O casamento. O Direito de família à luz da dignidade humana
Autor | Carlos Aurélio Mota de Souza |
Páginas | 43-75 |
43
O casamento.
O direito de família à
luz da dignidade humana
Na vida do homem, tudo começa com um primeiro ato
criador: uma semente lançada em solo preparado, que se
multiplica e se multiplica, semelhante a pedras lançadas
ao lago, formando a sociedade, a nação, o Estado, as
comunidades internacionais, como em c írculos concên-
tricos, que abrangem e incluem uns aos outros, o todo e
as partes, destinados ao bem comum.
Sumário: Introdução. 1. Filosoa jurídica ou Teoria do Direito. 2. Prin-
cípios sobre a natureza do homem: a) Princípios e valores fundamentais:
igualdade liberdade e vida; b) Fundamento constitucional da dignidade
humana; c) A sociedade: pluralista, fraterna e solidária. 3. Instituição da
família: a) Casamento, família e direito; b) Casamento e consentimento;
c) Juridicidade intrínseca da família. 4. Valores informativos da vida fa-
miliar: a) Formação da comunidade familiar; b) Respeito e proteção aos
entes familiares: Crianças e adolescentes. Idosos e decientes; c) Educação
para cidadania; d) Ética na comunicação social. 5. Bioética e Biodireito:
novas tendências: a) Valor da vida humana e sua inalienabilidade; b) Di-
reito a nascer dignamente; c) Direito a morrer com dignidade. Conclusão.
Bibliograa.
2
direitos humanos, ética e justiça
44
Introdução
Família é instituição de ordem natural ordenada à congregação de uma
sociedade e à fundamentação do Estado. Por um viés dedutivo, a partir da
noção de dignidade humana, procuramos visualizar as famílias, naturalmente
constituídas, os corpos intermediários29 e o Estado. Não há Estado sem so-
ciedade estável que o organize, com o suporte de entidades familiares que se
formam seguidamente.
Para um estudo adequado da família, referida ao casamento, convém,
portanto, investigar suas origens primeiras, pois nca suas raízes na própria
natureza atrativa e gregária do ser humano, e transcende as pessoas que a com-
põem. Sua constituição é prévia à formação do Estado e, como tal, este não se
substitui à família, nem pode intervir em sua composição, pois tem por missão
reconhecê-la e protegê-la, visto que a formação de um núcleo familiar se fun-
damenta na livre e espontânea adesão recíproca de um homem e uma mulher,
pela sua natural vis atractiva.
O impulso natural de formar um casal obedece à ordem universal da
transcendência do homem e da mulher, através do amor mútuo e da procria-
ção de lhos, como vocação natural de perpetuação da espécie. Este funda-
mento antropológico de atração recíproca dos seres humanos encontra-se na
tradição bíblica: sob a aparência de um simbolismo ou metáfora, relata que o
homem e a mulher deixarão pai e mãe e, se unindo, “serão dois em uma só car-
ne” (Gn 2, 24), com a missão de fazer crescer e multiplicar o gênero humano.
A evolução dos grupos familiares se dá, pois, em sociedade, corpo social
que se desenvolve e aperfeiçoa à medida em que se desenvolvem as famílias,
como fenômeno interativo: os núcleos familiares compõem o patrimônio ma-
terial e espiritual da sociedade, também esta molda as famílias com regras con-
suetudinárias de convivência, respeito, solidariedade, ajuda mútua, unidade
29 Corpos ou grupos intermediários conceituam-se como entidades que associam pessoas li-
gadas por um interesse, para obtenção de determinada nalidade. Distinguem-se da simples
sociedade, associação ou fundação, em virtude do vínculo que une seus integrantes, de forma a
constituir um corpo. No que se refere à família, assim dene a Centesimus annus, n. 13: “A na-
tureza social do homem não é plenamente satisfeita no Estado, mas se realiza em vários grupos
intermediários, começando com a família e incluindo grupos econômicos, sociais, políticos e
culturais que se originam a partir da própria natureza humana e que têm autonomia própria,
sempre levando em conta o bem comum”.
45
o casamento. o direito de família à luz da dignidade humana
protetora etc, cujas sementes transformadoras recebeu daquelas mesmas co-
munidades familiares.
Não é apenas a família que cria regras de conduta à sociedade, mas esta,
situando-se acima da desarmonia das agregações familiares, estabelece, igual-
mente, as normas do dever ser, o que caracteriza uma das origens primeiras
da lei civil. As sociedades assim constituídas desenvolvem paralelamente dois
poderes fundamentais para o governo das pessoas, o político e o jurídico, os
quais, desde de tempos imemoriais, sempre conviveram em tensão pendular:
ora predominando o poder político (freqüentemente por meio da força e da
violência, que conduz coercitivamente os súditos do governante), ora prevale-
cendo o poder jurídico (mais evidente nos estágios democráticos das cidades
gregas, na República romana ou no período medieval europeu).
O Estado é originário desta tensão criadora: de um lado deve possuir
a potestas, para estabelecer e manter a ordem na sociedade, de outro a aucto-
ritas, para dar aos cidadãos, componentes da civitas, a necessária segurança
jurídica para não serem esmagados pelo Leviatã que, anal, acabaram de criar
para lhes servir30. Enquanto a sociedade é um ente necessário por natureza31,
composto de pessoas, o Estado é uma criação, um artefato da sociedade, uma
estrutura materializada em governo(s), a que se reconhece, não obstante, o
caráter incontestável de instituição.
Em síntese, como instituição natural, a família é elemento constitutivo da
sociedade, pelo fundamento antropológico que faz do homem e mulher seres que
se atraem e se completam naturalmente, e que necessitam se perpetuar pela gera-
ção de lhos. Esta, reciprocamente, se organiza para acolher outros grupos fami-
liares e adequá-los à convivência social digna, respeitosa, criativa, ordenadora de
condutas, solidária, pluralista, sem preconceitos, buscando a harmonia social32.
Para tanto, organiza a forma de governo de si própria, o Estado, seja pela
vontade de um príncipe (tirano, ditador, conquistador), seja pelo pacto social
(democracias).
Idealizado o Estado, hoje, para ser o guardião e o defensor das liber-
dades individuais e o garante do desenvolvimento integral do homem e da
30 Cf. Rafael DOMINGO. Teoria de la “auctoritas”, passim.
31 Cf. Johannes MESSNER. A razão de ser da sociedade. In: Ética social. O Direito natural no
mundo moderno). p. 130s.
32 Cf. Preâmbulo da Constituição Federal de 1988.
Para continuar a ler
PEÇA SUA AVALIAÇÃO