A CAPILARIZAÇÃO DO COMBATE À IDEOLOGIA DE GÊNERO: PRODUÇÃO DE SUBJETIVIDADES E MATABILIDADE

AutorCamila Camargo Ferreira
Páginas33-56
33
GÊNERO | Niterói | v. 20 | n. 2 | p. 33-56 | 1. sem 2020
33
A CAPILARIZAÇÃO DO COMBATE À IDEOLOGIA DE GÊNERO:
PRODUÇÃO DE SUBJETIVIDADES E MATABILIDADE
Camila Camargo Ferreira1
Resumo: Neste artigo, discute-se o uso político da categoria “ideologia de
gênero” no cenário político brasileiro. As tentativas de compreensão desse
fenômeno foram mediadas pelas teorias de Michel Foucault e Giorgio Agamben
acerca dos entrelaçamentos de poder, vida e mor te na modernidade. Evidencia-se
o acionamento da noção “ideologia de gênero” no espaço público como uma
estratégia de disputa pelo poder político. Demonstra-se que a introdução do
combate à “ideologia de gênero” na agenda política nacional contemporânea
alicerça um projeto conservador antidireitos que intensifica a desvalorização das
vidas dos sujeitos ininteligíveis pela a matriz heteronormativa.
Palavras-chave: Biopolítica; ideologia de gênero; vida nua.
Abstract: This article describes the political use of the category “gender
ideology” in the Brazilian political sphere. Reflections of Michel Foucault and
Giorgio Agamben about the power of life and of death in modernity were used
as methodology. This paper serves to highlight the invocation of the notion of
“gender ideology” in the public sphere as a strategy of power. The introduction
of the fight against “gender ideology” in the national contemporary political
agenda is shown to underpin a conservative anti-rights project that intensifies
the devaluation of individuals that become inintelligible in the face of
hegemonic heterosexuality.
Keywords: Biopolitics; gender ideology; bare life.
Introdução
Na última década, foi possível observar na América Latina e na Europa
a deflagração de massivas campanhas no âmbito social e político organiza-
das contra o conceito de gênero. Tais mobilizações compõem uma ampli-
tude de disputas travadas a partir do delineamento de modos específicos
de ação de grupos conservadores religiosos e laicos contra as demandas
1 Doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de São Carlos,
Brasil. E-mail: camilacamargoferreira@gmail.com. Orcid: 0000-0003-3624-6144
34 GÊNERO | Niterói | v. 20 | n. 2 | p. 33-56 | 1. sem 2020
por reconhecimento e direitos dos movimentos feministas e LGBTQI2.
Obviamente, as oposições aos direitos sexuais e reprodutivos não figu-
ram como fenômenos recentes e isolados, uma vez que historicamente
evidenciam-se ações políticas contrárias à igualdade de gênero e sexual
(CORRÊA, 2018). Entretanto, elas ganham nova tônica com a eclosão de
movimentações transnacionais articuladas em torno da categoria política
“ideologia de gênero” (PATERNOTTE; KUHAR, 2018).
À medida que deixou de estar restrito às investigações acadêmicas, pas-
sou a ser incorporado como chave interpretativa da realidade social, pelo
ativismo político e como parâmetro definidor de políticas públicas pela
governança nacional e internacional, o gênero enquanto categoria analí-
tica tornou-se alvo de rechaço pelo Vaticano e atores políticos conserva-
dores católicos (BRACKE; PATERNOTTE, 2018). O termo “ideologia de
gênero” despontou, nesse contexto, como um rótulo político empregado
para caracterizar as teorias de gênero e, paralelamente, as demandas dos
movimentos sociais feministas e LGBTQI. Ambas são apontadas como
ideologias radicais que ameaçam a existência da sociedade, já que supos-
tamente objetivam a destruição da família na sua realização matrimonial
heterossexual e a desvalorização do ser humano por intermédio da des-
construção das identidades masculinas e femininas e dos papéis e funções
que lhes são culturalmente atribuídos.
Aos poucos os receios com relação à “ideologia de gênero” saíram dos
documentos católicos e adentraram os debates públicos sobre a igual-
dade de gênero e a cidadania sexual. No Brasil, as mobilizações em torno
dessa categoria vão desde “movimentos a favor da família tradicional até
manifestações contra políticas de governos de esquerda” (MISKOLCI;
CAMPANA, 2017, p.226). Elas têm sido forjadas por uma coalescência de
forças que reúne grupos da extrema direita e setores conservadores laicos,
católicos e evangélicos. A categoria “ideologia de gênero” passou, então, “a
animar ações midiaticamente muito eficazes para enfim se legitimar como”
categoria política, “passando inclusive a figurar em documentos de Estado
e estar presente em pronunciamentos de dirigentes políticos […] com ares
de aparente laicidade” (JUNQUEIRA, 2016, p.232).
2 O uso da sigla LGBT, que significa “Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais”, foi acordado e
difundido a partir da I Conferência Nacional de Políticas Públicas e Direitos Humanos de Lésbicas, Gays,
Bissexuais, Travestis e Transexuais, realizada em junho de 2008 em Brasília. Mais recentemente, contudo, os
movimentos sociais têm utilizado o termo LGBTQI para designar lésbicas, gays, bissexuais, travestis, pessoa
trans,
queer
e intersexuais.

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT