Caso Real de Alteração da Jurisprudência sem Observância da Segurança Jurídica. Ofensa ao Princípio do Estado Democrático de Direito

AutorDaniel Castro Gomes da Costa
Páginas155-176

Page 155

5. 1 Caso COFINS

Em 17 de setembro de 2008, o Pleno do Supremo Tribunal Federal proferiu decisão nos autos dos Recursos Extraordinários 377.457/PR e 381.964/MG, e julgou constitucional o recolhimento da Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social/COFINS concedida às sociedades civis de profissão regulamentada. A decisão reconheceu, ainda, a repercussão geral da matéria, com base no artigo 543B do Código de Processo Civil e rejeitou a modulação de efeitos.

Com efeito, o julgamento carreou uma brusca mudança na jurisprudência, tendo em vista o posicionamento até então consolidado pelo Superior Tribunal de Justiça, que reconhecia a legitimidade da isenção conferida às sociedades civis de profissão regulamentada.

Em face disso, muitos debates foram travados acerca da necessidade de modulação de efeitos para garantir a segurança jurídica dos contribuintes atingidos pela modificação do entendimento e respeitar a boafé dos sujeitos passivos dessa obrigação, os quais pautavam seus planejamentos tributário e financeiro no entendimento consolidado pela jurisprudência e súmula do Superior Tribunal de Justiça.

Para melhor compreensão da controvérsia, é necessária uma breve análise histórica acerca da evolução e dos posicionamentos adotados pelas Cortes.

Validamente, as discussões sobre a legitimidade ou não da cobrança da Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social/COFINS em face das sociedades civis de profissão regulamentada, iniciaramse

Page 156

com a promulgação da Lei n. 9.430/96 que, em seu artigo 561, revogou expressamente a isenção concedida pelo artigo 6o2 da Lei Complementar n. 70/91, para sociedades civis descritas no artigo 1º do DecretoLei n. 2.397/87.

Em análise específica, notase que o art. 56 da Lei n. 9.430/96 estabeleceu que as sociedades civis de prestação de serviços de profissão legalmente regulamentada passariam a contribuir em benefício da seguridade social, para o que seria utilizada de parâmetro a receita bruta da prestação de serviços realizada, com as ressalvas da Lei Complementar n. 70, de 30 de dezembro de 1991.

A Lei Complementar mencionada anteriormente, por sua vez, prevê, no art. 6º, inciso II, que as sociedades civis acobertadas pelo art. 1º do DecretoLei n. 2.397, de 21 de dezembro de 1987, são isentas da contribuição. Conjuntamente, o aludido DecretoLei prescreveu que, desde o exercício financeiro de 1989, não incidiria imposto de renda nas pessoas jurídicas sobre o lucro apurado, no encerramento de cada períodobase, às sociedades civis de prestação de serviços profissionais relativos ao exercício de profissão que esteja regulamentada na forma da lei, com o devido registro no registro civil das pessoas jurídicas e àquelas constituídas, de maneira exclusiva, por pessoas físicas domiciliadas no país.3A referida revogação gerou polêmica e ensejou muitos debates acerca da possibilidade de Lei Ordinária (Lei n. 9.397/96) revogar Lei Complementar (LC n. 70/91). Isso porque, apesar de inexistir hierarquia

Page 157

constitucional entre lei complementar e ordinária, elas se caracterizam como espécies normativas formalmente distintas (processo legislativo) e possuem campos de abrangência específicos determinados pela Constituição Federal4.

Por essa razão, discutiuse acerca da constitucionalidade da revogação da referida isenção tributária, prevista em lei complementar, pela superveniência de lei ordinária, tendo em vista que a isenção do recolhimento de COFINS, apesar de ter sido formalmente regulada por lei complementar, não é matéria reservada a essa espécie legal, pois não está

Page 158

incluída no rol taxativo disposto no artigo 146 da Constituição Federal5, situação que, pela corrente doutrinária seguida pelo STF6e defendida por Celso Ribeiro Bastos, Michel Temer e Roque Antonio Carrazza, caracterizalhe como norma materialmente ordinária.

O Superior Tribunal de Justiça, em sentido contrário, defendia que havia hierarquia entre as normas ordinárias e complementares, tendo em vista o tratamento qualificado conferido à lei complementar pela Constituição Federal, que faz com que ela mantenha sua superioridade hierárquica mesmo quando disciplinar matérias sujeitas à normatização por lei ordinária e, por isso, a aludida revogação seria inconstitucional, porquanto feria o princípio da hierarquia das leis, entendimento apoiado, à época, pela doutrina de Manuel Gonçalves Ferreira Filho7, José Afonso da Silva, Nelson Sampaio Pontes de Miranda, Geraldo Ataliba, Wilson Accioli e Alexandre de Morais.

Page 159

Anos depois de esse entendimento do Superior Tribunal de Justiça restar pacificado, fato que até ensejou a edição da Súmula n. 276, o Supremo Tribunal Federal alterou esse posicionamento, com base na sistemática do art. 543C do CPC, depois de o seu Tribunal Pleno decidir, no julgamento do RE n. 377.4573/PR, por maioria, pela inexistência de relação hierárquica entre lei complementar e lei ordinária8.

A seguir, será demonstrado de forma mais detalhada o progresso jurisprudencial atinente à exigibilidade da COFINS em face das sociedades civis de prestações de serviços profissionais relativos ao exercício de profissão legalmente regulamentada.

5.2. Entendimento Consolidado do Superior Tribunal de Justiça

Durante muito tempo foi pacífico no Superior Tribunal de Justiça o entendimento segundo o qual as sociedades civis eram isentas do paga

Page 160

mento da COFINS. Para isso era defendida a tese da inconstitucionalidade do artigo 56 da Lei n. 9.430/96, por violar o princípio da hierarquia das leis, em razão da impossibilidade de lei ordinária revogar lei complementar9.

Em razão da consolidação do referido entendimento pelo Superior Tribunal de Justiça, a Fazenda Pública elaborou mecanismos com vistas a obstaculizar a concessão de benefícios, e passou a utilizar o argumento de que fariam jus à referida isenção somente as sociedades profissionais enquadradas na forma de tributação do IRPJ, prevista no DecretoLei n. 2.397/87, regime de tributação extinto pelo art. 56 e parágrafo único da Lei n. 9.430/93, que determinou que10, a partir do mês de abril de 1997, as "sociedades civis de prestação de serviços de profissão legalmente regulamentada passariam a contribuir para a seguridade social com base na receita bruta da prestação de serviços".11Diante desse novo argumento, o Superior Tribunal de Justiça, depois da análise de diversas controvérsias, firmou o entendimento de que

Page 161

o gozo da isenção prevista na Lei Complementar n. 70/91 independia do regime tributário adotado pela sociedade profissional, tendo em vista que, além da inconstitucionalidade da norma revogadora, a isenção prevista no inciso II do artigo 6º da LC n. 70/9112abarcaria todas as sociedades civis que possuíssem como finalidade a prestação de serviços profissionais relativos ao exercício de profissão legalmente regulamentada, registradas no registro civil das pessoas jurídicas e constituídas exclusivamente por pessoas físicas domiciliadas no país.13Esse também era o entendimento de Hugo de Brito Machado14, que afirmava que a referida isenção não decorria do regime de tributação dos rendimentos das sociedades profissionais.

Page 162

Depois de repetidas decisões nesse sentido, foi editada pela Primeira Seção daquela Corte, no dia 14/5/2003, a Súmula n. 276, segundo a qual "as sociedades civis de prestação de serviços profissionais são isentas da Cofins, irrelevante o regime tributário adotado."15Um dos precedentes da referida Súmula foi o AgRg no REsp n. 253.98416(RS), de relatoria do Ministro José Augusto Delgado, julgado

Page 163

em 3/8/2000 pela Primeira Turma do STJ, a qual utilizou por fundamento tanto a inconstitucionalidade da norma revogadora quanto a indiferença do regime tributário adotado para a isenção prevista no art. 6º, II da LC 70/91.

A ilação extraída do referido entendimento jurisprudencial, mesmo da Súmula n. 276/STJ, é de que existiam duas orientações veiculadas em seu texto. Uma de que o gozo da isenção subjetiva conferida pela Lei Complementar n. 70/91 independia do regime adotado pelo sujeito passivo, e a outra de que a isenção, por ter sido concedida por lei complementar, não poderia ser revogada pela Lei n. 9.430/96, porquanto essa norma seria hierarquicamente inferior àquela.

Na mesma época, o Supremo Tribunal Federal entendia que a revogação ou não da norma isentava, referiase ao princípio da hierarquia das normas apenas por via reflexa e, portanto, não admitia recurso extraordinário, por se tratar de matéria infraconstitucional, de competência do Superior Tribunal de Justiça, nos termos do artigo 105, inciso III, alíneas "a", "b" e "c", da Constituição Federal.17Em razão desse entendimento, todos os recursos extraordinários interpostos contra as decisões que julgavam a validade da isenção não eram admitidos, conforme pode ser verificado por meio de arestos do Superior

Page 164

Tribunal de Justiça, dentre os quais o Recurso Especial n. 154.532/MG18, relator Ministro Francisco Peçanha Martins e relatora para elaboração do acórdão Ministra Eliana Calmon.

Diante de tal situação, a discussão acerca da inconstitucionalidade da norma que revogou a isenção permaneceu por muito tempo adstrita ao Superior Tribunal de Justiça e sujeita ao entendimento consolidado naquela Corte, vindo a ser revista somente depois de o Supremo Tribunal Federal modificar seu posicionamento acerca da competência para análise da questão, que passou a ser considerada matéria constitucional19.

Esse novo entendimento permitiu ao Supremo Tribunal Federal conhecer os Recursos Extraordinários ns. 377.457/PR e 381.964/MG, inter

Page 165

postos contra decisões das instâncias inferiores que reconheciam a revogação da isenção, por meio dos quais proferiu...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT