A jurisdição constitucional como instrumento de defesa dos direitos fundamentais

AutorFabrício Juliano Mendes Medeiros
Páginas350-366

Fabrício Juliano Mendes Medeiros. Especialista em Direito Constitucional Processual pela Universidade Federal de Sergipe, Mestrando em Direito e Políticas Públicas pelo Centro Universitário de Brasília – UniCEUB, professor de Direito Constitucional do Centro Universitário de Brasília – UniCEUB e Assessor de Ministro do Supremo Tribunal Federal (fabriciojm@stf.gov.br).

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A regularidade das normas jurídicas

Hans Kelsen leciona que a garantia jurisdicional da Constituição – ou jurisdição constitucional - é um elemento do sistema de medidas técnicas que têm por fim garantir o exercício regular das funções estatais1. Funções que podem assumir uma feição jurídica, ou seja, elas podem se consistir em atos jurídicos. É o caso, por exemplo, dos atos de criação das normas jurídicas e de execução de normas jurídicas já criadas.

Interessa, neste estudo, examinar a regularidade da legislação. Sucede que essa tarefa esbarra em algumas dificuldades teóricas. Uma delas é a de que, tradicionalmente, legislação e criação do direito se identificam. Daí porque se tem a impressão de que as funções estatais de mera execução (jurisdição e administração) não criam propriamente o direito, mas simplesmente o reproduzem, uma vez que a sua criação já estaria pronta e acabada.

Tal concepção da relação entre legislação e execução, porém, é deveras inexata. É que essas duas funções estatais (criação e aplicação do direito) não se opõem de forma absoluta. Cada uma delas se apresenta, na verdade, ao mesmo tempo como um ato de criação e aplicação do direito. Para Kelsen, o processo de criação do direito não se cinge à legislação. Ele é deflagrado na esfera da ordem internacional (superior a todas as ordens estatais) e continua na Constituição. Mas não é só: segue as etapas sucessivas constituídas pela lei, pelo regulamento e, em seguida, pela sentença e pelo ato administrativo, até alcançar os atos de execução material destes últimos.

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Sabe-se que a Constituição veicula as regras essenciais do processo de elaboração das leis. Assim, a legislação é, em relação à Lei Maior, aplicação do Direito. Já no tocante ao decreto e aos outros atos subordinados à lei, ela (a legislação) é criação do Direito. Dessa forma, o decreto aplica o Direito relativamente à lei e o cria no que diz respeito à sentença e ao ato administrativo. Isso tudo a demonstrar que o Direito, no caminho que percorre desde a Constituição até os atos de execução material, não pára de se concretizar.

Infere-se, portanto, que, por estar subordinado apenas à Constituição, o legislador ordinário se submete a limitações relativamente fracas. O que faz com que o seu poder de criação normativa permaneça amplo, dado que só deve obediência às determinações jurídicoconstitucionais. Entretanto, a cada grau que se desce, a relação liberdade e limitação de criação normativa se altera em favor desta última. Vale dizer, temos a aplicação do Direito em escala cada vez maior e a sua criação em escala cada vez menor.

Exatamente por essa razão, Kelsen concluiu que “cada grau da Ordem Jurídica, portanto, constitui, ao mesmo tempo, uma produção de direito com respeito ao grau inferior e uma reprodução do direito com respeito ao grau superior”2¸ surgindo, então, a idéia de regularidade do Direito. Regularidade do Direito é, portanto, a relação de conformidade de uma determinada norma jurídica de grau inferior com uma de grau superior3. A esse respeito, é oportuno trazer à colação os ensinamentos de Álvaro Ricardo de Souza Cruz4, segundo o qual:

Esse modelo trouxe consigo a noção de validade jurídica, ou seja, a conformidade das normas inferiores para com as superiores. Assim, Kelsen (1979) considerava uma norma como vigente/válida, simplesmente porque ela se encontrava de acordo com uma norma jurídica superior.

A Constituição era vista como o ápice de qualquer modelo normativo. Assim, a questão da constitucionalidade das leis cingia-se, inicialmente, no modelo unitário de Kelsen (1979), à conformidade do conteúdo dos atos normativos inferiores com o texto constitucional [...]

O estudo da intitulada jurisdição constitucional exige prévio conhecimento de alguns conceitos técnicos, dentre os quais é de se ressaltar, por primeiro, a noção dePage 352 Constituição. E a boa compreensão desse conceito técnico pode ser dada pelo modelo hierárquico da Ordem Jurídica ideado por Kelsen.

Deveras, a noção de Constituição passou por várias alterações, mas sempre conservou um núcleo permanente, qual seja5:

[...] a idéia de um princípio supremo determinando a ordem estatal inteira e a essência da comunidade constituída por essa ordem. Ela sempre é fundamento do Estado, a base da ordem jurídica que se quer apreender [...].

É esse núcleo permanente que nos remete à idéia de que a Constituição -- exatamente por ser o pilar de uma determinada Ordem Jurídica -- é a norma que disciplina o processo de elaboração das leis e das normais gerais que legitimam a atividade dos organismos estatais, dos tribunais e das autoridades administrativas. Em suma, é a Constituição um repositório das normas que regulam o procedimento da legislação, inclusive no tocante à distribuição de competência entre os órgãos e autoridades estatais partícipes do processo legiferante.

Por esse motivo, é absolutamente necessário proporcionar a maior estabilidade possível às normas constitucionais. Uma estabilidade, acresça-se, capaz de justificar o dificultoso processo de alteração constitucional, se comparado com os processos de alteração das demais espécies normativas. É a partir da idéia de reforma constitucional por um método legislativo exigente de condições difíceis de serem reunidas que surge a dicotomia forma constitucional e forma legislativa ordinária. Mais: como é a Lei Fundamental de um país quem estabelece o processo de elaboração das espécies normativas e os respectivos protagonistas (órgãos e autoridades públicas), qualquer desrespeito às normas constitucionais atinentes ao processo legislativo contamina formalmente o próprio produto do parlamento.

Nesse rumo de idéias, cabe aqui mencionar que a noção de Constituição também assume um sentido mais amplo. Além de contar com regras que estabelecem os procedimentos e os órgãos legislativos, a Lei das Leis também incorpora um catálogo de direitos fundamentais do indivíduo. Conseqüentemente, ela não traça tão-somente o itinerário a ser seguido pelo legislador na elaboração da vontade geral, mas estabelece limites a sua autuação. Assim, uma determinada espécie normativa elaborada em plena conformidade com as regras procedimentais é formalmente constitucional. Entretanto, essa mesma espéciePage 353 normativa, ainda que formalmente válida, pode ser materialmente inconstitucional, se o legislador olvidar alguma limitação a ele imposta pela Lei Fundamental6.

Bem de ver, por outro lado, que a ampliação da noção de Constituição também traz uma outra importante conseqüência. Os dispositivos constitucionais referentes ao processo legislativo e ao conteúdo das leis somente pelas leis podem ser atendidos. Sendo assim, as garantias constitucionais ficariam restritas a um conjunto de meios contra leis inconstitucionais. Todavia, quando a noção de Constituição é ampliada a outros objetos que não o procedimento legislativo e o conteúdo das leis, torna-se possível que a Lei Maior se concretize por intermédio de outras formas jurídicas que não sejam leis. Ou seja: o alargamento da noção de Constituição aumenta o seu espectro de concretização, aumentando, por conseqüência, as garantias constitucionais.

Foi o próprio Kelsen que detectou a existência dos atos normativos primários e secundários, de modo a separar aqueles que retiram o seu fundamento de validade diretamente da Constituição daqueles que o fazem de forma apenas mediata. Sendo assim, se algum ato normativo decorrente diretamente da Constituição (ato normativo primário) for com ela incompatível tem-se a chamada inconstitucionalidade imediata, direta, chapada. Ao contrário, quando um ato normativo retira da Constituição o seu lastro de validade de forma apenas indireta (ato normativo secundário) e com ela está em desarmonia, podemos dizer que esse ato é igualmente inconstitucional; mas, nessa hipótese, a inconstitucionalidade só se opera de maneira reflexa, oblíqua, indireta.

As garantias da constitucionalidade

Depois de examinado o problema da regularidade das leis e a noção de Constituição, convém estudar as garantias necessárias à sua proteção. Antes, porém, é mister tecer alguns comentários a respeito dos dois pilares da jurisdição constitucional: a rigidez constitucional e a supremacia da Constituição.

Nesse sentido, é de se ver que o conceito de rigidez constitucional deita raízes na construção jurisprudencial da Suprema Corte dos Estados Unidos e está sempre ligado à idéia de um procedimento especialíssimo de reforma constitucional. Em outras palavras:Page 354 Constituição rígida é aquela “somente alterável mediante processos, solenidades e exigências formais especiais, diferentes e mais difíceis que os de formação das leis ordinárias ou complementares”7.

De sua parte, é o postulado da rigidez constitucional que justifica o ideário de supremacia da Constituição. Como bem salienta José Afonso da Silva8:

Da rigidez deflui, como primordial conseqüência, o princípio da supremacia da constituição que, no dizer de PINTO FERREIRA, é um princípio basilar de direito constitucional moderno. Significa que a constituição se coloca no vértice do sistema jurídico de um país, a que se confere validade, e que todos os poderes estatais só são legítimos na medida em que ela os reconheça e na proporção por ela distribuídos. É, enfim, a lei suprema do Estado, pois é...

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