O não-branco, o sertão e o pensamento social brasileiro

AutorRené Marc da Costa Silva
Páginas427-454

René Marc da Costa Silva. Graduado em Antropologia e História pela Universidade de Brasília – UNB, Mestre e Doutor em História também pela UnB, professor Substituto na UnB, Professor na Upis, Professor no IESB e Professor no UniCeub. E-mail: renecostasilva@gmail.com.

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Introdução

Existe, desde pelo menos meados do século XIX, uma bem estruturada e persistente matriz dualista em importantes interpretações da sociedade brasileira. No sentido trazido por estas interpretações, “sertão e litoral representam os contrastes de uma sociedade vista como o principal problema a ser investigado, e que foi objeto de diferentes tentativas de interpretação. A idéia de um país moderno no litoral, em contraposição a um país refratário à modernização, no interior, quase sempre conviveu com concepção oposta, que acentuava a autenticidade do sertão em contraste com o parasitismo e a superficialidade litorâneos. [...] A presença do tema pode ser associada [...] à forma como os intelectuais percebem os caminhos da modernidade na sociedade brasileira, particularmente no que se refere às distâncias sociais e culturais”1.

Mais do que isso, essa relação atraso/modernidade, a partir do dualismo sertãolitoral, estava orientada para analisar a viabilidade da construção de uma civilização brasileiraPage 428 integrada2 Tal se apresenta como um dos eixos centrais de representação do processo de nation-building, e o homem do interior foi, no centro dessas representações, uma das categorias mais importantes abordadas,3 analisadas e interpretadas pelo pensamento social, presentes nos textos dos intelectuais de 1850 até, pelo menos, 19644. Em torno destas populações, compreendidas a partir do preestabelecimento de uma determinada hierarquia de raças, de sua inserção em um espaço geo-simbólico identificado como sertão, articularam-se portanto diversos valores e significados, em tudo conformadores de uma história mítica de uma comunidade imaginada chamada Brasil.

Em resumo, a partir de meados do século XIX4, as possibilidades de construção de uma civilização brasileira foram entendidas pelo pensamento social brasileiro, cada vez mais, como estando ligadas ou dependentes da organização de um Estado capaz de integrar política, econômica, territorial e socialmente (vale dizer, racialmente) o espaço nacional. Neste sentido, como o povo brasileiro (recorrentemente entendido pelo viés ou pela ótica racial) foiPage 429 equacionado nos discursos ou intervenções de variados intelectuais que estabeleceram o sertão como o espaço geográfico-social mais autêntico para a definição da nacionalidade? Isto é, como especificamente as populações não-brancas5, elementos constitutivos fundamentais presentes nos espaços interiores do país, foram pensadas pela intelectualidade inventora da nação brasileira? Quais as contribuições possíveis imaginadas para estas no processo de construção ou de evolução de uma nação e de uma civilização brasileira?

Na maioria dos discursos do pensamento social brasileiro sobre os sertões e a importância do contingente populacional não-branco na sua formação, sobretudo no discurso histórico, são constantes duas atitudes intelectuais básicas: a primeira insiste na insignificância numérica destas populações não-brancas (principalmente do negro) e na sua precária influência para a composição racial que formou o que se considera como o típico homem sertanejo; a segunda enfatiza a significativa participação do sangue destas populações (principalmente o indígena, nas suas misturas com o branco) na base formativa do elemento humano considerado o mais legítimo representante destas regiões do país.

Tanto num caso como no outro, a determinação racial é considerada o elemento que introduz este enorme contingente populacional no cenário dos acontecimentos passados mais importantes para a formação histórica do sertão, e a partir deste, para a formação identitária do país (os elementos ou aspectos definidores do caráter ou do ethos nacional e alguns dos seus valores mais fundamentais). Nas duas posições, e nas várias escalas e gradações intermediárias entre elas, a porta de entrada para a história desta parcela étnica do povo brasileiro é sempre a biológica.

Estes discursos, ao trazerem essas parcelas para a história via determinante biológica, subordinam as ações ou participações delas a uma planta básica pré-dada de atuação que, no seu limite superior, jamais ultrapassa a linha que demarca a natureza da cultura. Neste sentido, a participação dessas populações nos acontecimentos fundamentais que, a partir do sertão, fundaram a nação e definiram sua trajetória rumo à construção de umaPage 430 civilização brasileira, quando não é vista como obstáculo a esta caminhada, é considerada, como fator de atraso e de retenção desta marcha. Quando consideradas positivas, suas ações são descritas como meras participações coadjuvantes, em tudo figurativas, num texto em que o grande herói é sempre o homem branco. Vistas desde o palco da história, as populações não-brancas são sempre figurantes. Em geral são apresentadas apenas como observadoras. Observadoras privilegiadas, é verdade, posto que sempre na primeira ou na segunda fila (pois seria impossível esconder sua presença), mas sempre observadoras. Desçamos então a história, aqui, do palco para a platéia.

Ana Flávia Moreira dos Santos, num inteligente trabalho sobre o elemento indígena no sertão norte-mineiro, pondera que é possível identificar, nos textos, uma associação quase natural entre o índio e o espaço sertanejo, isto é: se o elemento indígena se torna de fato, nas obras fundadoras do pensamento social sobre o sertão, um signo essencialmente caracterizador de tal campo discursivo, por outro lado, quase sempre ocupa também, neste universo, uma posição marginal. Nas palavras da autora: se “entretanto, tal associação pode ser freqüentemente detectada, parece, à primeira vista, estar marcada por uma contradição. Por um lado, é o elemento indígena [ou o não-branco. Acréscimo nosso] uma das categorias constitutivas do campo simbólico ‘acionado’ pelo termo sertão. Por outro, sempre (ou quase sempre) ocupa, neste universo um lugar marginal; dir-se-ia que, embora constitutiva, não chegue a ser elementar, como, por exemplo, o seria o gado”6 Em síntese, o índio é um dado natural do sertão, porém sempre aparece como um elemento marginal no seu interior.

No caso específico do negro, ao contrário de toda a evidência e documentação histórica, é-lhe negada freqüentemente, nestes discursos, qualquer importância ou contribuição, mesmo marginal, quer na formação da composição étnica sertaneja, quer na participação histórica ou mesmo na formação da cultura do sertão. Quando muito, reconhecelhe uma presença diminuta no sertão, negando-lhe, todavia, qualquer influência histórica civilizacional real. Numa palavra, o negro no sertão é uma realidade invisível.7 Invisível sim, porém realidade, pois, apesar de considerá-lo um agente ou elemento quase nulo, o negro permanece presente nos textos, assim como as considerações sobre seu papel e atuação.

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Como então refletir sobre o deslocamento marginal, ou mesmo a invisibilidade dessas populações a partir de sua relação com uma região (o sertão) definidora ou constituidora de um campo simbólico articulador de uma das identidades mais valorizadas por grande parcela do pensamento social brasileiro? Como trabalhar, portanto, com essa “aparente contradição”?

A exploração dessa contradição será, em nosso trabalho, uma preocupação fundamental. Exploraremos as categorias fundamentais e as matrizes elementares desses discursos para nelas encontrar os significados que iluminam esta aparente contradição. Vale dizer, exploraremos, nos assuntos condizentes com os objetivos do trabalho, as bases e os pressupostos raciais em que se assenta e se estrutura o pensamento social brasileiro, em relação a uma região simbolicamente definida e historicamente caracterizada como “Sertão”. O objetivo aqui será, antes de tudo, perceber e acompanhar, nas obras fundadoras do pensamento social brasileiro que têm o sertão como espaço geográfico-simbólico privilegiado para a definição da nacionalidade,8 o encadeamento dos valores e significados que incluem (e como incluem?) ou excluem elementos definidores fundamentais (como raça ou povo, no caso o negro ou os não-brancos) da “legítima história da nação” ou da nacionalidade.

A importância dessa reflexão se encontra, acredito, na possibilidade de uma reavaliação dos papéis, da contribuição e da experiência histórica do negro no sertão, em relação ao conjunto da história e da historiografia do negro no Brasil.

Para enfrentarmos tais objetivos, fazem-se necessárias algumas considerações metodológicas. Em primeiro lugar, entendemos estes discursos do pensamento social brasileiro como mitos de fundação da nação e da nacionalidade, na medida em que se perguntam sobre ou respondem a questões como a origem, a evolução e os destinos da naçãoPage 432 brasileira9. Em segundo lugar, propomos a análise do pensamento social exclusivamente centrada em sua versão culta, posto que esta tem como objetivo precípuo totalizar a explicação da nacionalidade, tornando-a uma estrutura permanente, fonte de entendimento do país e buscando no passado elementos para análise do presente e para a projeção do futuro da nação. Tal esquema de eficácia permanente, como diz Lévi-Strauss, permite interpretar a estrutura social brasileira de qualquer tempo (seja passado, presente ou futuro), a partir dos mesmos eventos fundantes. Neste exato sentido, desdobra sobre si uma narrativa que é essencialmente mítica.

Decorre disso que, se nos propomos a analisar a literatura de ficção e imaginação da nacionalidade brasileira desse ponto de partida, é necessário, portanto, aproximarmo-nos dos autores do pensamento...

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