Capacidade e vontade no consentimento à atuação médica
Autor | Flaviana Rampazzo Soares |
Páginas | 103-158 |
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CAPACIDADE E VONTADE NO
CONSENTIMENTO À ATUAÇÃO MÉDICA
– Nós, doentes, provavelmente, fazemos ao senhor muitas vezes perguntas inconvenientes. Num
sentido genérico, é uma doença perigosa ou não? ...
O médico olhou-o com severidade, com um olho só, por trás dos óculos, como se dissesse: acusado,
se o senhor não se mantiver nos limites das perguntas que lhe são apresentadas, serei obrigado a tomar
providências para o seu afastamento da sala das sessões.
– Eu já disse ao senhor aquilo que considerei necessário e conveniente – disse o doutor. – O exame
indicará o resto. – E o doutor inclinou-se, despedindo-se.
Ivan Ilitch saiu devagar, sentou-se merencório no trenó e foi para casa. No decorrer de todo o percurso,
ele reexaminava tudo o que dissera o médico, esforçando-se por traduzir para uma linguagem simples
todos aqueles termos cientícos confusos e ler neles uma resposta ao seguinte: estou muito mal ou, por
enquanto, não é grave? (…) E essa dor, uma dor surda, abafada, que não cessava um segundo sequer,
parecia receber, em consequências das palavras imprecisas do médico, um signicado novo, mais
sério. Ivan Ilitch prestava agora atenção a ela com um sentimento penoso diferente1.
A exposição dogmática anterior, densa e necessária, cede agora lugar à investigação
sobre o processo material informativo e decisório, também conhecido como de escolha
esclarecida, no qual, ao primeiro, importa a qualidade da informação; ao segundo, a
capacidade para a decisão, e, especificamente quanto ao consentimento, a sua formação
sob declaração ou comportamento concludente, que são os temas contemplados nesta
parte do trabalho.
Isso justifica a reprodução de um trecho da obra A morte de Ivan Ilitch, na qual foi
descrita literariamente a fenomenologia da doença, a pessoa do doente e o seu esforço
para entender os médicos, o sentimento de inferioridade técnica diante do especialista
e a dúvida quanto ao seu real estado de saúde. A doença foi apresentada nessa narrativa
não somente como um distúrbio funcional, aferível e compreensível sob um modelo
médico e biológico, que acomete o paciente, mas também como uma força autônoma
e estranha dentro de um corpo, que nele toma assento impositivamente e cujo destino
depende de múltiplos fatores, alguns sob o domínio de quem a experimenta, e outros,
fora do seu controle.
As mudanças provocadas pela doença não são apenas internas ao físico ou à psique
do paciente, mas podem atingir, igualmente, o entorno da sua vida. Ivan Ilitch, perso-
nagem de Tolstoi, experimenta todo o desconforto de um corpo que a cada dia mais
lhe estranha e de uma sociedade que, no seu sentir, não tem habilidade para conviver
1. TOLSTOI, Lev. A morte de Ivan Ilitch. Trad. por Boris Schnaiderman. São Paulo: Editora 34, 2006. p. 38-39.
CONSENTIMENTO DO PACIENTE NO DIREITO MÉDICO • FLAVIANA RAMPAZZO SOARES
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adequadamente com a doença e a sensibilidade necessária ao atendimento de quem
precisa de cuidados na área da saúde.
Com essa “antessala”, passa-se à abordagem da capacidade civil e da capacidade
para consentir, importantes à validade do consentimento ao ato médico.
4.1 AUTONOMIA PARA CONSENTIR – CAPACIDADE, LEGITIMAÇÃO E DECISÃO
O exposto nos itens anteriores enunciou a autodeterminação do paciente como fonte
de legitimação do consentimento ao ato médico. O exercício dessa autodeterminação,
especificamente considerada e exposta, depende de um decisor que tenha compreen-
dido suficientemente as circunstâncias, os dados e as consequências que compõem a
informação apta ao seu processo decisório.
Este tópico propõe perscrutar quais são os elementos a serem considerados na
especificação dos contornos da capacidade no universo do consentimento esclarecido,
iniciada pela exposição do panorama no direito estrangeiro, seguindo com uma sugestão
de quadro de acordo com o sistema jurídico brasileiro.
4.2 CONSENTIMENTO E CAPACIDADE NO DIREITO ESTRANGEIRO
O estudo da capacidade para consentir torna-se mais profícuo a partir da análise
legislativa, doutrinária e jurisprudencial desse ponto, em outros países. Por isso, faz-se
uma sucinta exposição do tema nos países com proeminência e maior influência no
direito brasileiro, tendo-se o cuidado de incluir (por amostragem) tanto países sob
o sistema predominante de common law (EUA e Reino Unido) quanto os de civil law
(França, Espanha, Itália e Argentina).
O objetivo dessa averiguação é permitir a visualização das semelhanças e das
diferenças entre os diferentes sistemas estrangeiros analisados, a fim de, em seguida,
estudar o direito brasileiro2.
4.2.1 Estados Unidos
Inicia-se a abordagem do tema pelos EUA, com a lembrança de que, nesse país,
conforme mencionado no Capítulo 2.1, a introdução do consentimento ao ato médico
2. Quanto ao consentimento das pessoas que não alcançaram a idade que as habilita à plena capacidade civil, “não
há uniformidade no direito comparado”. Boa parte dos países adotam uma “maioridade especial para cuidados
de saúde”, cada um estabelecendo requisitos específicos. “Alguns países vão reconhecendo progressivamente
maior autonomia ao menor a partir dos 12 anos, sendo que, aos 16 anos, a maioridade é considerada plena” (como
Holanda e Espanha). “Outros países adotam a fronteira dos 14 anos, como é o caso da Áustria, da Alemanha, da
província canadense do Quebec, do Estado australiano de New South Wales, além de vários Estados norte-ame-
ricanos.” O marco de 16 anos encontra-se na Inglaterra, no Estado australiano de South Australia e na Holanda.
Outros ordenamentos não se utilizam de uma idade precisa, preferindo uma avaliação concreta da capacidade de
discernimento, como ocorre na Bélgica, na Suíça, na Suécia e na Finlândia.
FACCHINI NETO, Eugênio. Consentimento e dissentimento informado – limites e questões polêmicas. Revista
de Direito do Consumidor. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. Vol. 102. p. 223-256. Trechos do item n. 4.1.
Nov./Dez./2015.
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4 • CAPACIDADE E VONTADE NO CONSENTImENTO À ATuAÇÃO mÉDICA
foi feita de maneira gradual e vinculada a julgamentos de alguns casos judiciais de gran-
de relevância. Em especial, há quatro precedentes de casos julgados entre 1905 e 1914
que costumam ser creditados como padrões para a fixação das formulações básicas do
consentimento esclarecido no direito estadunidense, que são: Mohr v. Williams (1905),
Pratt v. Davis (1906), Rolater v. Strain (1913) e, o mais conhecido, Schloendorff v. Society
of New York Hospitals (1914)3.
Os dois primeiros são semelhantes em seus argumentos e cronologicamente próxi-
mos na data de julgamento (o case Mohr v. Williams cita a decisão de primeira instância
do precedente Pratt v. Davis) e em ambos foi assegurado o direito do paciente de deliberar
sobre o tratamento médico e procedimentos aos quais poderá ser submetido4.
Mohr v. Williams trata de uma senhora que consentiu na cirurgia em sua orelha
direita. Durante o procedimento e após a anestesia da paciente, descobriu-se que a ore-
lha direita não estava tão afetada quanto o imaginado e que a orelha esquerda era a que
precisava de uma intervenção em primeiro lugar, e assim o cirurgião procedeu. Essa
cirurgia prejudicou a audição da Sra. Anna Mohr, e o profissional foi processado pela
realização de ato médico não consentido5.
A Supreme Court de Minnesota referiu a impossibilidade de presunção de consen-
timento para uma intervenção apenas porque o paciente procurou o aconselhamento
do médico sobre um tratamento, e que o cirurgião somente poderia intervir após ter
consultado a paciente e obtido o seu prévio consentimento. Mencionou que “o primeiro e
maior direito do cidadão livre, subjacente a todos os outros” é “o direito à inviolabilidade
de sua pessoa; em outras palavras, o direito a si mesmo”, o qual proíbe que o profissional,
por mais habilidoso que seja, e mesmo tendo sido solicitado a “examinar, diagnosticar,
aconselhar e prescrever (que são os necessários primeiros passos no tratamento)”, viole,
“sem permissão, a integridade física de seu paciente por uma operação maior ou capital,
colocando-o sob anestesia para esse propósito, e operando-o sem seu consentimento
ou conhecimento”. Em especial porque o paciente tem o direito de conhecer os riscos
do procedimento e, por si, avaliá-los antes de tomar uma decisão (a exceção seria em
caso de atendimento de emergência).
No Pratt case (1906), julgado pela Supreme Court de Illinois, foi estabelecida a
responsabilidade do médico que engana a paciente intencionalmente e procede a uma
histerectomia sem o seu prévio consentimento, não servindo para esse fim um consen-
timento para outra operação anterior. Tampouco tornaria lícita a conduta profissional
a alegação de que a paciente sofreria de epilepsia e que, por isso, não seria capaz de
consentir ou de decidir sobre a condução da sua saúde6.
3. Todos os precedentes julgados nos EUA citados neste capítulo foram extraídos do site LexisNexis. Disponível
em: www.lexisnexis.com. Acesso em: 08 nov. 2018.
4. FADEN, Ruth R.; BEAUCHAMP, Tom L. A history..., cit., p. 120.
5. Mohr v. Williams, 95 Minn. 261, 104 N.W. 12 (1905). Esse precedente e os demais (julgados nos EUA) são referidos
em: FADEN, Ruth R.; BEAUCHAMP, Tom L. A history..., cit., p. 122.
6. Pratt v. Davis, 224 Ill. 300, 79 N.E. 562 (1906). Os comentários constam em: FADEN, Ruth R.; BEAUCHAMP,
Tom L. A history..., cit., p. 122.
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