Caso 7. 'Gugu'

AutorAntonio Carlos da Carvalho Pinto
Ocupação do AutorProfessor de Direito Processual Penal. 'Ex' Coordenador de Direitos e Prerrogativas da OAB/SP.
Páginas91-110

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Tratava-se do mais noticiado homicídio debitado ao "Esquadrão da Morte", em face do qual, segundo denúncia do Promotor e "ex" Deputado Federal Hélio Bicudo, um grupo de policiais, sob a liderança, concurso e presença do famoso Delegado Fleury, havia assassinado um marginal, apelidado de "Nego Sete".

Imputou-se ao Delegado Gugu haver puxado o gatilho.

Por razões óbvias, os homicídios do "Esquadrão da Morte" não compadeciam com testemunhas, seja por não haver, seja em razão do conhecido "código do silêncio", derivado de justificável medo.

Neste caso de Guarulhos, contudo, incurialmente, a acusação obteve dois depoimentos acusatórios, nada menos que os testigos de um padre, chamado Geraldo Monzeroll e um investigador, Cleônimes Antunes que, no dia e hora do crime, integrava o bando assassino.

A denúncia contra os delegados, com respaldo das citadas testemunhas, muito mais que alarido, provocou verdadeira comoção social e somente não desaguou em prisões

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preventivas em conta do extraordinário poder de Fleury, mergulhado nos "porões" da Ditadura Militar.

A instrução da ação penal foi extensa, demorada e conturbada, não só em face do crime.

O problema era o juiz da instrução.

O magistrado, depois desembargador, atendia pelo nome Joaquim Braga, não escondia vaidade e até mesmo permitia haurir instabilidade psicoemocional.

Na época, segundo o Código de Processo Penal, ao prolatar a decisão de pronúncia, mandando o réu a júri popular, obrigatoriamente, se expedia mandado de prisão, constrição preventiva denominada "prisão processual de pronúncia".

Avizinhava-se o esperado momento da decisão/despacho de pronúncia e eram dadas como certas as prisões do poderoso Fleury e do meu cliente "Gugu", por isso que a população estava no aguardo do "incêndio do circo".

Nesse clima, sob tal colorido, deu-se a modificação do Código de Processo Penal, vindo a lume a norma denominada "Lei Fleury", de aplicação e vigência imediata, trazendo a liberdade provisória para o bojo do procedimento do júri.

Foi a partir daí que o réu pronunciado, primário, com bons antecedentes e residência fixa, passou poder aguardar o júri, em liberdade.

Como se vê, malgrado objetivasse beneficiar o delegado Fleury, na verdade, essa lei acabou dando efetividade ao

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princípio constitucional da "Presunção de Inocência", ou "Não Culpabilidade" (artigo 5º, inciso LVII, da CF).

Assim, por absurda ironia, o delegado-assassino terminou "libertando" muitos inocentes que aguardavam o julgamento por um ou dois anos sob prisão processual e, ao final, logravam a absolvição.

Primeiro Julgamento:

Enfim, marcou-se o julgamento do coautor, o delegado José Gustavo, vulgo "Gugu".

Preparei-me o mais que pude e estudei tanto o processo que o sabia de cor e salteado.

A testemunha presencial, o padre, certamente por conta de compreensível temor, "se mandou" para a Itália.

No dia do júri, várias ruas foram tornadas de "acesso restrito" e havia fila para ingressar no fórum.

Iniciados os trabalhos, em meio ao interrogatório do réu, um dos jurados "passou mal".

O Juiz-Presidente suspendeu a sessão chamando um médico que, logo, diagnosticou um princípio de infarto do miocárdio, o que evidentemente "melou" o julgamento.

Comentou-se e perquiriu-se: - Será que os jurados foram ameaçados?

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Segundo Julgamento:

Não obstante a Vara de Guarulhos fosse dotada de vários e competentes Promotores, a Procuradoria Geral da Justiça "designou" para atuar nesse segundo julgamento do "Gugu" o Promotor de Justiça Marcos Ribeiro de Freitas, Titular na Comarca de Santos.

A presidência dos trabalhos recaiu na pessoa de um jovem Magistrado, calmo, sereno e independente, qualidades e virtudes que me marcaram até hoje, por isso, com muito gosto, relato a consequência provinda da imparcialidade desse Juiz que, mercê de coragem e rigor técnico, procedeu conforme explico em seguida.

Em meio ao depoimento do investigador Cleônimes, apelidado "Goiano", partícipe do bando (não denunciado por conta da "alcaguetagem") e que afirmava ter visto "Gugu" disparar o tiro mortal, outro policial aproximou-se da bancada defensiva, trazendo à lume a seguinte bomba:

- Que, no dia anterior, véspera do julgamento, havia sido procurado por uma sua parente, funcionária do Hospital do Servidor Público, que lhe havia confidenciado o fato de que o investigador e testemunha apelidado "Goiano", na época do assassinato, era "alcoólatra" e havia sido internado, estando ainda submetido a tratamento psiquiátrico ambulatorial.

Diante da revelação, na minha vez de perguntar, fui direto ao assunto do alcoolismo, da internação e do trata-

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mento psiquiátrico, obtendo resposta positiva a todas as indagações.

Aparte inoportuno:

Nesse momento, o Promotor de Justiça pediu a palavra "pela ordem", requerendo consignação de "protesto", na ata do julgamento, acrescentando que:

Ao ver do acusador, considerando que aquela "novidade" (alcoolismo e tratamento) não estava sequer mencionada no processo, por isso, as informações deveriam ser riscadas dos autos, ou seja, desconsideradas, eis que não estavam comprovadas.

O "Pulo do Gato":

Imediatamente, requeri ao Juiz-Presidente que, em face desse pleito ministerial, fosse decretada a busca e apreensão de toda a documentação do funcionário, obrigatoriamente guardada no Hospital do Servidor Público Estadual.

Postulei ainda imediata expedição de Carta Precatória ao juízo da Corregedoria Judicial da Capital, a ser levada, em mãos, por oficial de justiça da Comarca de Guarulhos, e pelo mesmo funcionário fosse trazida a resposta.

O corajoso e justo Juiz-Presidente deferiu a diligência e suspendeu a Sessão Plenária, até o retorno do oficial de justiça.

Passadas algumas horas, as diligências foram integral-mente cumpridas, os documentos foram trazidos e juntados

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aos autos, comprovando tudo, acerca do vício, dependência e internação psiquiátrica da testemunha acusatória.

"Memória Recente":

Reaberta a inquirição, indaguei a testemunha sobre a conhecida "perda da memória recente", alteração psíquica decorrente de contínua e severa ingestão alcoólica.

Assim, obtive a confirmação do alcoolismo, da internação psiquiátrica e, sobretudo, da...

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