Captação ilícita de sufrágioSuzana de Camargo Gomes

AutorDaniel Castro Gomes da Costa
Páginas197-220

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1. Introdução

Um dos problemas mais sérios que afeta o processo eleitoral é a utilização de meios ilícitos para a obtenção de votos, especialmente quando reveladores do abuso do poder econômico, do poder de autoridade e do uso indevido dos meios de comunicação, dado que a adoção de tais condutas tem o condão de quebrar o equilíbrio da disputa entre os candidatos e de viciar a vontade livre e soberana dos cidadãos a ser manifestada nas eleições.

É legítimo que, durante o processo eleitoral, os candidatos busquem angariar votos, mas para tanto devem observar as regras impostas, com utilização dos instrumentos e meios autorizados legalmente.

Não podem ser levados a efeito técnicas, formas e instrumentos que promovam a desigualdade entre os candidatos que concorrem ao pleito eleitoral, nem tampouco podem ser desenvolvidas práticas e condutas ilícitas que levem os eleitores a adotar posições deturpadas ou distorcidas, que não tomariam não fossem as ilicitudes perpetradas, não conducentes ao livre exercício do direito de voto.

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A legislação eleitoral repele, assim, todas essas investidas que conspurcam o processo eleitoral, sejam aquelas reveladoras de abuso do poder econômico, normal-mente evidenciadas pela corrupção eleitoral e pela captação ilícita de sufrágio, seja pelo exercício abusivo do poder de autoridade, caracterizado pela prática de condutas vedadas a agentes públicos e, ainda, a utilização indevida dos meios de comunicação; sendo que, para inibi-Ias, impõe sanções de cunho político-eleitoral e também de natureza criminal.

2. Histórico

Os povos, desde as mais remotas eras, buscam coibir abusos na seara eleitoral. Não se trata de um problema atual, mas que aflige a humanidade há milênios.

Os povos antigos, em menor ou maior amplitude, conheceram o poder do sufrágio e, assim, eram chamados a participar de eleições. Essa situação, na verdade, era emanação da própria natureza societária do homem, pois, passando a viver em agrupamentos, não podia dispensar a utilização de mecanismos que permitissem a escolha de seus líderes.

Um breve lançar de olhos pelas civilizações antigas já revela que não poucas medidas foram adotadas tendentes a combater essas mazelas.

2.1. Grécia antiga

Vamos encontrar, nos refolhos da história grega, instituições políticas, que hauriram legitimidade justamente no fato de terem sido integradas por pessoas que foram eleitas pelos detentores de direitos políticos.

Atenas, após ter vivido um período sob o pálio do Código de Drácon, que se caracterizava por conter leis severas e cruéis, veio a adotar com Sólon uma legislação mais liberal e democrática e a votação passou a ser utilizada com intenso vigor, chegando Fustel de Coulanges a registrar que "desde então, votou-se para todos os assuntos; para se estar ciente de conhecer o interesse de todos era preciso ter-se esse voto de todos. O sufrágio tornou-se no grande processo de governo. Foi a origem das instituições, a regra do direito; decidiu do útil e até do justo. Esteve superior aos magistrados e acima mesmo das leis; foi o soberano na cidade"1. A eleição deixou de decorrer dos desígnios divinos, passando a pertencer ao povo.

Ora, dentro desse contexto, em que o sufrágio tinha enorme importância, tornou-se indispensável a adoção de certas precauções, com a finalidade de serem expungidas do processo de escolha injunções menos airosas. Assim é que "cada novo eleito era examinado, quer perante o Senado, quer perante o Areópago; não se lhe pedia provas de capacidade ou de talento, mas procedia-se a inquérito sobre a probidade do homem e acerca da sua família, assim como também se exigia todo o magistrado ti-

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vesse seu patrimônio em bens de raiz"2. Tratava-se, assim, de um verdadeiro processo de habilitação a que deviam submeter-se os aspirantes à magistratura, onde somente eram admitidos aqueles que preenchiam os requisitos exigidos.

Assim, a assembléia do povo, uma das instituições democráticas da época, que, em termos de soberania, se sobrepunha ao próprio Senado, antes de deliberar a respeito de projetos de lei e decretos que lhes eram apresentados para aprovação, tinha a oportunidade de ouvir os oradores que subiam à tribuna e que defendiam os pontos a serem votados. Mas as prédicas levadas a efeito vinculavam os oradores, dado que, se durante os discursos viessem a ofender alguma lei, magistrados especiais, que vigiavam a reunião, podiam ordenar a paralisação do ato e a dissolução da assembléia, além de que se resultasse provado ter o orador dado qualquer mau conselho ao povo, ou que tivesse orientado os participantes no sentido de que tomassem resoluções contrárias à ordem legal existente, ficavam sujeitos à punição.

E mais, leciona Fustel de Coulanges, que "apesar de tantas prudências, ainda podia acontecer que alguma proposta injusta ou funesta fosse adotada. Por isso, a lei nova trazia sempre o nome do seu autor, que mais tarde podia ser perseguido em justiça e punido. O povo, como verdadeiro soberano, era considerado impecável, mas cada orador continuava sempre como responsável pelo conselho que dera."3Vislumbra-se, nessas infrações, meios de combate à utilização indevida de formas de comunicação e persuasão existentes à época, posto que a punição ocorria justamente em razão de estarem os oradores se utilizando de artifícios e da própria eloquência, no sentido de levarem os eleitores a deliberar em desconformidade com as leis vigorantes, ou mesmo, em descompasso com o interesse público em discussão.

Portanto, a esse tempo, já havia a preocupação de ser resguardado o exercício do direito de voto em suas várias vertentes, pois o candidato era investigado no que concerne à sua probidade e acerca de sua família e patrimônio, isto como forma de permitir fossem eleitos somente aqueles detentores de qualidades que entendiam ser as mais apropriadas ao desempenho da função. Ademais, a utilização da palavra, com o fim de tergiversar, enganar, ludibriar o colégio eleitoral ou mesmo levá-lo a descumprir a lei, também redundava em punições, o que denota, em última análise, que os atenienses conheciam e repudiavam inclusive a prática de condutas delituosas durante a comunicação realizada com os eleitores.

2.2. Roma antiga

Roma, na antiguidade, também contava em seu ordenamento com a descrição de infrações no âmbito eleitoral, cabendo ressaltar que no ano 200 antes de Cristo surgiram as primeiras leis destinadas a castigar aqueles que manipulavam a obtenção de votos nas eleições.

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Ademais, se comprovadas que as manipulações na obtenção de votos decorriam da atuação da magistratura, classe que era integrada pelo consulado, questura, pretura, censura, edilidade e pelo tribunato da plebe, restava, então, caracterizada a responsabilidade política do magistrado e a punição era a perda do cargo, além de que estavam sujeitos à imposição de multas.4Esse crime era denominado "ambitus".

Toda ordem de corrupção eleitoral era proscrita pelo direito romano, sendo que nada menos que trinta leis trataram dessa matéria, sendo a última a Lex Julia, sem que, contudo, tivessem logrado êxito total, consoante destaca Vicente Arangio-Ruiz ao real-çar que "también se dieron algunas leyes sobre el ambitus, otro de los delitos característicos de la nobilitas. Este delito, que debió consistir, al comienzo, en la organización de motines insurreccionales para presionar a los magistrados en sus propuestas de sucesores, se extendió, en el sistema de lucha electoral libre, a toda clase de corrupciones electorales, como la obtención de votos, bien con banquetes, bien con espectáculos; mas dichas prohibiciones debieron ser poco eficaces, como lo demuestra el hecho de que debieran reproducirlas tres leyes, agravando las sanciones. Aparte de la lex Poetilia del año 358 que debía referirse, según Livio habla de ella (8,15,12), al ambitus en su antigua significación, la serie de normas represivas de la corrupción electoral se abre con la lex Cornelia Baebia, del año 181, a la que siguió otra de proponente desconocido en el año 159. En el período de crisis de la República las rogationes se multiplicaron. Una ley Cornelia, que es probablemente de Sila, pero que algunos identifican con la C. Baebia del 181, castigaba el ambitus con la prohibición de desempeñar cargos públicos durante diez años; la ley Calpurnia, del 67, estableció como penas: la pérdida perpetua del ius honorum, la expulsión del Senado y una pena pecuniaria; la ley Tulia de Cicerón (63 a.C.), sancionaba los casos graves con la relegación por diez años y la lex Licinia del 55, mientras agravó la situación del acusado al limitar la recusación de los jurados, llegaba a la interdictio aquae et ignis para el crimen sodaliciorum, consistente en la organización de asociaciones para tráficos ilícitos".5Havia em Roma a venda de votos, sendo que, neste particular, relata Fustel de Coulanges que "o pobre não levou muito tempo sem compreender que a igualdade, que tinha, podia servir-lhe para adquirir a que não tinha, e para, senhor dos sufrágios, poder tornar-se também senhor da riqueza. Começou por desejar viver do seu...

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