Breves acenos para uma analise estruturalista do contrato

AutorCalixto Salomão Filho
Páginas7-30

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1. Introdução: da sociedade individualista à sociedade desorganizada

Um dos traços mais marcantes da sociedade moderna é a substituição das relações jurídicas pelas relações hierárquicas (e de poder) como instrumento de organização das relações sociais.

Segundo a ideia aqui defendida, as causas dessa transformação não se encontram somente no campo económico e nas espécies de relações de poder ali gestadas. A postura do direito com respeito às relações sociais também influenciou e muito essa situação. Entre outros problemas, a postura intimista do direito privado, crente de que a regulamentação das relações entre particulares só influenciaria os particulares envolvidos naquela específica situação jurídica, e crente de que essas relações deve-riam ser resolvidas a partir da consideração exclusiva de seus interesses individuais, muito contribuiu para isso.

Esse traço é particularmente evidente no campo da disciplina civil e comercial dos contratos.

2. O intimismo do direito privado

Há um aspecto muito interessante e muito pouco cuidado da evolução do direito privado desde o Código Civil francês de 1804, marco liberal-individualista do século XIX, até os dias de hoje. Trata-se da perda de unidade do direito privado.

Como destaca F. Wieacker, o positivismo dogmático do século XIX havia se preocupado com a construção de uma teoria geral do direito privado com base no racionalismo jurídico, mas, sobretudo, com a expansão para a sociedade (e para outros

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campos do direito) do modelo jurídico da sociedade burguesa. Assim, a teoria do direito privado, em especial a pandectística, serviu de modelo no século XIX para a elaboração da teoria geral do direito do Estado e do direito penal.1

No século XX desaparece essa prevalência do direito privado. Um primeiro e necessário movimento é a separação dos campos sensíveis do direito social do direito privado.2 Assim, a autonomia do direito do trabalho e a ideia crescente de regulação dos mercados por meio do Estado, iniciada com a crise de 1929, é que leva à sistematização do direito económico. Esse movimento, óbvio em função das necessidades de tutela específica - e publicística -de relações de interesse comum tem um efeito secundário relevante e poderosamente influente sobre a sorte do direito privado no século XX. Trata-se do intimismo crescente desse ramo do direito. Liberado das relações mais claramente de interesse comum, reforça-se a crença de que o direito privado pode ser visto como um ramo auto-integrado voltado a regulamentar relações entre particulares e no interesse específico destes.

Mais recentemente, essa crença vem a ser reforçada no campo económico, em especial pela análise económica do direito. Segundo essa teoria, cujos fundamentos ultraliberais são bem conhecidos, tentativas de incluir preocupações redistributi-vistas no direito privado levam necessariamente a acréscimos dos custos económicos das transações para as partes e, portanto, desestímulo a elas próprias.3 Reforça-se a crença de que o intimismo do direito privado não é apenas um produto da história mas sim uma necessidade lógica para o próprio funcionamento do direito privado.

Como se verá a seguir, ambas as crenças carecem de sustentação teórica e fática. Mais ainda, essa crença é um poderoso fa-tor de desorganização das relações sociais, pois faz com que uma enorme série de relações (as privadas) sejam consideradas neutras em relação à disciplina das relações sociais. Sua influência sobre estas passa então a ser determinada não por regras jurídicas (e seus imanentes valores), mas sim por relações hierárquicas, em especial, relações de poder.

3. A hierarquia substitui o direito

Um dos movimentos mais importantes do século XX em matéria de organização (ou desorganização) das relações sociais decorre da substituição operada na sociedade moderna de relações jurídicas por relações de hierarquia.

Essa substituição se dá, de um lado, em decorrência do fortalecimento do poder económico e privado na sociedade capitalista e, de outro, em função do encolhimento do direito a uma função meramente passiva e contemplativa. No campo do direito privado, esse encolhimento revela-se por meio de tendência intimista discutida acima (v. item 2). Há, então, a substituição do direito pela hierarquia. A razão é bastante simples e suas consequências têm sido muito pouco investigadas pela teoria jurídica.

Trata-se do fato, hoje bem reconhecido pela teoria económica, de que a raciona-lidade de atuação dos agentes económicos os leva naturalmente ao abuso. Esse fato,

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reconhecido, repita-se, pela teoria microe-conômica, justificou a introdução no direito antitruste de regras estruturais para conter o poder no mercado. A única e exclusiva justificativa da existência dessas regras é que em sua ausência as tradicionais normas de conduta não são capazes de disciplinar a atuação das empresas com poder económico. Isso porque a naturalidade do abuso modifica o padrão de comportamento do agente que passa a ter como comportamento normal o abuso. Esse abuso deixa de ser exceção, transformando-se em regra. Nessa hipótese, a correção desse padrão por normas de conduta é bastante ineficaz pelo simples fato de que essas normas estão voltadas à sanção de atos isolados, sendo incapazes de disciplinar (e sancionar) uma atividade continuada ou um padrão de comportamento.

Essa constatação é capaz de produzir efeitos em todos os ramos do direito. É difícil imaginar que o sistema jurídico, baseado primordialmente em normas de conduta, possa bem funcionar dominado por agentes económicos cuja racionalidade é o abuso. Esse é o ponto de interesse geral para o direito. Difundido em determinada sociedade o poder económico privado, o padrão de comportamento passa a ser o abuso de direitos. Como endireito, baseado em norma de conduta, não é bem capaz de disciplinar essas relações,4 a sociedade passa a ser organizada a partir das relações de dominação, em uma versão moderna da sociedade escravista. A hierarquia substitui o direito.

Se o direito deve, através da inclusão e reequilíbrio das relações de poder, passar a ter essa função procedimental económica, em que se abre mão da predefinição de resultados económicos e se propõe a existência de um processo de interação económica equânime, equilibrado e não domi-nado por relações de poder, muitas das questões formuladas na introdução a esse capítulo encontram resposta. Exatamente porque não há e não é possível buscar um resultado único nas relações interindivi-duais e Íntersociais, é possível imaginar que a aplicação singular das normas ao caso concreto possa se fazer sem criar problemas de coerência. Aquela preocupação expressada no início com a formulação de políticas públicas em decisões individuais de juizes ou intérpretes perde muito de seu sentido. Se essas decisões individuais forem endereçadas à conformação desse devido processo económico, participativo e equilibrado, o resultado social e económico necessariamente será aprimorado.

4. O retorno do direito

Os objetivos acima expostos e o endereçamento das normas a eles ligados contrastam em absoluto com a marcha do direito privado e, em especial, com a perda de sua unidade no século XX. Essa perda de unidade decorre basicamente da incapacidade da sociedade liberal em lidar com os desafios sociais do século XX. Ora, se a sociedade liberal, baseada nos princípios individual-libertários do século XIX não podia subsistir, tampouco poderia fazê-lo a sua principal criação no campo jurídico: o direito privado unitário.5

Várias podem ser as interpretações da crise do capitalismo do início do século XX. Uma delas é sem dúvida excesso de poder (económico) causado por seu funcionamento livre. Muitas das grandes crises sociais (e humanas) do século XX foram decorrência de concentração desmesurada e desregu-lamentada de poder (económico). A concentração do poder económico tem papel importante na queda da República de Wei-mar e ascensão do nazismo e na própria crise de 1929 no mercado de capitais nor-te-americano.

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Não é de espantar, portanto, que a perda de unidade do direito privado tenha tido como foco exatamente lidar com os reflexos desse poder desmesurado e o consequente desequilíbrio causado nas relações sociais.

Essa perda de unidade foi fruto, na verdade, de dois movimentos. De um lado, o aparecimento de disciplinas orientadas a criar direitos sociais reequilibradores de relações que, reguladas pelo direito privado, criavam evidentes desequilíbrios. É o caso típico do direito do trabalho e da necessidade de dar tutela especial aos trabalhadores nos contratos individuais (e cole-tivos) de trabalho. Mais recentemente, essa tendência revela-se também em outros ramos, como o direito do consumidor.

De outro lado, há também uma tentativa de disciplinar e fiscalizar as estruturas de poder através de regulamentos e instituições para criá-los, aplicá-los e fiscalizar seu cumprimento. Trata-se da construção, sobretudo a partir dos anos 1930, do aparato regulamentar de fiscalização, que hoje constitui boa parte do chamado direito económico.

Compreendidos dentro da lógica de um capitalismo cada vez mais dominado por estruturas de poder económico, esses dois sentidos da fragmentação ganham em coerência. Correspondem, na verdade, ao mesmo tipo de movimento que, no direito constitucional, buscou combater o poder político.

Ali a limitação do poder político se deu, historicamente, através dos direitos individuais, de um lado, e das...

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