A catedral, o bazar e o condominio: um ensaio sobre o modelo de negocio do software livre.

AutorFinkelfarb Lichand, Guilherme
CargoEnsaio--Tecnologia da Informação
  1. INTRODUÇÃO

    A conceituação de software livre como não comercial, ainda que amplamente difundida, tem sido gradualmente revertida num período curto de tempo. Corroboram esse resultado movimentos como a substituição do termo free pelo francês libre -- o que explicita o caráter libertário do termo em detrimento da ilusória gratuidade do produto -- e a aderência de algumas firmas ao open source software como parte integrada de seu modelo de negócio.

    Entretanto, permanece difusa a possibilidade de adotar o F/LOSS como objeto de estratégia competitiva, em especial por suas implicações econômicas, pouco exploradas no universo multifacetado de contratação de software. Adicionalmente, a questão relativa à estrutura organizacional que melhor se adapta aos atributos tecnológicos, comerciais e sociológicos de um modelo de negócio pautado no F/LOSS carece de abordagem mais aprofundada na literatura que avança rapidamente sobre esse fenômeno, tido por alguns autores como uma ruptura do entendimento das fronteiras da firma na análise econômica.

    Portanto, este artigo tem como objetivo apresentar o software livre como objeto viável de estratégia de comercialização no mercado de software, demonstrando que o F/LOSS (Free/Libre Open Source Software) emerge como alternativa de modelo de negócio nos segmentos em que o software livre apresenta vantagens competitivas sobre o software proprietário.

    Um debate recorrente na literatura sobre essa tecnologia refere-se à sua denominação: free software ou open source software. Se, de um lado, a primeira forma é utilizada por alguns autores com uma conotação político-ideológica, em resposta ao oligopólio das gigantes produtoras de software, de outro a segunda expressão estaria relacionada exclusivamente ao seu significado econômico e aos aspectos tecnológicos dessa produção.

    Como nenhum dos dois fatores pode ser desconsiderado sem a adoção de um viés ideológico, utilizaremos de forma abrangente o termo Free/Libre Open Source Software (F/LOSS) ao longo do presente estudo. Conforme discute Cezar Taurion (2004), a abordagem pretendida considera o software livre como modelo de negócio, em detrimento de "tecnicismos ou passionalismos".

    Nas próximas seções apresentamos uma discussão detalhada à luz da teoria econômica sobre as implicações da ascensão do F/LOSS no mercado de software e sobre as particularidades associadas a esse modelo de negócio.

    Na seção 2 são detalhadas as dimensões básicas do software livre e explicitados alguns conceitos tecnológicos e definições de licenciamento; na seção 3 abordamos a questão da viabilidade do software livre como modelo de negócio, avaliando as implicações da adoção dessa estratégia de produção; na seção 4 a discussão recai sobre os modelos de desenvolvimento de software: aberto, proprietário e híbrido, com especial ênfase nos aspectos relativos à Economia dos Custos de Transação e à Economia da Informação. Com relação ao modelo híbrido de desenvolvimento, discorremos sobre suas potencialidades e limitações em relação às demais estratégias competitivas; seguem-se as considerações finais, na seção 5.

  2. CONCEITOS ECONÔMICOS E TECNOLÓGICOS DO OPEN SOURCE

    2.1. Software Livre e Software Proprietário

    Software Livre é o software cujo código-fonte pode ser livremente acessado. O código-fonte é uma linguagem de computação escrita pelos programadores, com os comandos que determinam o funcionamento dos aplicativos. Quando um programa é compilado para se tornar um programa em funcionamento, esse código é embaralhado e se torna ilegível.

    O modelo dominante de comercialização de software, chamado de software proprietário, é dito fechado, uma vez que é distribuído apenas em código binário, legível somente pelos desenvolvedores da empresa proprietária. A esta também é reservado o direito de proibir ou liberar seu uso, cópia ou redistribuição, de acordo com seu interesse e práticas comerciais.

    O modelo proprietário surgiu quando se desenvolveu a indústria de TI e os softwares adquiriram valor de comercialização. No início do desenvolvimento da indústria de informática o valor real estava nas próprias máquinas, porque havia poucos computadores, e não nos programas, de maneira que os softwares eram gratuitos e livremente distribuídos em formato fonte. Quando os softwares passaram a constituir indústria separada do hardware, emergiu um campo de negócios bilionário e as empresas começaram a buscar mecanismos de proteção da propriedade intelectual. Constituindo o próprio conhecimento do programa, o código-fonte passou a ser protegido. Assim, o software proprietário surgiu para preencher uma necessidade legítima do mercado (TAURION, 2004).

    Um programa é software livre se os usuários são livres para acessar seu código-fonte, alterá-lo e redistribuir cópias, com ou sem modificações, de graça ou cobrando uma taxa pela distribuição, para qualquer um em qualquer lugar (1). Ser livre para fazêlo significa, entre outras coisas, que não é necessário pedir ou pagar pela permissão.

    É importante destacar que software livre não significa de domínio público, mas sujeito a licenciamentos que, em maior ou menor grau, permitem a liberdade de usar, copiar, modificar e redistribuir o programa.

    "Software Livre" não significa "não comercial" ou gratuito. Um programa livre deve estar disponível para uso comercial, desenvolvimento comercial e distribuição comercial, normalmente com custos reduzidos, uma vez que estes são diluídos entre todos que contribuem com a comunidade do Software Livre, não havendo necessidade de recuperação desse custo por meio da licença de uso.

    A questão central do F/LOSS relaciona-se à sua dinâmica de desenvolvimento. A formulação de software livre relaciona-se, tradicionalmente, a comunidades de desenvolvedores; sendo assim, um serviço de desenvolvimento pode ter acesso aos diversos módulos disponibilizados com código aberto e executar as implementações necessárias. Ao final do serviço, o novo código é devolvido à comunidade de desenvolvedores e aos usuários.

    2.2. Catedral e Bazar

    No artigo cujo título dá nome a esta seção, Eric Steven Raymond (2000) distingue dois modelos de desenvolvimento de software: o modelo proprietário, cujo processo produtivo, isolado e centralizador se dá nos mesmos moldes da construção de uma catedral, e o modelo de desenvolvimento aberto, que reúne diversas agendas e abordagens e aceita contribuições indiscriminadas, da mesma forma que o mecanismo de constituição de um bazar.

    Ao contrário da formalidade e do planejamento presentes no modelo catedral, que tem definição de implantação do software em fases, o bazar não prevê planejamento da execução; não há etapa de desenho e este só fica evidente para a comunidade depois da elaboração de algumas versões.

    Outras características próprias do bazar são a presença de lideranças que emergem naturalmente, a revisão e a seleção dos códigos feita pelos próprios pares, o ritmo de desenvolvimento dado pela disponibilidade de tempo e a contribuição voluntária dos desenvolvedores.

    Para compensar as incertezas do modelo de contribuição voluntária, as comunidades desenvolvedoras adotam alguns mecanismos como a presença de um mantenedor, que é o líder; direcionamento de tarefas mais complexas aos desenvolvedores mais experientes; controle de versões por meio de softwares apropriados, a fim de verificar quais versões estão prontas para a apresentação; modularidade, a fim de permitir o trabalho simultâneo de vários colaboradores; e definição de regras claras de codificação, para garantir homogeneidade no código.

    2.3. Open source x Software proprietário

    A força de expansão do software livre no panorama recente fomenta muitas vezes a idéia de que o F/LOSS substituirá por completo o software proprietário. O modelo tradicional de software tem seu desenvolvimento muitas vezes pautado pela estratégia do fornecedor, que constantemente cria novas funcionalidades, em geral dessintonizado das necessidades dos usuários, além de um processo de "obsolescência programada" (TAURION, 2004) e uma possível incompatibilidade das novas versões com as anteriores, impedindo a aquisição de versões anteriores, ainda que atendam perfeitamente às necessidades do usuário.

    Todavia, a opção pelo software livre fica limitada pelo aprisionamento gerado pelos elevados custos de troca dos softwares proprietários, seja em razão da compatibilidade com a base de dados estabelecida, seja pela necessidade de retreinamento do pessoal.

    Outro fator que inibe a adoção do Software Livre é que muitos softwares são de domínio de conhecimento restrito ou envolvem questões estratégicas. Nesse sentido, na visão de Taurion (2004) e Whang (1992), empresas monopolistas ou líderes em seus mercados tendem a adotar padrões proprietários, no intuito de manter sua posição. Em contrapartida, empresas que estejam em busca de competitividade e renovação constante tendem a optar pelo software livre, com maior flexibilidade para ajustes aos processos.

    2.4. Modelo de licença e modelo de negócio

    A prática do F/LOSS engloba duas dimensões distintas: modelo de negócio e modelo de licenciamento, este último com implicações relevantes na esfera econômica.

    Há diversas modalidades de licença. Algumas incorporam o princípio da reciprocidade -- que estabelece que qualquer desenvolvimento a partir de um código licenciado nesses termos deve, quando o código for distribuído, empregar as mesmas definições legais do código original --, mas outras não.

    As mais expressivas licenças de cada grupo são, respectivamente, a GNU Public License (GPL) e a Berkeley Software Distribution License (BSD), segundo Fink (2003). Se, por um lado, a BSD é tida como modelo 'liberal' de licenciamento -- uma vez que permite tanto que qualquer peça de código derivada de um trabalho fundamentado nessa licença seja utilizada sem quaisquer obrigações adicionais, quanto a liberdade do usuário de exibir ou não o código-fonte quando este for distribuído, abrindo espaço para a sua comercialização --, por...

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