pela realização de outro ato com ele incompatível17. Esta modalidade de preclusão decorre, portanto, da incompatibilidade da prática de um ato processual com outro já praticado18. Há quem sustente, como Heitor Vitor Mendonça Sica, que, tanto na inicial como na contestação, a preclusão lógica não se aplica, em face do ônus que, respectivamente, autor e réu têm em concentrar ataque e defesa, informados pelo princípio da eventualidade19.

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Entendemos, todavia, que não há de ser feita relação tão direta entre a preclusão lógica e o princípio da eventualidade - a ser utilizado na apresentação de matérias concentradas, e até incompatíveis, pelo autor e réu na fase inicial do feito, ou mesmo em recurso20. Ocorre que a preclusão lógica envolve tão somente atos processuais incompatíveis realizados um na sequência do outro (o que realmente pode caracterizar má-fé objetiva), e não simultaneamente na mesma peça (inicial ou contestação, ou ainda razões recursais). Por isso que, nesses casos envolvendo a regra da eventualidade, pensamos que não há espaço para aplicação da preclusão lógica (e reconhecimento de comportamento que caracterize litigância de má-fé), podendo, na verdade, cogitar-se da incidência da preclusão consumativa21 - a exigir que as partes tragam em uma determinada oportunidade todas as matérias, mesmo que incompatíveis, sob pena de não mais poderem ser apresentadas em momento processual posterior22.

Outro exemplo: no novo CPC, demandar contra precedente é litigância de má-fé? A questão não parece ser fácil, mas evidente que diante do caso concreto pode o julgador avaliar a possibilidade de aplicação da pena punitiva à parte que "insista em demandar por demandar"23. O tema merece ser examinado com cautela redo-brada, mesmo em nome do direito ao acesso amplo ao Poder Judiciário (art. 5º, XXXV da CF/88), cogitando-se do reconhecimento da má-fé processual - ainda mais nesse momento de transição de códigos - em situações de fia-grante condutiva inadequada da parte, a autorizar a noticiada punição.

4. O acentuado combate à má-fé processual no novo CPC

Pelo novo CPC, temos, de fato, mais amplas disposições a respeito do tema da má-fé processual a partir do art. 77, sendo consolidado, no art. 139, o amplo poder do magistrado, como diretor do processo, de prevenir ou reprimir qualquer ato contrário à dignidade de justiça e indeferir postulações meramente protelatórias, de ofício ou a requerimento da parte interessada (inciso III).

De início, saliente-se também a previsão no art. 81, de...

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