A regulação e a constituição brasileira de 1988

AutorGiovani Clark
Páginas218-232

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I - Introdução

Nas três últimas décadas do século XX e no início do século XXI diversos estudiosos e políticos pregaram a saída dos Estados do domínio econômico e social como solução para debelar as crises cíclicas das economias de mercado, minimizar o flagelo social contemporâneo e liquidar os déficits orçamentários dos Estados sociais consolidados ou não. Nesse sentido, políticas econômicas foram postas em prática, iniciando-se nos Estados Unidos e na Inglaterra, mas disseminadas posteriormente por outros Estados nacionais.

Em ambiente mundial propício e conforme os anseios do capital, a badalada "retração" estatal da vida econômica ganhou força no mundo e obteve algumas denominações, até "consolidar-se" como regulação, ou neoliberalismo de regulação. Logicamente, no intuito de diferenciar do neoliberalismo anterior, chamado de regulamentação, usa-se aquela nomenclatura (regulação), inclusive porque a forma de atuação dos poderes públicos é distinta.

Porém, a realidade desses nossos tempos nós apresenta outra, ou seja, a presença do Estado na vida econômica (mão visível) continua intensa em inúmeras esferas, seja através de incentivos à agricultura, na polí-tica estatal de crédito e de câmbio ou nos reajustes de tarifas pelas agências de regulação. Também existem atitudes estatais, inclusive cobradas pelos ardorosos defensores da regulação, em casos de abusos do poder econômico, promovido pelos cartéis; ou na execução de obras de infra-es-trutura em setores vitais, a fim de alcançar o crescimento modernizante ou o desenvolvimento sustentável.

"Não restam dúvidas, porém, que, na ordem de valores actualmente aceite no espaço cultural ocidental europeu, a intervenção do Estado na sociedade se afirma como um dado palpável e adquirido. Efectivamente, o retorno a uma absoluta não intervenção do Estado no social e, especificamente, no econômico (regresso a Adam Smith), inspirado nas teses neoliberais dos economistas de Chicago, como o conhecido Milton Freidman, não corresponde em parte alguma a uma realidade. (...) É que a opção que hoje se apresenta aos cidadãos (eleitores) não aparece em termos dilemá-ticos absolutos (intervenção ou absoluta não intervenção), mas em termos gradua-lísticos (maior ou menor intervenção)" (Vaz, 1998, p. 63).

A realidade fática do século XXI é bem distinta da propaganda pelos teóricos da regulação, inclusive quanto aos seus

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efeitos, perversos nos Estados em desenvolvimento e nas populações pobres, visto que os poderes públicos não saíram de cena da vida socioeconômica, aliás, pelo contrário, apenas apresentaram uma técnica diferenciada de ação.

Encarnando a face contemporânea do neoliberalismo e seguindo a batuta do capital, sobretudo do financeiro, realizamos, no Brasil, significativas mudanças em nossa Carta Política de 1988, como também fizeram os portugueses na Constituição de 1976, bem como outras Nações, implantando comandos constitucionais viabiliza-dores da regulação.

Obviamente a nossa legislação infra-constitucional foi modificada freneticamente, a fim de moldar-se a nova forma de atua-ção estatal, determinada pela Lei n. 8.987, de 13.2.1995 (Dispõe sobre a Concessão e Permissão de Serviços Públicos), Lei n. 9.472, de 16.7.1997 (Cria a Agência Nacional de Telecomunicação - Anatel), Lei Complementar n. 101, de 4.5.2000 (Fixa Normas de Finanças Públicas voltadas para a Responsabilidade na Gestão Fiscal), Lei n. 11.079, de 30.12.2004 (Normas Gerais de Parceria Pública-Privada), etc.

II-A regulação enquanto técnica de intervenção

A mitológica retirada estatal da vida econômica e social, ou seja, o retorno do "paraíso perdido" do laissezfaire de Adam Smith na contemporaneidade, teve como principal base teórica as idéias da Escola americana de Chicago, liderada por Milton Friedman. Aquelas fincaram os alicerces do neoliberalismo de regulação.

Sobre as premissas de uma mínima ação do Estado na realidade socioeconômi-co foi construído o Consenso de Washington em 1990, norteador das políticas econômicas voltadas a tais fins, denominadas reguladoras, que se baseava na suposta eficiência da iniciativa privada no mercado e na pseudo incompetência gerencial do Es-tado social na economia. A bandeira da ilusão era menos Estado e mais mercado.

Para tanto, deveria criar-se um Estado mínimo com restritas funções no âmbito da prestação dos serviços públicos e das atividades econômicas, deixando as forças do mercado regê-lo, digo, os poderes econômicos privados impondo as normas para o processo produtivo e social. Em síntese, substituir, ao máximo, o Estado pelo setor privado. Escreve Alan Greenspan sobre o início da regulação nos Estados Unidos, no governo do Presidente Gerald Ford, em meados dos anos 70 do século passado:

"(...) A escolha de Chicago não foi por acaso: o raciocínio econômico por trás da desregulamentação foi desenvolvido basicamente por Milton Friedman e por outros transviados da chamada Escola de Chicago. Esses economistas elaboram volumoso trabalho sobre a teoria de que os mercados e preços, não os planejadores centrais, eram os melhores distribuidores dos recursos da sociedade. As premissas Keynesianas que haviam dominado Washington desde o governo Kennedy sustentavam a possibilidade da gestão ativa da economia; os economistas de Chicago argumentavam que o governo deve intervir menos, não mais, pois a regulamentação científica não passava de mito. Agora, depois de anos de estagflação e do fracasso recente dos controles de preços e salários, políticos de ambos os lados estavam propensos a concordar que a microgestão por parte do governo havia ido longe demais. Chegara a hora de tentar algo novo.

"Com efeito, desenvolveu-se em Washington notável consenso sobre política econômica - uma convergência de atitudes entre a esquerda liberal e a direita conservadora. De repente, todos procuravam conter a inflação, reduzir os gastos deficitários, atenuar a regulamentação e estimular os investimentos. A campanha de desregulamentação de Ford de inicio mirou as rodovias, o frete em caminhões e a aviação civil. E, não obstante a maciça oposição por

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parte de empresas e sindicatos, em poucos anos o Congresso desregulamentou os três setores" (Greenspan, 2007, p. 68).

A implantação do neoliberalismo de regulação pelo mundo contou com alterações dos textos constitucionais, privatiza-ções e desestatizações das empresas estatais, redução de direitos sociais, facilita-ções para a movimentação de capitais, criação de agências reguladoras, reestrutu-ração do comércio internacional, etc.

Na realidade a chamada saída do Estado do domínio econômico e social como se propagou na mídia, jamais aconteceu, e não era o objetivo da regulação. Essa nada mais é do que uma técnica de intervenção estatal na vida socioeconômica com as mutações ditadas pelo capitalismo contemporâneo.

"Estas transformações têm vindo a atravessar todo o sistema mundial, ainda que com intensidade desigual consoante a posição dos países no sistema mundial. As implicações destas transformações para as políticas económicas nacionais podem ser resumidas nas seguintes orientações ou exigências: as economias nacionais devem abrir-se ao mercado mundial e os preços locais devem tendencialmente adequar-se aos preços internacionais; deve ser dada prioridade à economia de exportação; as políticas monetárias e fiscais devem ser orientadas para a redução da inflação e da divida pública e para a vigilância sobre a balança de pagamentos; os direitos de propriedade privada devem ser claros e invioláveis; o sector empresarial do Estado deve ser privatizado; a tomada de decisão privada, apoiada por preços estáveis, deve ditar os padrões nacionais de especialização, a mobilidade dos recursos, dos investimentos e dos lucros; a regulação estatal da economia deve ser mínima; deve reduzir-se o peso das políticas sociais no orçamento do Estado, reduzindo o montante das transferências sociais, eliminando a sua universalidade, e transformando-as em meras medidas compensatórias em relação aos estra-tos sociais inequivocamente vulnerabiliza-dos pela actuação do mercado" (Santos, 2002, p. 35).

Os Estados nacionais foram criados para possibilitar o desenvolvimento do mercado e o fortalecimento do capital. Aqueles sempre agiram na vida socioeconômica, seja no mercantilismo do século XVIII, no neoliberalismo de regulamentação do século XX, e até mesmo no liberalismo do século XIX (Aguillar, 2006).

Dentro da própria ideologia liberal, outrossim, partindo do pressuposto da escassez dos bens e da configuração da propriedade como justa recompensa aos laboriosos, o Estado se colocava como o principal garante da situação dos poucos beneficiados contra a inveja dos muitos que nada tinham, para utilizar a expressão de Adam Smith (Camargo, 2007, p. 33).

Diverso do senso comum, no liberalismo os Estados agiam na vida econômica, seja limitando a importação de certos produtos em nome da proteção da indústria nacional, seja fragilizando as corporações de ofício em prol do mercado trabalho. Por sinal, um dos pais do liberalismo, Adam Smith, em sua obra A Riqueza das Nações, admite a ação estatal no curso natural da economia (oferta e procura), sobretudo para alimentar os trabalhadores e fornecer carvão para as máquinas (Coelho, 2007). Outrossim, em caso de desinteresse, omissão e incapacidade do setor privado, os liberais admitiam a intervenção estatal na economia.

Reforçando o pensamento anterior, bem lembra o autor lusitano Boaventura Santos da criação das instituições públicas no Estado de Direito e de sua legislação econômica e social a fim de implementar o liberalismo. E arremata o citado jurista português: "Isto significa que as políticas do laissez faire foram...

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