Administração pública democrática e efetivação dos direitos fundamentais

AutorGustavo Justino de Oliveira
Páginas83-105

Gustavo Justino de Oliveira. Doutor em Direito do Estado pela USP. Professor nos Cursos de Graduação e de Mestrado em Direito Constitucional da UNIBRASIL (Curitiba). Professor dos Cursos de Aperfeiçoamento e de Especialização em Direito na FGV-SP, na FGV-RJ e na Sociedade Brasileira de Direito Público - SBDP. Presidente da Comissão de Direito do Terceiro Setor da OAB-PR. Advogado em Curitiba-PR (gustavo@joliveira.adv.br).

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1 Introdução

A administração pública contemporânea configura a interface entre o Estado e a sociedade. Cumpre, aprioristicamente, à organização administrativa estatal conferir respostas às demandas sociais. A principal função do aparato administrativo estatal é a de receber os influxos e estímulos da sociedade, rapidamente decodificá-los e prontamente oferecer respostas aptas à satisfação das necessidades que se apresentam no cenário social.

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Tais afirmações possuem relacionamento estreito com a temática atinente às atuais relações entre Estado, administração pública e sociedade civil.

No âmbito da efetivação dos direitos individuais e coletivos, espera-se da administração pública uma postura pró-ativa. Tal postura pode ser expressa por meio de prestações positivas, v.g. aquelas decorrentes de obrigações de serviços públicos de saúde ou de educação1.

Contudo, parece cristalizada a idéia de que a efetivação dos direitos individuais ou coletivos não ocorre tão-somente por intermédio de prestações positivas, tampouco mediante a prestação de serviços públicos. Nesse sentido, por exemplo, defendem-se novas bases dogmáticas e inovadores parâmetros exegéticos do direito administrativo, como a interpretação do direito administrativo sempre a favor dos direitos fundamentais2.

A realização desses direitos pode exigir uma omissão por parte de órgãos e entidades administrativas3, bem como demandar o desempenho de atividades outras que não aquelas inseridas na categoria serviços públicos, tais como ações administrativas relacionadas com o poder de polícia, intervenção direta na economia, regulação ou fomento.

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Este trabalho pretende discutir a relevância, para a efetivação dos direitos fundamentais no Estado contemporâneo, da estruturação de uma administração pública democrática. Essa democracia administrativa há de ser, principalmente, erigida com base na observância, pelos Poderes Públicos, do denominado direito à participação administrativa, consagrado na Constituição Brasileira de 1988. Sucedendo a análise proposta, buscar-se-á destacar a importância da ação administrativa contemporânea na efetivação dos direitos fundamentais, para, então, seguir rumo às considerações finais do trabalho.

2 Estado democrático de direito e administração pública democrática

A consagração da noção de Estado de direito por um Texto Constitucional tem, originalmente, dupla finalidade: a imposição de limites ao exercício do poder estatal e a criação de uma autêntica garantia constitucional aos cidadãos.

No que tange à democracia, mesmo sendo difícil conquistar a unanimidade na determinação precisa de seus contornos elementares, Norberto BOBBIO alude à existência de uma definição mínima. O autor assinala a possibilidade de caracterizá-la como “um conjunto de regras (primárias ou fundamentais) que estabelecem quem está autorizado a tomar as decisões coletivas e com quais procedimentos”4A democracia estaria, assim, essencialmente relacionada à formação e atuação do governo.

Da concepção de democracia, extrai-se outra noção: a de legitimidade, concebida por Diogo de Figueiredo Moreira Neto como “submissão do poder estatal à percepção das necessidades e dos interesses do grupo nacional que lhe dá existência”5.

José Joaquim Gomes Canotilho aduz que a consagração constitucional da noção de democracia (Estado Democrático de Direito) tem a finalidade de erigi-laPage 86 a um autêntico princípio informador do Estado e da sociedade. Ele assevera que o sentido constitucional desse princípio é a democratização da democracia, ou seja, a condução e a propagação do ideal democrático para além das fronteiras do território político6.

Para Odete Medauar, “a preocupação com a democracia política leva, muitas vezes, ao esquecimento da democracia administrativa, quando, na verdade, esta deveria ser o reflexo necessário da primeira”7.

É o que José Joaquim Gomes Canotilho denomina democratização da administração, a qual pode manifestar-se (i) na substituição das estruturas hierárquico-autoritárias por formas de deliberação colegial; (ii) na introdução do voto para a seleção das pessoas a quem foram confiados cargos de direção individual; (iii) na participação paritária de todos os elementos que exercem sua atividade em determinados setores da administração; (iv) na transparência ou na publicidade do processo administrativo; e (v) na gestão participada, que consiste na participação dos cidadãos, por meio de organizações populares de base e de outras formas de representação, na gestão da administração pública8.

Assim, conforme se ressaltou em trabalho anterior, não é possível deixar de notar que o Texto Constitucional pátrio, em diversos momentos, “pautou o caminho para uma maior participação dos cidadãos na esfera administrativa. Em face disso, teve início, no Brasil, a real democratização administrativa, a ser implementada por intermédio da participação popular na Administração pública”9.

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Insta observar que a junção da noção de democracia à de Estado de direito, muito mais do que estabelecer um qualificativo do modo de ser do Estado, é responsável pela atribuição aos cidadãos do direito de participação nas decisões estatais10.

A Constituição Brasileira de 1988 estabelece, no parágrafo único do art. 1°, que “todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”. Exemplificando, cumpre registrar que, sinalizando o caminho da colaboração entre administração e população, a Lei Maior admite, no inc. X do art. 29, “a cooperação das associações representativas no planejamento municipal”, concretizando-se, por exemplo, na idealização do plano diretor (art. 182 e seguintes). Por seu turno, o inc. VII do § único do art. 194 possibilita uma gestão democrática e descentralizada da seguridade social, “com a participação da comunidade, em especial de trabalhadores, empresários e aposentados”. Gestões similares estão previstas no inc. III do art. 198 (saúde), no inc. II do art. 204 (assistência social), e no inc. VI do art. 206 (ensino público). A conservação do patrimônio cultural brasileiro deve ser promovida com a cooperação da comunidade (§ 1º do art. 216), e a tutela do meio ambiente (bem de uso comum do povo) há de ser levada a efeito com a participação da comunidade (caput do art. 225), sendo dever do Estado a promoção da educação ambiental e da conscientização pública para o fim aludido (inc. VI do art. 225).

A configuração, no sistema constitucional brasileiro, do direito à participação nas decisões estatais, comprova que, de uma perspectiva unidimensional Estado-súdito (o indivíduo não era possuidor de direitos frente ao Estado, mas, unicamente, de deveres para com o Estado), se passou a uma perspectiva bidi-Page 88mensional Estado-cidadão (direitos e deveres originados do vínculo da cidadania destinam-se tanto ao Estado quanto aos indivíduos). A noção de cidadania foi e continua a ser objeto de transformações, razão do contínuo aprofundamento de seu conteúdo e extensão de seu alcance11.

Clémerson Merlin Clève enumera cinco qualificativos do vocábulo cidadão12, centralizando sua análise na figura do cidadão propriamente participante, ou seja, aquele que se insere na esfera decisória da administração pública. Para o autor, a participação do cidadão na esfera estatal é uma aplicação de mecanismos de democracia direta no âmbito das ações estatais:

A questão da democracia não pode ser posta apenas em termos de representatividade. Não há dúvida que em Estados como os modernos não há lugar para a prescindibilidade da representação política. Os Estados modernos, quando democráticos, reclamam pela técnica da representação popular. A nação, detentora da vontade geral, fala pela voz de seus representantes eleitos. Mas a cidadania não se resume na possibilidade de manifestar-se, periodicamente, por meio de eleições para o legislativo e para o executivo. A cidadania vem exigindo a reformulação do conceito de democracia, radicalizando, até, uma tendência, que vem de longa data. Tendência endereçada à adoção de técnicas diretas de participação democrática. Vivemos, hoje, um momento em que se procura somar a técnica necessária da democracia representativa com as vantagens oferecidas pela democracia direta. Abre-se espaço, então, para o cidadão atuar, direta e indiretamente, no território estatal.13

A concepção acima aludida corresponde à noção de democracia participativa, entendida por José Joaquim Gomes CANOTILHO como “a formação da vontade política de ‘baixo para cima’, num processo de estrutura de decisões comPage 89 a participação de todos os cidadãos”14. Para o autor, a noção compreenderia um sentido amplo e um sentido restrito. O primeiro significaria “a participação através do voto, de acordo com os processos e formas da democracia representativa”15; o segundo traduziria “uma forma mais alargada do concurso dos cidadãos para a tomada de decisões, muitas vezes de forma directa e não convencional”16.

Passa-se a desenvolver o tema da participação administrativa, evidenciando seu papel na construção e na consolidação da administração pública democrática.

3 Administração pública democrática e participação administrativa

O fenômeno da participação...

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