Caracterização do Trabalho Escravo no Brasil

AutorJosé Claudio Monteiro De Brito Filho
Ocupação do AutorMestre em Direito pela Universidade Federal do Pará (1995) e Doutor em Direito das Relações Sociais pela PUC/SP (1999)
Páginas61-82
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CARACTERIZAÇÃO DO
TRABALHO ESCRAVO NO BRASIL
Capítulo III
Mesmo depois de quase 20 anos da alteração do art. 149 do Código Penal brasileiro,
pela nova redação decorrente do disposto na Lei n. 10.803, de 11.12.2003, persiste
a discussão, nos âmbitos doutrinário e jurisprudencial, a respeito da caracterização do
crime de reduzir alguém à condição análoga à de escravo, mais conhecido como trabalho
escravo, assim como seus modos de execução.
Tanto é assim que, como visto no Capítulo I, tramitam no Congresso Nacional
projetos de lei que pretendem, dentre outros objetivos, definir quais são os modos de
execução, ou hipóteses, para a ocorrência do ato ilícito de reduzir alguém à condição
semelhante à de escravo, para o caso de aplicação do art. 243 da Constituição da República,
em uma hipótese, e até para a caracterização do ilícito no aspecto penal, em outra.
Não são iniciativas que se revelem deslocadas, como se pode observar, desde logo,
em decisão do Plenário do Supremo Tribunal Federal no Inquérito n. 3.412/AL, em que
foi Relatora Designada a Ministra Rosa Weber, e que será discutida no subitem III.2.2.
Nesse acórdão, que se prestou ao recebimento de denúncia oferecida pelo
Procurador-Geral da República contra réus a quem se imputa a prática do crime de
reduzir trabalhadores à condição análoga à de escravos, a decisão foi tomada por maioria
de votos, havendo severa divergência, dentre outras, entre os Ministros que compõem o
Tribunal, a respeito do bem jurídico tutelado pelo art. 149 do Código Penal brasileiro,
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ficando claro que os autores dos votos divergentes entendiam, principalmente, que
somente quando houver a perda da liberdade de ir e vir dos trabalhadores pode-se
entendê-los sujeitos à condição semelhante à de escravo.
Tanto nos projetos de lei indicados, como no acórdão mencionado, fica patente que
o que motiva as divergências é menos o que normalmente se entende como causador
de dúvidas, qual seja, o modo — ou melhor, modos — como o crime é praticado, e
sim mais o bem que se intenciona proteger, e que é denominado de bem jurídico penal.
Assim, a primeira questão que se deve considerar para a correta caracterização do
crime de reduzir alguém à condição análoga à de escravo diz respeito à definição de quais
são os bens que o tipo descrito no art. 149 intenciona proteger.
Assim, uma das propostas deste Capítulo III é discutir quais os bens jurídicos tu-
telados pelo dispositivo indicado, demonstrando que sua compreensão indica o acerto
na enumeração dos modos de execução previstos no caput e no § 1º do citado artigo.
Antes, porém, serão apresentadas algumas questões que são tão importantes quanto
para a compreensão do trabalho em condições análogas à de escravo. Primeiro, tentarei
fazer a caracterização genérica do dispositivo, na perspectiva do Direito Penal. Depois,
ainda sem ter feito a análise dos bens jurídicos tutelados pelo art. 149 do Código Penal,
que é uma das premissas para a caracterização do tipo penal, vou apresentar as demais,
como será visto em III.2.1.
Para que esses itens do capítulo sejam compreendidos é preciso registrar a profunda
alteração, do ponto de vista da redação, que o indicado artigo sofreu em 2003.
Antes da modificação, a disposição era sintética: Art. 149. Reduzir alguém à
condição análoga à de escravo.
Como se observa, era um tipo penal descrito de forma sintética, e por isso mais
dependente de interpretação, mas que, para a posição até então majoritária, estava
claramente inspirado no princípio da liberdade, além de ser amplo, no tocante à relação
em que seria possível a prática do crime.
A partir da mencionada Lei n. 10.803, de 11.12.2003, a redação passou a ser a
seguinte:
Art. 149. Reduzir alguém à condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados
ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo,
por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto:
Pena — reclusão, de dois a oito anos, e multa, além da pena correspondente à violência.
§ 1º Nas mesmas penas incorre quem:
I — cerceia o uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com o fim de retê-lo
no local de trabalho;

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