Breve análise da teoria republicana contemporânea aplicada à argumentaçóo parlamentar

AutorTarcísio Menezes Oliveira
CargoMestre em Direito Público pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Professor de Direito Constitucional. Advogado.
Páginas1-21

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1. Colocação do tema

A política, vista como atividade necessária para que o Estado possa legitimamente exercer seus deveres, através de decisões compartilhadas pelos detentores do poder, pode ser abordada de forma cética, à maneira de um Oakeshott.1 Significa dizer: a política, nessa concepção, é pura e simplesmente um território de luta pelo poder, não sendo possível, por tal razão, extrair de sua praxis um fundamento de racionalidade, ou, ainda, se se deseja colocar de outro modo, a política detém uma racionalidade própria - não ter qualquer racionalidade.

Numa perspectiva diversa, ainda que carregada de um certo ceticismo, a política pode ser percebida como uma prática que se implementa a partir dos interesses colocados em jogo Page 2 pelos atores capazes de agregar um número de adesões suficiente para que as suas vontades particulares sejam atendidas, através de uma dinâmica ditada pela negociação.2 Os grupos, detentores de maior peso nos embates travados, terão satisfeitos os seus interesses trazidos à disputa em detrimento daqueles que não possuem tanta expressão. É o "pluralismo de grupos de interesse". Deve-se salientar, de logo, que a expressão "pluralismo" (pluralism) não quer significar aqui concepções diversas de bem comum ou modos diferentes de vida boa, mas, antes, o termo se refere à teoria política de interesses individuais ou de grupo que buscam maximizar suas próprias preferências.3

A visão "pluralista" considera a política como um território de luta entre grupos de interesse que disputam recursos sociais escassos.4 As vontades particulares trazem as suas preferências para o âmbito da política, moldando as leis de acordo com a dinâmica da oferta e da procura. Tal concepção parte da idéia de preexistência (e proeminência) de direitos. Logo, todas as preferências trazidas para a política são preexistentes e não passíveis, portanto, de um debate com vistas a seu questionamento e aperfeiçoamento. As preferências são variáveis exógenas (e estranhas) ao território do debate público, sendo o objetivo do sistema político proteger esses variados inputs, zelando por uma exata correspondência da legislação às vontades particulares. Trata-se da política como um mecanismo de agregação de preferências, voltado ao atendimento de um equilíbrio ótimo - é a política como mercado.

A partir de uma tal concepção teórica, que busca descrever o reino da política como um exercício de vontade e poder5, algumas questões surgem, inevitáveis (incômodas, mesmo): É possível apreender racionalmente a política? É possível domesticar a política? Torná-la menos crua e irracional? Menos suscetível a interesses privados preexistentes, lobbies, bancadas particularistas e à influência do poder econômico?

Este breve escrito abordará aqueles aspectos da teoria contemporânea do republicanismo capazes de fornecer caminhos para que a prática política seja mais controlável pela população como um todo, e não apenas por uma maioria ou por um grupo social que Page 3 impõe seus interesses particulares através de seu peso político, o que a tornaria, portanto, mais racional. A interferência legislativa, quando induzida tão-somente por interesses e idéias pertencentes a grupos ou facções, será arbitrária por fazer o cidadão depender da vontade privada da autoridade legislativa para que seu interesse seja contemplado.

Importante avaliar se os anseios e interesses dos afetados pelas decisões públicas, oriundas do Poder Legislativo - que determina o recorte de nosso objeto de estudo -, estão sendo levados em consideração. A categoria teórica do espaço público será aqui brevemente utilizada (e avaliada em suas possibilidades e fragilidades) como um artifício para que o exercício da política submeta-se à demanda democrática, através de uma influência qualificada sobre as instituições de governo.

Antes da incursão na teoria contemporânea do republicanismo, utilizaremos a contribuição teórica de Manuel Atienza que decompôs analiticamente a estrutura argumentativa da atividade legislativa, apontando as suas particularidades e limitações. Identificaremos, a partir da metodologia empregada por Atienza, quais os espaços ou momentos argumentativos mais vulneráveis às influências estranhas à racionalidade jurídica.

2. Níveis de racionalidade argumentativa no processo legislativo

O Direito possui um caráter multiforme, o que lhe confere uma diversidade de funções, as quais se realizam, fundamentalmente, em dois momentos distintos: produção de normas jurídicas e aplicação das normas para a resolução de casos.6 Desses dois momentos, podemos extrair duas perspectivas que projetam imagens diferentes: a do legislador - arquiteto que desenha planos para conformar a realidade social; e a do juiz - executor do projeto que tem de resolver, segundo as instruções que lhe foram fornecidas, os diversos problemas que surgem no decorrer da empreitada.7

Interessa-nos aqui, genericamente, a perspectiva do legislador, enquanto projetista de molduras normativas que incidirão sobre os destinatários das leis, e, mais especificamente, o seu afazer legislativo, sob o ponto de vista racional e argumentativo. Em outros termos, tentaremos apreender, a partir da metodologia adotada por Atienza, os tipos de argumentos empregados pelos legisladores nas diversas fases do processo legislativo, componentes do Page 4 processo de discussão parlamentar. O autor lança, assim, uma proposta8, de início singela, que identifica as partes que formam o processo argumentativo de criação legislativa da seguinte maneira: editores - autores das normas; destinatários - aqueles a quem são dirigidas as normas; sistema jurídico - conjunto que tomará parte a nova lei; fins - objetivos buscados pela lei; valores - idéias que justificam aqueles fins.

Da relação entre aqueles elementos que compõem o processo argumentativo no âmbito da produção da lei, Atienza propõe cinco níveis ou idéias de racionalidade: i) lingüística, ii) jurídico-formal, iii) pragmática, iv) teleológica, e v) ética. Esses níveis de racionalidade, apressemo-nos a dizer, apresentam uma estrutura hierarquizada, na qual cada nível é hierarquicamente superior ao anterior, formando um todo voltado a promover mais eficazmente um fim justificado eticamente.9

A racionalidade lingüística traz a idéia de legislação como um processo de comunicação, e a lei como uma série de enunciados que devem ser claros.10 Clareza, aqui, significa que a lei não pode conter termos ambíguos ou conceitos vagos em função da previsibilidade que deve cercar a idéia de Direito.11 Esse nível de racionalidade, ao propiciar a inteligibilidade dos enunciados normativos, promove a sistematicidade do ordenamento jurídico.

A racionalidade jurídico-formal é um nível que exige critérios de forma e conteúdo ditados pelo próprio ordenamento jurídico, em busca de uma integração harmônica da lei com o restante do sistema. É a sistematicidade nos seus pontos de vista interno (lei com seu âmbito de aplicação concreto) e externo (lei com as outras normas componentes do ordenamento, principalmente as normas constitucionais).12 Sistematicidade quer dizer ausência de lacunas (vazios legislativos) e de antinomias (incompatibilidade entre normas), fazendo com que o ordenamento possua mais coerência e previsibilidade. A sistematicidade produz como Page 5 resultado um ordenamento jurídico mais seguro, o que promoverá a eficácia jurídica da lei recém editada.

Às leis não basta a validade formal, i.e., integração harmônica com o restante do sistema, porquanto elas devem ser, também, eficazes. É dizer: a conduta dos destinatários deve atender ao que está nelas prescrito. É a racionalidade pragmática que se detém numa preocupação sobre os efeitos da nova ordenação legal. Quanto mais eficaz é a lei, mais se cumprirão os objetivos ou fins sociais por ela perseguidos.

No nível da racionalidade teleológica as leis são vistas como instrumentos para a consecução de determinados objetivos sociais.13 O principal móvel sustentado pelos parlamentares quando chamados a argumentar no âmbito do processo legislativo é a melhor consecução de determinado objetivo social, seja ele qual for. O que conduzirá a argumentação do legislador será o que ele qualifica a melhor forma de atingir o fim social visado pela lei posta em discussão. O que interessa ao legislador é o atingimento daquele fim social considerado valioso socialmente.

O bloco formado pelos quatro primeiros níveis de racionalidade - lingüística, jurídico- formal, pragmática e teleológica - constitui a chamada racionalidade instrumental, a qual se volta a sustentar o último nível de racionalidade: a racionalidade ética. Esta cuida de perquirir se os conteúdos normativos e os fins de uma lei podem se justificar eticamente. Os argumentos utilizados pelos legisladores são éticos, na medida em que buscam um determinado conteúdo normativo por considerá-lo mais valioso socialmente.

Como antecipado anteriormente, a racionalidade legislativa possui um caráter estruturado, de modo que os conflitos eventualmente existentes entre os níveis de racionalidade serão resolvidos pela precedência dos níveis superiores. Portanto, à medida que as normas sejam editadas com mais clareza e precisão, sejam mais sistemáticas e eficazes, conseqüentemente elas alcançarão os objetivos sociais previamente traçados. Todavia, essa concepção racionalmente estruturada não oferece critérios para hierarquizar os fins legais14, i.e., não dissolve as incertezas quanto às prioridades de um fim legal sobre outro. Em outras palavras, não há qualquer critério racional na escolha de um objetivo social a ser tutelado por lei, o que pode gerar algumas perplexidades. Uma dessas perplexidades é a possibilidade da lei, embora tenha sido...

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