O cavaleiro negro em Tropa de Elite: arqu

AutorDe Matos, Marcus V.A.B.

Introdução

A soberania do estado é um paradoxo fundante nas teorias do direito e da constituição, e tem sido constantemente ressignificada ao longo da história, para servir a interesses políticos diferentes--e frequentemente contraditórios. Considerada como um atributo do estado, ou de seus representantes, a soberania já foi descrita como "um alvo móvel" (1), sempre capaz de assumir novos contornos e significados. Direito e Estado, justificados pela emergência de uma teoria moderna da soberania, foram historicamente descritos através da razão e da razoabilidade, porém nunca deixaram de ser construídos de maneira fictícia. Essa relação fundacional entre direito, estado e ficção é claramente expressa nas suas bases filosóficas mais conhecidas, que podem ser descritas como um exercício racional de fantasia, baseado em monstros marinhos bíblicos (O Leviatã); situações pré-históricas hipotéticas (O Estado de Natureza); e acordos universais impossíveis com validade infinita (O Contrato Social).

Não é, então, por coincidência, que os juristas já foram comparados aos artistas, e que a função decisória exercida por juízes tenha sido comparada àquela realizada por pintores que desenham dentro de uma moldura (2). A soberania também já foi discutida como um duplo, que abarcaria as categorias de espaço e tempo, sujeito e objeto, súditos e soberanos, reis e condenados (3), e descrita através dos efeitos das decisões soberanas. (4) Mais recentemente, esse debate incorporou também uma virada dos paradigmas espaço-temporais, para uma abordagem visual. Essa mudança incluiu uma gama de pesquisas sobre como a soberania poderia ser vista, ou representada, no corpo e nas ações "do soberano"--que agora passava a ser compreendido como uma pessoa, ou uma instituição, capaz de personificar, ou incorporar, a soberania. (5)

Neste artigo, estas abordagens sobre a soberania serão discutidas a partir de métodos desenvolvidos nos campos do direito e literatura, direito e psicanálise, e direito e cinema, para visualizar o que é a noção que compreendemos contemporaneamente como soberania. Para isso, será desenvolvida uma investigação visual da ideia de soberania, tomando-a não apenas como um conceito fundante da teoria do direito, mas também como um "tropo": uma espécie particular de figura de linguagem, uma narrativa metafórica, alegórica, e ilustrada; capaz de ser modernizada, porém, mantendo suas características iniciais; um discurso fundacional e colonizador, capaz de institucionalizar seus próprios súditos como sujeitos de direito subalternos. (6) Para criar aproximações entre teoria e tropo, esse artigo fará uso de uma estratégia de pesquisa visual: investigar o conceito de soberania através de evidências coletadas na cultura popular. Trata-se de uma investigação sobre um arquétipo que emergiu, repetidamente, na história da cultura ocidental, mas que nunca foi completamente explorado na teoria política e do direito: a figura do cavaleiro negro. Este artigo busca abordar estes temas a partir da dimensão psicanalítica da noção de soberania, questionando suas bases racionais na filosofia do direito e na fundação do Estado Moderno.

Em específico, este artigo se concentrará na construção da personagem Capitão Nascimento, no filme Tropa de Elite (2007), de José Padilha, e na maneira como este filme atualizou o arquétipo do cavaleiro negro, trazendo-o para dentro do regime visual da "guerra particular" do Rio de Janeiro na década de 1990. O objetivo geral aqui é contribuir para uma releitura da teoria da soberania a partir da construção de uma genealogia do arquétipo do cavaleiro negro na cultura ocidental. Esta figura apareceu repetidamente tanto na história quanto na ficção, e se mostra com um objeto privilegiado para análise da relação alegórica entre líderes políticos e personagens fictícios que os inspiraram, ou que representaram.

Uma primeira premissa implícita nessa proposta é a de que estas imagens devem ter o mesmo status, na teoria do direito e do estado, que aquelas que são frequentemente aceitas como contorno para a noção de soberania--como a capa de um livro que supostamente justifica todo o exercício do poder estatal; (7) a explicação fundante de uma civilização colonial; (8) ou nas figuras de linguagem utilizadas por juízes em decisões--metáforas, paráfrases, ironias, analogias e paradoxos. (9) Para alcançar tal objetivo, este artigo examinará a problemática relação entre o direito e as imagens de soberania produzidas pelo cinema popular contemporâneo. Essa abordagem se baseará em propostas teóricas que buscaram construir um método iconocrítico para analisar os embricamentos entre estética e autoridade nos regimes visuais contemporâneos. O argumento é o de que as imagens produzidas pelo cinema popular--que são posteriormente compartilhadas e multiplicadas na internet e na mídia--constituem um regime estético (visualidade) e, ao mesmo tempo, uma condição de possibilidade (visibilidade) para o exercício da autoridade em seu nível máximo: a decisão soberana sobre a vida. (10) Dessa forma, este texto busca contribuir com as pesquisas em direito e cinema que investigam as fundações paradoxais do poder jurídico, no seu exercício e em suas violações.

Como parte dos seus objetivos específicos, este artigo vai aplicar esta teoria a um regime visual produzido no Rio de Janeiro, na década de 1990, conhecido como "Guerra Particular". No entanto, nosso interesse não será no contexto deste regime em si, mas sim nos discursos que o fizeram ganhar nova vida, contemporânea, a partir das imagens e narrativas produzidas em Tropa de Elite (2007). O filme de José Padilha é certamente importante para compreender a reaparição de um discurso conservador na política brasileira, baseado na retórica da "Guerra Particular". Este artigo vai discutir, a partir deste filme, e da construção da personagem Capitão Nascimento como um cavaleiro negro, as condições de possibilidade da virada conservadora em curso no país, examinando imagens, discursos e narrativas produzidos em Tropa de Elite.

Outra hipótese aqui é que o estilo cinematográfico de José Padilha, que pode ser considerado como um "realismo mágico", produziu imagens e discursos que saíram do controle dos diretores e produtores do filme. Uma das possíveis explicações para este fenômeno, é que talvez ele tenha acessado um arquétipo de uma memória reprimida que é constituinte do inconsciente coletivo, no sentido desenvolvido por Carl Jung (11): os cavaleiros negros, soldados decaídos que buscam garantir a segurança e a sobrevivência da sociedade e de suas instituições. A emergência deste arquétipo pode ser um elemento fundamental na con-fusão entre realidade e ficção provocada por esta obra. Ela também pode ajudar a explicar como as práticas de soberania representadas nas imagens e discursos deste filme (tortura, vigilância, desaparecimento de cadáveres), se ressignificaram na emergência de um discurso reprimido desde 1985: a defesa da ditadura militar e de ideias fascistas no Brasil. O regime visual da Guerra Particular, ressignificado durante a Guerra ao Terror, pode ter sido chave para a reaparição de discursos políticos de extrema direita (e fascistas) no país.

O arquétipo do cavaleiro negro como um fóssil contemporâneo

Para visualizar o exercício da soberania na prática, proponho observá-la em sua forma limite, ou seja, no exercício do poder soberano para além dos limites jurídicos e constitucionais, na forma do que se convencionou chamar de Estado de Exceção. Para isso, vamos nos valer tanto da noção de arquétipo, associada ao conceito de dispositivo. Já argumentei que é possível compreender o filme Tropa de Elite como um "dispositivo midiático" do Estado de Exceção, no sentido proposto por Giorgio Agamben. (12) Proponho aqui observar nosso objeto específico, um filme, em suas imagens e discursos, também a partir do modo como Agamben compreende o que é "o contemporâneo". O filme seria, então, um lócus privilegiado para investigar este dispositivo contemporâneo. A contemporaneidade seria, por sua vez, marcada por uma particular relação com o tempo, que adere a ele através de uma "dissociação" e de um "anacronismo". Neste sentido, seria preciso "manter o olhar fixo" em nosso tempo, para enxergar nele não apenas as luzes, mas suas trevas, o "escuro", perceptível apenas se conseguirmos "neutralizar as luzes que provém da época para descobrir as suas trevas, o seu escuro especial (...), que não é separável daquelas luzes". Assim, seria preciso receber um facho de trevas no rosto para perceber nas luzes que não se dissociam delas, as sombras, as "obscuridades" do presente. (13) Observar o contemporâneo é evocar uma peculiar relação com o passado, onde se estabeleceria uma relação entre o presente e o arcaico, na constituição de um fundamento moderno que está próximo do "arké", da sua origem, que "em nenhum ponto pulsa com mais força do que no presente" (14).

Na literatura e na arte haveria um "compromisso secreto" entre o arcaico e o moderno, não apenas pelo fascínio que as formas arcaicas suscitam no presente, mas porque "a chave do moderno está escondida no imemorial e no pré-histórico". Por essa razão, "a via de acesso ao presente tem necessariamente a forma de uma arqueologia que não regride, no entanto, a um passado remoto", pois o passado ao qual regride seria inalcançável, porque não foi efetivamente vivido. Assim, ser contemporâneo, para Agamben, é "voltar a um presente onde jamais estivemos" e, nesse sentido, é também uma construção, um exercício criativo. (15) Esta ideia está sistematizada no Diagrama 1.

Dessa forma, uma leitura do tempo contemporâneo não seria apenas para perceber "o escuro do presente" e "nele aprender a resoluta luz". Será preciso "ler de modo inédito a história", e observar como a "invisível luz, que é o escuro do presente", projeta sua "sombra sobre o passado", pois será nesse facho de sombra, que estará a capacidade de "responder às trevas do agora". Este...

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