A Categoria Jurídica de ?Consumidor-Criança' e sua Hipervulnerabilidade no Mercado de Consumo Brasileiro

AutorDiógenes Faria de Carvalho/Thaynara de Souza Oliveira
CargoCoordenador da pós-graduação em Direito do Consumidor da Universidade Federal de Goiás/Advogada
Páginas207-230

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1. Introdução

Nas sociedades contemporâneas, as crianças tornaram-se destinatárias de bens no mercado de consumo, dando azo ao surgimento de um expressivo mercado especializado. Não há dúvidas, portanto, que os infantes passaram a se inserir no mercado como verdadeiros consumidores.

Sem embargo, a questão que se coloca é como exatamente a criançaconsumidora se insere nas relações de consumo. E, ademais, questiona-se se é possível afirmar que o direito brasileiro acolhe a hipervulnerabilidade dessa categoria de consumidor.

A fim de responder estas questões, analisaremos a relação de consumo no direito brasileiro, propondo uma definição de consumidor-criança e, após lançar as bases para a compreensão da vulnerabilidade nas relações consumeristas, apresentaremos os fundamentos da hipervulnerabilidade das crianças no mercado de consumo e o seu reconhecimento no direito brasileiro.

2. A relação jurídica de consumo no direito brasileiro e a definição de consumidor-criança

O âmago do direito do consumidor, segundo Calais-Auloy, é constituído por regras que correspondem cumulativamente a dois critérios: primeiro, a aplicação delas é reservada às relações entre profissional e consumidor e, em segundo lugar, a meta delas é proteger o consumidor1.

Assim, a aplicação deste ramo especializado do direito está restrita à relação entre profissional e consumidor, quer dizer, à relação de consumo, sempre com vistas a proteger a parte mais fraca. Neste ínterim, a Constituição da República do Brasil separou as relações de consumo do universo das relações jurídicas e as destinou ao Código de Defesa do Consumidor (CDC)2. De acordo com Sergio Cavalieri Filho, “esse, destarte, é o campo de incidência do Código do Consumidor – as relações de consumo qualquer que seja o ramo do direito onde elas venham a ocorrer – público ou privado, contratual ou extracontratual, material ou processual”.

A relação de consumo é “aquela que, tendo natureza contratual ou extracontratual, seja travada entre fornecedor e consumidor, tendo por objeto a circulação de produtos e serviços”3, na conceituação de Bilhalva.

Como se vê, a relação em comento se define primordialmente por seus sujeitos e, portanto, no caso do direito do consumidor, o exercício de

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definir quem é o sujeito ou quem são os sujeitos da relação contratual e extracontratual é que vai definir o campo de aplicação da lei, isto é, a que relações ela se aplica. Nesse sentido, Claudia Lima, ao tratar do campo de aplicação do CDC, ensina:

O diferente no CDC é o seu campo de aplicação subjetivo (consumidor e fornecedor), seu campo de aplicação ratione personae, uma vez que materialmente ele se aplica em princípio a todas as relações contratuais e extracontratuais (campo de aplicação ratione materiae) entre consumidores e fornecedores4.

Daí exsurge a relevância do estudo dos conceitos de fornecedor e consumidor no âmbito do CDC, até mesmo com vistas a compreender como a criança se insere na relação jurídica de consumo e, em última análise, no mercado de consumo brasileiro.

2.1. As definições de fornecedor no CDC

Dentre as principais inovações trazidas pelo CDC, a doutrina elenca a formulação de um conceito amplo de fornecedor, incluindo, a um só tempo, todos os agentes que atuam, direta ou indiretamente, no mercado de consumo5, não fazendo o legislador distinção de sua natureza, regime jurídico ou nacionalidade.

O CDC, em seu art. 3º, caput6, se refere a fornecedores pensando em todos os profissionais da cadeia de fornecimento (de fabricação, produção, transporte e distribuição de produtos e da criação e execução de serviços). Nesse passo, fornecedor é quem de forma ampla oferece produtos e serviços no mercado de consumo, não importando a tarefa assumida nesse universo.

Miragem assinala que o legislador, ao dizer que fornecedor é aquele que desenvolve atividades, permite interpretar o conceito vinculado a uma certa habitualidade. Na esteira desse entendimento, o autor consigna que “ainda que não esteja expresso na lei, ao indicar à atividade do fornecedor certa habitualidade, assim como a remuneração, o legislador remete ao critério de desenvolvimento profissional dessa atividade”7. A noção de profissionalismo, segundo o referido jurista, está vinculada a um conhecimento especial sobre a atividade que é exercida (o que denota uma superioridade em termos de conhecimento do produto ou serviço em relação ao consumidor) ao mesmo tempo em que revela a natureza econômica dessa atividade (pois o fornecedor, ao exercer a atividade com caráter profissional, visa determinada vantagem econômica).

No mesmo sentido, Bonatto e Moraes salientam que, além de haver remuneração pelo desenvolvimento da atividade por parte do fornecedor,

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é imprescindível que a atuação desse sujeito tenha continuidade e duração (e, por conseguinte, habitualidade) e seja organizada, o que sinaliza para importância do conceito de profissionalidade, “já que somente se organiza para a consecução de um resultado lucrativo quem possui tal intento”8.

Isso posto, pode-se dizer que fornecedor “é, em síntese, todo aquele que oferta, a título singular e com caráter de profissionalidade – exercício habitual do comércio – produtos e serviços ao mercado de consumo, atendendo, assim, às suas necessidades”9.

2.2. As definições de consumidor no CDC

A conceituação de consumidor no Código do Consumidor é bem ampla, abarcando relações de consumo contratuais e extracontratuais, individuais e coletivas. Existem, essencialmente, quatro dispositivos que definem o sujeito em comento (art. 2º, caput e parágrafo único, art. 17 e art. 29), os quais serão adiante analisados.

O art. 2º, caput, positiva o conceito do consumidor padrão ou standard ao enunciar que consumidor “é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final”. Da leitura desse dispositivo legal, observa-se que a única característica restritiva do conceito em apreço é a aquisição ou utilização do bem como destinatário final. Mister, portanto, refletir sobre a expressão ‘destinatário final’.

Nos manuais de direito do consumidor, vislumbra-se a existência de duas correntes doutrinárias concernentes à definição de consumidor, a saber, finalista e maximalista.

De acordo com a interpretação finalista, a expressão ‘destinatário final’ deve ser entendida de maneira restrita como destinatário fático (retirar o produto da cadeia de produção) e econômico (não adquirir o bem para revenda ou uso profissional), seja ele pessoa jurídica ou física. Neste orbe, considera-se consumidor apenas aquele sujeito não profissional, que adquire o produto para uso próprio ou familiar10, a fim de se coadunar com a tutela de um grupo especial de pessoas verdadeiramente vulneráveis. Trata-se de uma interpretação teleológica que visa, sobretudo, restringir o campo de aplicação do CDC àqueles que necessitam de proteção, isto é, apenas aos vulneráveis no caso concreto.

De outra parte, segundo a hermenêutica maximalista, a definição do art. 2º deve ser interpretada de maneira ampla, a fim de que o CDC, enquanto código geral de consumo que institui normas para todos os agentes do mercado, seja aplicado ao maior número de relações. Para esta corrente,

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destinatário final seria o destinatário fático do produto ou serviço, aquele que o retira do mercado e o utiliza.

Essa exegese maximalista apresenta um grande problema na visão de Claudia Marques, qual seja, transforma o direito do consumidor em direito privado geral. A jurista alerta que não há razão para proteger o compradorprofissional ou um fornecedor frente a outro, por se tratar de relações entre iguais, as quais são bem reguladas pelo diploma civil.

Na esteira deste mesmo entendimento, Sodré assinala que “a aplicação das leis de defesa do consumidor para casos em que a vulnerabilidade não é patente banaliza o próprio direito do consumidor”11.

O Superior Tribunal de Justiça (STJ), após inúmeras discussões, se posicionou favorável à interpretação finalista, tendo inclusive criado o chamado finalismo aprofundado. Essa nova hermenêutica é ainda mais alicerçada na noção de vulnerabilidade do consumidor, no exame das circunstâncias do caso concreto, além das equiparações a consumidor positivadas no CDC. Por oportuno, traz-se à colação esclarecedor julgado do STJ, litteris:

Direito do consumidor. Recurso especial. Conceito de consumidor. Critério subjetivo ou finalista. Mitigação. Pessoa jurídica. Excepcionalidade. Vulnerabilidade. Constatação na hipótese dos autos. Prática abusiva. Oferta inadequada. Característica, quantidade e composição do produto. Equiparação (art. 29). Decadência. Inexistência. Relação jurídica sobre a premissa de tratos sucessivos. Renovação do compromisso. Vício oculto. – A relação jurídica qualificada por ser “de consumo” não se caracteriza pela presença de pessoa física ou jurídica em seus polos, mas pela presença de uma parte vulnerável de um lado (consumidor), e de um fornecedor de outro. – Mesmo nas relações entre pessoas jurídicas, se da análise da hipótese concreta decorrer inegável vulnerabilidade entre a pessoa-jurídica consumidora e a fornecedora, deve-se aplicar o CDC na busca do equilíbrio entre as partes. Ao consagrar o critério finalista para interpretação do conceito de consumidor, a jurisprudência deste STJ também reconhece a necessidade, em situações específicas, abrandar o rigor do critério subjetivo do conceito de consumidor, para admitir a aplicabilidade do CDC nas relações entre fornecedores e consumidores-empresários em que fique evidenciada a...

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