Um dos budismos possíveis ? Uma interpretação laica de alguns de seus conceitos básicos

AutorJorge Vulibrun
CargoUniversidade Federal de Santa Catarina
Páginas381-397
Revista de Ciências Humanas, Florianópolis, Volume 44, Número 2, p. 381-397, Outubro de 2010
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* One of the possible Buddhisms – A secular interpretation of some of its basic concepts.
1 Endereço para correspondências: Rua Lacerda Coutinho, 148, Centro, Florianópolis/SC 88015-030
(jorgevul@uol.com.br)
Um dos budismos possíveis – Uma interpretação laica
de alguns de seus conceitos básicos *
Jorge Vulibrun1
Universidade Federal de Santa Catarina
Este trabalho faz uma apresen-
tação dos conceitos básicos do budis-
mo, desprovidos, dentro do possível, das
nuances próprias de cada cultura onde
ele se instalou. Para tanto, nas suas
interpretações são destacadas as raí-
zes sânscritas de cada um desses con-
ceitos, conduzindo a uma interpreta-
ção “laica” desse pensamento. São
destacadas também algumas oposi-
ções, tais como instante-momento, re-
nascimento-reencarnação, processo-
objeto, identidade-continuidade, bem
como “estar sendo” versus “ser”.
Palavras-chave: Budismo –
“Estar sendo” e “ser” – Momento pre-
sente – “Processos” e “objetos”
This paper is a presentation of
the basic concepts of Buddhism,
stripped, to the extent possible, of
the nuances of each culture where
it was installed. To do so, in their
interpretations are highlighted the
Sanskrit roots of each of these con-
cepts, leading to a “secular” inter-
pretation of that thought. Some
oppositions are also highlighted,
such as instant-moment, rebirth-
reincarnation, process-object, iden-
tity-continuity, and “being” versus
“to be”.
Keywords: Buddhism – “Being”
vs. “to be” – Present moment – “Pro-
cesses” vs. “objects”
Introdução
Buda perguntou: “Qual é a duração da vida?”
Um discípulo respondeu: “Um inspirar e um expirar”.
Buda completou: “Tens avançado no caminho da
compreensão”.
Para percorrer um caminho dentro de uma nova cidade é necessário,
ini cialm ente, um mapa para nos guiar e orientar. Só depois de ter percorrido
esse caminho inúmeras vezes poderemos prescindir desse mapa e dirigir nossa
atenção tanto aos prédios que o beiram quanto às árvores e flores que o adornam
e que formam o caminho verdadeiro, que não é aquele desenhado no mapa.
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Revista de Ciências
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Revista de Ciências Humanas, Florianópolis, Volume 44, Número 2, p. 381-397, Outubro de 2010
Apesar de o budismo pregar a diminuição do racional e da intelectualização e
sua substituição pela intuição, é inevitável começarmos com um mapa.
Como é tão comum no Oriente, o budismo iniciou-se como uma escola
filosófica e acabou se transformando numa religião (ou, mais propriamente, em
várias religiões: o Vajrayana tibetano, o Hinayana do Sudeste da Ásia ou o
Terra Pura japonês, são exemplos da diversidade que o budismo religioso ado-
tou). Também nisso, o Oriente se apresenta como oposto ao Ocidente, onde as
religiões tendem a se converter em filosofias. Os conceitos básicos budistas
sofreram, à medida que o budismo se espalhava pela Ásia, uma profunda ela-
boração desde que começaram a ser formulados, no século VI a.C. Acompa-
nhando as diferentes formas culturais onde o budismo se instalou, eles incorpo-
raram nuances mais ou menos religiosas, esotéricas ou filosóficas. Como esses
conceitos podem ser equiparados às placas de uma estrada, que alertam e
destacam diversos pontos dela, e necessário esclarecer que eles são utilizados
neste texto baseados, fundamentalmente, nas suas raízes sânscritas2, num in-
tento de apresentá-los de uma forma mais próxima ao seu uso inicial, ou seja,
desprovidos, ao máximo, de posteriores acréscimos culturais.
Eis aqui um mapa de um dos budismos possíveis, que, neste caso, é fun-
damentalmente laico.
A estrada do budismo
O ponto fundamental do budismo é que as dificuldades pelas quais passa-
mos em nossa vida são decorrentes de pontos de vista equivocados, sendo eles
resultantes, por sua vez, de mecanismos automáticos (e, portanto, não questio-
nados) do nosso processo cognitivo.
Na continuação, avaliaremos os principais pontos questionados pelo budismo.
Um mundo de processos ou o processo do mundo?
O budismo compartilha com as principais linhas do pensamento oriental a
visão de que o mundo é formado por uma miríade de processos3 interdependentes
(o que em chinês é chamado de wan wu, as dez mil coisas ou processos),
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2 Fontes principais das raízes sânscritas: WIKIPEDIA, consultadas em Outubro/2010.
3 Processo: “Ação continuada, realização contínua e prolongada de alguma atividade; seguimento, curso,
decurso. Sequencia contínua de fatos ou operações que apresentam certa unidade ou que se reproduzem
com certa regularidade; andamento, desenvolvimento, marcha”. Utilizada como alternativa a “coisa”,
que se restringe ao material e aos objetos, e a “fenômeno”, que se refere àquilo que nos aparece, mas que
fica demasiadamente vinculado à nossa percepção. Em chinês, “coisa”, inclui os objetos
materiais e imateriais, os animais e os humanos, por isso é mais bem traduzida por “processo”.

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