O Caso Raposa Serra do Sol: demarcação de terras indígenas

AutorDaize Fernanda Wagner
Páginas93-160
Capítulo 2
O CASO RAPOSA SERRA
DO SOL
DEMARCAÇÃO DE TERRAS INDÍGENAS
Eu dou bom-dia para todos os meus parentes, Deputados que estão aqui nesta Casa.
Também trazemos a queixa que nós temos no Nordeste, lá de Bahia, os Coroa
Vermelha, Caramuru, não só os Caramuru e Coroa Vermelha, mas todos os pataxós
do sul da Bahia e do Nordeste foram todos prejudicados, porque não tem uma
demarcação e também tem a FUNAI, que tenta toda a vida conversar muito conosco e
não resolve, e eu vivo muito chateado com esse problema, não posso nem dar
assistência aos meus filhos, ao meu povo, por causa do problema que está
acontecendo na aldeia.
Eu gostaria de pedir apoio de todos Deputados e comunidade de boa vontade para
ajudar o índio, parente, toda a comunidade indígena e ao branco também, para que
reconhecessem o nosso direito e fizessem com que o Governo, até mesmo o
Presidente José Sarney, que é o Chefe maior de Brasília, tomasse conhecimento do
nosso problema e da terra dos nossos parentes indígenas, porque a FUNAI está muito
fraca, a FUNAI não está resolvendo o problema então quem sofre é o índio. O índio
está sofrendo muito. Então eu gostaria que nossa terra fosse demarcada porque nossa
terra é nossa vida, a terra indígena é nossa vida, é dela que nós vivemos; nós não
sabemos viver na cidade, a cidade não faz bem.
Outra coisa, esse documento é prova, é testemunha, como na Bahia, na Coroa
Vermelha, toda a vida existiu índio, porque lá nesse lugar foi a primeira missa do Brasil,
em terra firme. Sou vítima desse negócio (e ela aqui também) como todos os meus
parentes lá somos vítimas da primeira missa no Brasil. Agora, aparece esse
documento e nós estranhamos como não é só esse documento, tem mais documento
e mais propostas deles contra nós Pataxós.
Há muito tempo venho lutando, e não falo só por Caramurus, falo por toda a
comunidade indígena que está sofrendo, e onde mexer com índio, mexe comigo
também; então, já estou achando que a FUNAI deve ter mais atenção e proibir esse
povo de negociar com o nosso direito, com a terra do índio, porque se lá é terra do
índio, tem que ser respeitada; eu sou prova de que quando fomos para lá não tinha
ninguém. Aí, a Marinha, o turismo, porque lá é ponto de turista, e todos falavam que
seria bom que houvesse índio para contar a história. Aí, fomos para lá para contar a
história e o turista gostou, achou bom ter um índio que é o legítimo dono para contar a
história de como foi o princípio da exploração do Brasil, porque para nós, ele explorou
toda a Nação indígena. Todo esse tempo, nós vivíamos em paz, de pescaria e de
caçada, com nossos costumes indígenas. Depois bagunçou tudo; índio espalhou, índio
morreu e a FUNAI não resolveu.
Nós gostaríamos que as autoridades tomassem atenção neste ponto e dessem ajuda,
porque nós estamos acostumados a viver na nossa aldeia e lá tem como índio viver.
Eu gostaria que isso ficasse bem claro para que as autoridades pudessem dar o apoio
para nós e demarcassem aquela área, porque ali não pode ser do branco, só pode ser
do nosso povo. Se o turista chegar, pode andar no meio, porque turista não tem
bronca, mas para ajudar o índio, não para explorar o índio, como está explorando. Isso
é o que eu tinha a dizer, no momento aqui.
NELSON SARACURA1
***
Depois da decisão do “caso Krenak”, a demarcação da terra
indígena Raposa Serra do Sol foi a primeira na qual o Plenário do
STF teve a oportunidade de se manifestar sobre o mérito de
demarcação de terras indígenas após a promulgação da CR/88.2
Também por isso o caso ganhou contornos próprios, haja vista que
até então as manifestações da Corte nessa seara limitavam-se,
principalmente, a aspectos processuais, especialmente aqueles
vinculados às discussões de competência.
No que se refere à demarcação da Terra Indígena Raposa Serra
do Sol, mais uma vez, o estabelecimento de normas e suas
interpretações se deu como resposta à necessidade de remediar
uma grave situação de conflito entre os indígenas e os não–índios,
muito mais do que um reconhecimento equitativo de direitos.
(YAMADA; VILLARES, 2010). Mais do que prevenir violação de
direitos indígenas ou declarar seu reconhecimento, o objetivo foi por
fim a um conflito decorrente dessa violação, como se infere da
manifestação dos Ministros em seus votos e como costuma ser a
tônica conducente quando sob análise a chamada “questão
indígena”.
Apontando nessa direção, ilustrativa a constatação da Ministra
Cármen Lúcia no julgamento de caso envolvendo as terras
indígenas dos Pataxós-Hahahãe, no sul da Bahia.3 Disse a Ministra
Cármen Lúcia no início de seu voto:
São 25 volumes de sofrimentos, lágrimas, sangue e mortes. E não se cuida de
uma expressão, mas de mera constatação.
De se afirmar, de pronto, que grande parte dos intensos conflitos (des)humanos
hoje havidos na área em questão nesta ação decorrem de comportamentos
estatais. Não de um ou outro governo, mas de mudanças formuladas em políticas
que não tiveram seguimento, mas tiveram consequências. Consequências na vida
das pessoas, geração após geração, daí decorrendo problemas que foram apenas
se aprofundando e tornando mais difícil a solução.
Foi a União, que pela atuação do Serviço de Proteção ao Índio, nas décadas de 50
e 60, arrendou glebas de terras a particulares, na área da reserva demarcada em
1938; foi o Serviço de Proteção ao Índio, sucedido pela FUNAI, autora da presente
ação, que na década de 60 aquiesceu com a escritura de títulos de domínio,
fazendo dotar de confiança aos arrendatários e posseiros que se estava diante de
comportamentos estatais sérios; foi a União que deixou, em mais de 70 anos, de
homologar a demarcação da reserva, deixando em desvalia os índios que deveria
proteger e fazendo com que passassem a perambular à cata de um território
devidamente afirmado como sendo seu habitat e causando ou permitindo, pelo
menos, os estragos culturais, sociais e econômicos com que eles passaram a
conviver desde então; foi este estado de coisas que trouxe a Brasília, em 1997, o
índio Galdino, um dos líderes da tribo, que acabou martirizado pela ação criminosa
de civis.
É este estado de coisas que faz da área do Sul do Estado da Bahia, nos últimos
tempos, território de violência e medo.
Esta é uma ação na qual voto com um único juízo de certeza: que a necessária e
já muito atrasada prestação da jurisdição importará em solução de Direito, não
necessariamente de Justiça. Todos os que visitei na área, em 2010 e ainda uma
vez em 2011, não se sentirão titulares de Justiça, embora de um direito que
precisa ser aplicado. (BRASIL, 2012a, p. 81)
O excerto acima, bem como o caso Krenak e até mesmo a
própria demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol são
exemplos do observado em grande parte dos conflitos existentes
sobre terras indígenas: é o próprio Estado o responsável pela
violação aos direitos dos indígenas, tanto por ação quanto por
omissão. Em grande medida, o Estado brasileiro se relaciona de
maneira ambígua com os indígenas, pois reconhece sua identidade
étnica para, então, negar os efeitos dela decorrentes, como é o caso
da efetivação dos direitos territoriais.
Esse paradoxo foi bem sintetizado por Kayser (2010, p. 29) ao
constatar “[...] a relação particularmente distanciada, ambivalente,
marcada pela conflituosidade latente, do Estado e da sociedade
nacional para com os indígenas.” Não raro, a estes é atribuída uma
imagem de entrave ao desenvolvimento nacional, por serem
“primitivos” quando comparados com a sociedade envolvente e por
terem direitos que conflitam com interesses contrários,
especialmente de ordem econômica. Outras vezes, são postos
como risco à segurança nacional. Ao longo do tempo, as relações

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