O breve século XX

AutorMônica Sette Lopes
Páginas135-153
mercado se traduzia em aprisionamento. E como o mercado
se abriu para a arte, como a natureza se tornou um fundo de
exploração ilimitada, como a ciência e a técnica invadiram
todo o espaço, então, por isto, também a arte se libertou. O
mercado apareceu como um libertador que pôs abaixo to-
dos os tabus. A nova soberania do artista expôs-se: uma so-
berania misticada na qual a única liberdade era misticar
esta misticação, travar esta mecânica do mercado, tomar a
própria forma da impostura339.
Esta misticação, que coordena a noção de arte, pode ser
símbolo de outras vertentes da cultura em suas várias passagens pelo
século XX. As rupturas apresentam-se também no campo aberto em
que o direito apanha sua signicação e em que a expressão musical
absorve seus tempos340.
A exposição da vida na praça manietada do mercado criou
a ilusão de que tudo pode ser de todos. A arte é de todos. O conheci-
mento é de todos. Implanta-se uma versão de amplo acesso, de plena
disponibilização que para o direito pertence à essencialidade de um
arcabouço que se presume conhecido porque genericamente exigido
de todos. Na realidade, os transeuntes que visitam este mercado nem
sempre sabem dos produtos que lhes são expostos ou empurrados.
As vitrines nem sempre são engendradas para permitir uma aber-
tura direta a todos as mercadorias. O estoque guarda uma miscelâ-
nea de contingências de difícil detecção pelo passante desarmado do
domínio de todos os códigos. No entanto, a disseminada suposição
de que se conhece, de que se tem acesso aos fatos dá uma sensação
de dominar o tempo e de que, por isto, é possível modicá-lo, cons-
trangê-lo à obediência, reconstruir, com ele, novos e outros espaços.
Como diz Marcelo Castilho d e Avellar, talvez tudo se possa
resumir nos desenganos:
“No século XX, as vanguardas históricas não estiveram “à
frente de seu tempo” como costumamos ouvir: elas busca-
ram rupturas como resposta a uma sociedade que ansiava
por rupturas. É bem sintomático que as revoluções na arte,
339 EDELMAN, 2001, p. 163-4. Cf., ainda, GADAMER, Hans-Georg.
Transformaciones en el concepto del arte. In: GADAMER, 2002, p. 181-215.
340 A este respeito é muito interessante a elaboração de Luhmann sobre a comunicação
de massa como um sistema social, cf. LUHMANN, 2000.
como a música dodecafônica, tenham sido contemporâneas
aos turbulentos anos entre a Revolução Russa e o colapso
do nazismo: da mesma maneira que o homem ocidental
sentia-se desenganado com as liberal-democracias em que
vivia, desejava algo menos previsível do que música tonal,
cadências perfeitas e combinações de timbres que haviam
sido dominantes durante séculos”341.
Tampouco aqui se xa qualquer unanimidade, como não
se estabeleceu, no século XX, no que concerne à expressão artística.
É Hobsbaw m que fala sobre as artes de vanguarda:
“Só havia na verdade das artes de vanguarda que todos os
porta-vozes da novidade artística, em todos os países, po-
diam com certeza admirar, e as duas vinham mais do Novo
do que do Velho Mundo: o cinema e o jazz. [...] O jazz da
“Era do Jazz”, ou seja, uma espécie de combinação de negros
americanos, dance music, rítmica sincopada e instrumenta-
ção não convencional pelos padrões tradicionais, quase cer-
tamente despertou a aprovação universal entre a vanguar-
da, menos por seus próprios méritos que como mais um
símbolo de modernidade, da era da máquina, um rompi-
mento com o passado –, em suma, de revolução cultural”342.
Ressalta-se, então, o caráter substancial que se atribui ao
novo, como um modelo a ser seguido. O mercado exige o novo como
a melhor expressão do otimismo do tempo.
Do ponto de vista dos métodos, importava o que rompesse
com o passado e representasse uma diferenciação entre as possibili-
dades magistrais de conhecer.
Com alguma liberdade e imaginatividade, podem ser com-
parados dois movimentos bastante expressivos da música e do direi-
to de princípios do século XX, que também tinham como objetivo
extrapolar o passado e se transformar numa expressão acabada para
os novos tempos.
De um lado, está Schoenberg (1874-1951) e de outro Kel-
sen (1881-1973). Em comum entre eles, há o fato de serem judeus
austro-húngaros: o primeiro vienense, o segundo nascido em Praga.
341 AVELLAR, 2003, p. 8.
342 HOBSBAWM, 2000-b, p. 182-3.

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