Em Busca de um Caminho de Dignidade para os Trabalhadores Rurais: uma Análise Per-meada pela Teoria Crítica dos Direitos Humanos

AutorGérson Marques/Ney Maranhao
Páginas15-45

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Introdução

A proposta deste trabalho consiste em analisar as condições do trabalho rural e, tomando como marco teórico a teoria crítica dos direitos humanos, apresentar propostas que levam ao empoderamento dos trabalhadores a partir de uma estruturação sindical legítima, sugerindo-se vias de ação estatal capazes de contribuir para o alargamento do sentido da dignidade humana dos trabalhadores rurais.

Considerando-se a capacidade de mudança do mundo por meio de ações voltadas para essa finalidade no âmbito interativo comunitário, este trabalho tem como objetivo discutir a questão da efetividade dos direitos sociais dos trabalhadores rurais, a partir do contexto de sua estruturação sindical, bem como o papel das instituições públicas — Ministério Público do Trabalho e Justiça do Trabalho, apresentando-se algumas linhas de interpretação possíveis da legislação nacional capazes de conferir maior nível de efetividade aos direitos da categoria.

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Em razão do caráter de indivisibilidade dos direitos humanos, a distinção não significativa para alguns doutrinadores entre direitos humanos e direitos fundamentais, bem como a partir da constatação que os direitos trabalhistas são direitos humanos forjados na luta entre interesses antagônicos, será abordado o tema dos direitos sociais dos trabalhadores rurais, utilizando-se indistintamente os termos direitos humanos, direitos fundamentais, direitos sociais, direitos trabalhistas, sem desconhecer a autora a respeito da existência de teorizações a respeito de cada nomenclatura específica.

A primeira parte tem como objetivo demonstrar o desenvolvimento da concepção contemporânea dos direitos humanos, partindo da teoria tradicional, a fim de subsidiar uma posterior aproximação à teoria crítica de Herrera Flores. Em seguida, traça-se um paralelo entre direitos humanos, dignidade humana e trabalho decente, que servirá de pressuposto ao estabelecimento das premissas básicas que fundamentam o desenvolvimento do tema, sob o pressuposto de que os trabalhadores rurais se encontram em uma situação de injustiça e violência social.

O segundo item tem como intenção sugerir alguns caminhos para um maior nível de dignidade dos trabalhadores rurais e começa pela apresentação da formação dos sindicatos rurais estabelecido no Brasil em 1965, com a devida crítica ao modelo legislativo e proposta de desmembramento, a partir dos conceitos gerais de autonomia privada coletiva e solidariedade de interesses, mediante uma atuação pedagógica do Ministério Público do Trabalho, vez que a categoria tem se apresentado historicamente como carente de políticas públicas de emancipação.

Em prosseguimento, no que toca ao Judiciário Trabalhista, buscam-se interpretações que parecem atender ao princípio da máxima eficácia das normas constitucionais, abordando-se a questão da remuneração por produção e o pagamento de horas extras, pagamento de adicionais de insalubridade e de penosidade, aplicação da teoria da exceção do contrato não cumprido e banco de horas.

Ao fim, intenciona-se contribuir para o alargamento do sentido da dignidade humana dos trabalhadores assalariados no campo, com o intuito de demonstrar que o processo de empoderamento sindical da categoria constitui pressuposto básico à ampliação da garantia dos direitos sociais dos trabalhadores rurais, objetivo que poderá ser acelerado pela participação ativa do Ministério Público do Trabalho e, no que tange à Justiça do Trabalho, por meio da aplicação da norma comprometida com a eficácia dos direitos fundamentais.

1. O desenvolvimento da concepção de direitos humanos na contemporaneidade
1.1. A concepção tradicional dos direitos humanos

A concepção contemporânea dos direitos humanos foi introduzida pela Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, originada após a 2ª Grande Guerra como resposta aos horrores promovidos pelo nazismo, dando origem a um recente campo do Direito, deno- minado Direito Internacional dos Direitos Humanos.1Invocando uma fundamentação jusnaturalista, Lucas Verdú defende que os direitos humanos podem ser interpretados como uma fundamentação axiológica da posição do homem no cosmos.2Conceitua direitos humanos da seguinte forma:

Los derechos humanos, si bien son deter-minaciones politico-positivas, emanadas

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por órganos estatales y supraestatales, corresponden a una concepción transcendente, de una cosmovisión basada en crencias religiosas o según un enfoque no credencial, se apoyan en el pensamiento kantiano al considerar al hombre como autofín y no como instrumento, como un médio.3A Declaração de 1948 “constitui a mais importante conquista dos direitos humanos universais em nível internacional”.4Instituída por meio da Resolução n. 217-A(III), da Assembleia Geral das Nações Unidas, seus dispositivos não constituem obrigações jurídicas aos Estados-partes.5 Tem forma jurídica de recomendação, o que levou à necessidade de a adoção de um pacto ou tratado a fim de vincular os países signatários.6Para Konder Comparato, no contexto do sistema global, os direitos humanos vêm se desenvolvendo em três etapas bem distintas.7A primeira etapa a partir da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, com o reconhecimento dos valores supremos de igualdade, liberdade e fraternidade.

A segunda etapa consiste na adoção do Pacto dos Direitos Civis e Políticos e do Pacto dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, ambos de 1966.

A terceira etapa, em andamento, consiste na instrumentalização dos mecanismos necessários para assegurar o respeito aos direitos humanos e tratar casos de sua violação, do qual é exemplo a criação do Tribunal Penal Internacional.8A Declaração Universal já dispunha sobre o caráter de universalidade e indivisibilidade dos direitos humanos.9 No entanto, em sentido contrário, em 1966, em meio à Guerra Fria que dividia o mundo em dois blocos, foram aprovados dois pactos, o Pacto dos Direitos Civis e Políticos, com o rol dos direitos denominados de primeira dimensão; e o Pacto dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC), com os chamados direitos de segunda dimensão,10 o que na época levou a uma quebra na concepção de indivisibilidade dos direitos humanos.

O sistema global de direitos humanos atualmente está fundado principalmente Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948; nos Pactos dos Direitos Civis e Políticos, o Pacto dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de 1966; na Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento de 198611e na Convenção de Viena de 1993.12Sobre a Convenção de Viena, importa salientar que, quatro anos após a queda do Muro de Berlim, foi aprovada a Declaração reiterando a concepção contemporânea de indivisibilidade dos direitos humanos, fixando-se uma clara ideia de que não pode haver prevalência de uma dimensão sobre outra, visto que para a efetivação das liberdades é necessário que estejam presentes condições de igualdade e vice--versa, conforme se depreende do item 5 de sua Declaração e Programa de Ação, abaixo transcrita13:

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5. Todos los derechos humanos son universales, indivisibles e interependientes y están relacionados entre sí. La comunidad internacional debe tratar los derechos humanos en forma global y de manera justa y equitativa, en pie de igualdad y dándoles a todos el mismo peso. Debe tenerse en cuenta la importancia de las particularidades nacionales y regionales, así como de los diversos patrimonios históricos, culturales y religiosos, pero los Estados tienen el deber, sean cuales fueren sus sistemas políticos, econômicos y culturales, de promover y proteger todos los derechos humanos y las libertades fundamentales.14Hector Gros Espiell confere uma noção bem clara a respeito da indispensável indivisibilidade dos direitos humanos, com a seguinte passagem:

Só o reconhecimento integral de todos estes direitos pode assegurar a existência real de cada um deles, já que sem a efetividade de gozo dos direitos econômicos, sociais e culturais, os direitos civis e se reduzem a meras categorias formais. Inversamente, sem a realidade dos direitos civis e políticos, sem efetividade da liberdade entendida em seu mais amplo sentido, os direitos econômicos, sociais e culturais carecem, por sua vez, de verdadeira significação.15Nesse sentido, a distinção entre direitos individuais e sociais, entre os chamados diretos de primeira e segunda dimensão, tem importância histórica, uma vez que a característica de indivisibilidade dos direitos humanos prevalece no ordenamento jurídico internacional, principalmente a partir da Declaração de Viena.

Com esse foco será desenvolvido o tema, sem quaisquer distinções a respeito da dimensão dos direitos, objeto de estudo, que se referem mais especificamente à garantia de direitos ditos sociais dos trabalhadores rurais.

Apenas para situar espacialmente o enfoque que será...

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