Os caminhos do multiculturalismo e seus limites

AutorJulio José Araujo Junior
Páginas11-58
Capítulo 1
Os caminhos do multiculturalismo e seus limites
Malgrado meu desejo de declarar-te irmão
e contigo fruir alegrias fraternas
Só tenho para dar-te em turvo condomínio o
pesadelo urbano de ferros e de fúrias
em contínuo combate na esperança de paz
(Carlos Drummond de Andrade
11)
O reconhecimento de direitos especiais a grupos minoritários é
um tema que move debates acerca do alcance do princípio da igualda-
de e da garantia de estabilidade social ante a possibilidade de convi-
vência de grupos possuidores de cosmovisões e anseios distintos. As
lutas identitárias, que se fortaleceram nos anos 1970, contestaram a
noção abstrata ou desenraizada de sujeito e cobraram outra postura do
Estado para garantir o respeito à diferença. Nos anos 1990, o fim da
guerra fria e os efeitos da globalização abalaram a noção de Estado-na-
ção, e a dispersão de elementos étnicos impactou a noção liberal de
homogeneidade cultural dentro dos limites estatais. Cresceu, assim, a
preocupação com formas de convivência e políticas de acomodação
em favor das minorias.
Nesses debates, a suposta neutralidade preconizada pelo liberalis-
mo político é objeto de fortes críticas. O liberalismo político procura
dissociar as noções de bem e de justo, de modo a permitir a convivên-
cia de distintas concepções de bem em uma sociedade, por isso se diz
neutro e cego às diferenças. Essa neutralidade, porém, não é real, pois
revela um favorecimento a valores dominantes relacionados aos gru-
pos que ostentem uma posição privilegiada na sociedade. Assim,
quando não se enquadram no padrão hegemônico, práticas culturais
11 ANDRADE, Carlos Drummond de. KREEN-A-KARORE. In: _____. Discurso
de primavera e algumas sombras. São Paulo: Companhia das Letras, 2014, p. 19.
de grupos minoritários tendem a ser rejeitadas, proibidas e até crimi-
nalizadas.
Diante dessa realidade complexa, o multiculturalismo surge como
construção teórica que almeja promover uma melhor acomodação en-
tre pluralismo, diferença e estabilidade. Em sua vertente liberal, o
multiculturalismo busca, com ainda mais ênfase, compatibilizar os di-
reitos dos grupos com o respeito à condição de cada indivíduo. No
caso dos povos indígenas, cuja organização social se distancia do mo-
delo ocidental, tais questões repercutem na própria existência do gru-
po. Neste capítulo, pretende-se apresentar as correntes do pensamen-
to crítico que convergem para o multiculturalismo, bem como os as-
pectos positivos e as insuficiências de suas abordagens quanto ao reco-
nhecimento de direitos indígenas, especialmente os territoriais. Para
compreender a diversidade de doutrinas e cosmovisões, faz-se neces-
sário, de início, recorrer à reflexão de uma das principais lideranças
indígenas do país, o xamã yanomami Davi Kopenawa, cujo relato ser-
virá de referência para a análise a seguir.
1.1. A profecia de Davi Kopenawa
Em “A queda do céu: Palavras de um xamã yanomami”, Davi Ko-
penawa apresenta sua trajetória ao antropólogo Bruce Albert e ao pú-
blico, mostrando a visão do povo Yanomami12 sobre o mundo. Uma
autoetnografia, um relato de vida e um manifesto cosmopolítico, tudo
ao mesmo tempo, como diz o coautor no prefácio, em que a visão de
um observador indígena, no século XXI, descreve as violências prati-
cadas contra o seu povo e condena a incompreensão dos brancos sobre
as consequências de seus atos.
Como espectador privilegiado, Kopenawa mostra os impactos do
contato de seu povo com a sociedade regional e os reflexos em sua
percepção acerca de questões existenciais. Desde a infância, ele con-
12 Julio José Araujo Junior
12 O povo Yanomami ocupa um espaço de floresta tropical de cerca de 230 mil
quilômetros quadrados, nas duas vertentes da serra Parima, entre o alto Orinoco (no
sul da Venezuela) e a margem esquerda do rio Negro (no norte do Brasil), abrangen-
do os Estados do Amazonas e Roraima. Sua população, no lado brasileiro, era estima-
da em cerca de 23 mil indígenas em 2016. Cf. ALBERT, Bruce. Povos indígenas no
Brasil. Disponível em: “https://pib.socioambiental.org/pt/povo/yanomami”. Aces-
so em 30 out. 2017.
viveu com as invasões do Serviço de Proteção ao Índio (SPI), de ga-
rimpeiros, missões religiosas e fazendeiros. Na relação com os napë,
como chama os brancos13, o xamã yanomami assiste à destruição da
floresta e à valorização desmedida da mercadoria, as quais colocam
em marcha a concretização da profecia da “queda do céu”, quando
tudo se acabará.
Kopenawa ainda era criança na época em que houve a dizimação
das pessoas de sua comunidade, em Marankana, no alto rio Toototo-
bi, no extremo norte do Amazonas, em razão de epidemias por doen-
ças transmitidas por funcionários do Estado brasileiro e por integran-
tes de uma missão religiosa estadunidense. Entre as décadas de 1950
e 1960, perdeu diversos parentes, inclusive pai e mãe.
Os primeiros brancos que conheceu eram os funcionários do Esta-
do, responsáveis pela delimitação das fronteiras nacionais. Quando a
vinda foi anunciada, as mães de Marakana mandaram os filhos se es-
conderem, pois temiam que aqueles homens os roubassem delas,
como já ocorrera em outras oportunidades. Mais do que a própria cara
feia dos homens, suas roupas e procedimentos, Kopenawa temia o
ronco de seus motores, as vozes de seus rádios e os estampidos de suas
espingardas14. Os aviões assustavam até os adultos, cujo zumbido fa-
zia todos correrem e se esconderem pela floresta. Temiam que o avião
pudesse cair e provocar um incêndio.
O contato com os missionários foi inicialmente amistoso. Foram
eles que lhe deram o nome bíblico Davi. Conforme a relação se esta-
bilizava, vários hábitos, como mascar folhas de tabaco, beber o pó alu-
cinógeno de Yãkoana hi15 e acompanhar as danças dos espíritos passa-
ram a ser tratados como práticas pecadoras. Para adorar a Teosi, o
Deus dos missionários, era necessário rejeitar os xapiris16 e negar as
palavras de Omama, o demiurgo da mitologia yanomami.
Direitos territoriais indígenas 13
13 O termo originalmente significa “inimigos”, mas passou a designar os “brancos”.
Outras etnias fazem a mesma referência, como os Parakanã, que ao longo do tempo
passaram a fazer uma distinção entre inimigos indígenas e inimigos brancos. Sobre o
tema, ver: FAUSTO, Carlos. Inimigos fiéis: história, guerra e xamanismo na Amazô-
nia. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2001, p. 471-472.
14 KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. A queda do céu: pala vras de um xamã ya-
nomami. Tradução de Beatriz Perrone-Moisés. São Paulo: Companhia das Letras,
2015, p. 244.
15 Yãkoana hi ou Yãkoana a é a ucuuba-vermelha, árvore da qual se extrai o pó
alucinógeno yãkoana a, que tem como princípio ativo mais destacado a dimetiltrip-
tamina. Cf. Ibid, p. 597.
16 Xapiri é um termo yanomami que designa tanto os xamãs (homens-espírito) –
xapiri thëpë – como os espíritos auxiliares (xapiri pë).

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