Lei nacional e lei federal: a repartição de competências na constituição da república federativa do brasil de 1988

AutorRenata Benedet
CargoMestre em Ciência Jurídica pela UNIVALI
Páginas302-310

Renata Benedet1

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1 Introdução

A discussão acerca da repartição de competências no Estado Brasileiro instituído pela Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 tem gerado, comumente, interpretações conflituosas no que concerne à competência da União em produzir leis federais e leis nacionais, ou, conforme doutrina Kelsen2 - partindo da afirmação que o Estado é uma ordem jurídica - na formação de uma "ordem jurídica central, mas parcial", ou somente da "ordem jurídica local/parcial", aquela, juntamente com esta formam uma "comunidade jurídica total, nacional". É nesse contexto de dúvidas quanto à dupla competência do Congresso Nacional na sua tarefa preponderantemente legiferante é que se pauta a presente pesquisa, pelo que se procurará delimitar, de forma clara e objetiva, os conceitos pertinentes à repartição de competências do modelo federal do Estado Brasileiro a partir de 1988 com a promulgação da sétima Constituição da República Federativa do Brasil3.

A escolha do tema justifica-se ante a lacuna deixada pela própria Constituição Brasileira de 1988, que reserva à União o espaço como conjunto, como representante da ordem jurídica central e da comunidade total ou nacional, esquecendo-se de seu espaço, também, no ordenamento jurídico parcial, produzindo leis federais (parciais), "quando se aplica à organização, funcionamento e relações jurídicas da União, enquanto pessoa jurídica de direito público interno".4 Raul Machado Horta critica a redação da Constituição Brasileira, destacando o esquecimento da União Federal na composição federativa. Afirma o autor que a "União permanece oculta na cláusula da união indissolúvel, que vincula os ordenamentos parciais dos Estados e do Distrito Federal, sem explicitar a presença da União Federal na composição da forma do Estado".5

Da competência da União em organizar sua própria pessoa jurídica de direito público interno (lacuna deixada pela Constituição Brasileira de 1988) e da competência para organização/ normatização válida e aplicável a todas as unidades que compõem a federação brasileira, sem se falar em quebra das suas respectivas autonomias, é o que se pretende discorrer, e quiçá esclarecer, no desenvolvimento dessa pesquisa.

2 O Estado Federal Brasileiro

A forma de Estado federal adotada pelas Constituições brasileiras desde a de 1891, é uma das mais difundidas fórmulas, "quando se trata de descentralização política do Estado", conforme leciona Paulo Márcio Cruz6. O mesmo autor, citando Gonzáles Encimar, traz uma estimativa em que "40% da população mundial, num dado momento, vivia em estados - pelo menos nominamente - federais".7

A origem do modelo federal surgiu com a Constituição norte-americana de 1787, fórmula encontrada pelas treze colônias da Inglaterra, que haviam se tornado independentes, mas que, sem perder sua recém conquistada soberania, almejavam formar uma união política, criando um poder superior.8

Ressalte-se que a fórmula original é norte-americana, mas o modelo federal sofre variações conforme a realidade histórico-político-social do país que o adotou como forma de Estado. Exemplo claro, desta afirmação, é o modelo federal paradigma - o norte-americano - e o modelo federal brasileiro - adaptação daquele. No caso norte-americano, o pacto federal se consolidou através das treze colônias que se tornaram independentes - portanto, já soberanas - , pela vontade de instituir um poder central, porém, sem perder os traços de sua soberania anterior, transformaram-se em unidades com ampla autonomia, sendo que as competências da federação foram expressa ePage 303 limitadamente previstas na Constituição, o que a torna concisa, breve, sumária, com apenas sete artigos e vinte e sete emendas. É o modelo de Estado federal originado na agregação de Estados soberanos. Já, no caso brasileiro, tem-se uma federação formada a partir da segregação de um Estado unitário, centralizador, que foi dividido em unidades políticas a partir de 1889, pelo Decreto n.1, de 15 de novembro de 1889, trazendo consigo, desde então, as características de um poder central (ainda) centralizador, o que se pode observar claramente pela atual Constituição, que possui em seu bojo 250 artigos, somados 94 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias - ADCT, tornando-a uma Constituição prolixa, densa, extensa, analítica9. Note-se que mesmo com a expansão da autonomia estadual, na tentativa de estabelecer um equilíbrio federalista, a Constituição Brasileira ainda carrega consigo sua história de poder centralizador. Corroborando com esse entendimento, Kelsen doutrina que o "grau de centralização ou descentralização é determinado pela proporção relativa do número e da impotência das normas centrais e locais da ordem".10

Mas o que é uma federação? Inicialmente convém destacar que a palavra federal deriva de foedus, que significa pacto, ajuste, convenção, tratados.11 Pode-se conceituar federação como uma forma de descentralização política, formada pelo pacto de união indissolúvel (pois se houver direito de secessão não há de se falar em federação, estar-se-á mais próximo de uma confederação) de unidades políticas autônomas, sob a égide de um poder soberano, que, no caso brasileiro, o detentor deste poder soberano é a República Federativa do Brasil, e as unidades políticas autônomas são: União, Estados-membros, Distrito Federal e Municípios, conforme se depreende do art. 18 da Constituição Brasileira de 1988: "A organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição". Hélio do Valle Pereira12 esclarece que não há hierarquia dos entes federados na estrutura constitucional:

Têm-se no arcabouço constitucional brasileiro, três esferas de poder, fato que singulariza nossa organização político-administrativa nacional. Ao lado da União, convivem os Estados-membros e os municípios, além do Distrito Federal. Não se deve impressionar com o aspecto espacial, não há hierarquia entre os entes políticos. Cada qual detém competência diferente e nessa proporção tem autonomia.

Paulo Bonavides adota como conceito de Estado Federal o de Jellinek, que, para este, trata-se de "Estado soberano, formado por uma pluralidade de Estados, no qual o Poder do Estado emana dos Estados membros, ligados numa unidade estatal".13

E o que se deduz da expressão "autonomia político-administrativa" no modelo federal? Para que as unidades políticas sejam consideradas autônomas é imprescindível, a princípio, poderes específicos para se auto-organizar, elaborando leis e, conseqüentemente, se auto-administrar, executando estas mesmas leis, com força vinculante dentro dos limites territoriais do poder que a instituiu. Assim, pode-se afirmar que a autonomia da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios pressupõe uma tríplice capacidade: auto organização e normatização própria, auto-governo e auto-administração.14

Em linhas gerais, a auto-organização ou normatização significa a capacidade de produzir leis; a União se auto-organiza ou se auto-normatiza pelas leis federais ( e Nacionais?) e pela Constituição Federal, os Estados-membros pela Constituição Estadual e Leis Estaduais, o Distrito Federal pela Lei Orgânica e Leis Distritais e os Municípios pela Lei Orgânica e Leis Municipais, todos com competências auferidas pela atual Constituição Brasileira, observando-se, sempre, os princípios constitucionais da Lei Maior, a Constituição da República Federativa do Brasil. A auto-administração está saliente na capacidade, ou melhor, na necessidade de competências na esfera administrativa, legislativa, tributária, financeira, orçamentária, etc...

O auto-governo é identificado pela possibilidade do povo escolher diretamente seus representantes para o Poder Executivo e Legislativo.15

A autonomia não se confunde com soberania, esta, só quem possui é a República Federativa do Brasil, pessoa jurídica de direito público internacional. A superioridade do Estado Federal Brasileiro está sobremaneira representada pela sua Constituição, que impõe limites aos ordenamentos jurídicos das demais unidades da federação. Na lição de Paulo Bonavides, a supremacia do Estado federal sobre os Estados-federados se resume em três pontos fundamentais:

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Observância obrigatória de certos princípios básicos ou mínimos da organização federal pelos Estados-membros, adoção de um sistema de competência pela Constituição Federal, que as reparte no seio da ordem federativa e, por último, instituição de um tribunal supremo, guardião da Constituição Federal. 16

Não é redundante lembrar que todos os aspectos considerados fundamentais pelo autor para a manutenção da supremacia do Estado federal estão presentes na estrutura jurídica do Estado Federal Brasileiro.

3 Repartição de competências na Constituição Brasileira de 1988

Um dos fundamentos essenciais para a existência de um Estado federal é a construção de um sistema de delimitação de competências pela Constituição Federal. A solução encontrada pela fórmula originária do modelo federal - o norte-americano - teve seu fundamento pautado nos poderes estaduais, favorecendo-os. As competências dos poderes federais foram expressa e restritivamente elencados na Constituição norte-americana, deixando aos poderes estaduais, a competência reservada, remanescente ou não enumerada. As matérias que não estivessem contidas no rol das competências do Estado federal seriam dos poderes estaduais (cláusula expansiva).17 A técnica constitucional de repartição de competências formulada pelo constituinte da Filadélfia, firmada no plano de repartição...

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