20 anos de Constituição e a reconstrução unitária do Direito Público

AutorSiddharta Legale Ferreira
Páginas3-25

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I Aspectos gerais

Os últimos1 20 anos da Constituição de 1988 representam um gradativo e sinérgico processo de ampliação da força normativa da Constituição e da democracia. Sintetiza-se, a seguir, o reflexo desse ganho de importância para o direito público, considerando, especialmente, a constitucionalização de seus ramos. Preliminarmente, são abordados de forma breve os vinte anos de constituição em perspectiva. O foco do texto, contudo, recairá sobre a interação entre o direito constitucional e o direito administrativo, direito internacional, tributário e ambiental. Procura-se delinear, dessa forma, a “reconstrução unitária”2 do direito público, conduzida através do sistema democrático e de direitos fundamentais.

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II Vinte anos de Constituição e m Pe rspectiva

A ditadura brasileira, tão audaciosa, inicialmente, ao se auto-proclamar “a Revolução vitoriosa como poder constituinte se legitima por si mesma”3, enfrentou, antes de chegar ao fim, a pressão de movimentos populares pela redemocratização: o ocaso do “milagre econômico brasileiro”. Deparou-se, ainda, com a visão de que, em outras terras, ditaduras ruíram, tal como se deu em Portugal e na Espanha4. Tudo isso repercutiu, de certa forma, no momento pré-constituinte.

Outra influência marcante da Constituição de 88 foi o projeto português de Constituição dirigente. Muito embora a Constituição brasileira, em melhor opção, não tenha previsto como a Carta portuguesa de 1976 a transição para o socialismo, mas sim direitos trabalhistas, previdenciários e os ideais de uma sociedade e economia pautados nos ideais de justiça social.5-6 Enfim, são esses os episódios e pré-compreensões que envolvem o momento pré-constituinte.

A Assembléia Nacional constituinte da Constituição de 1988 foi fruto do poder constituinte originário. Não procede a tese que a Constituição vigente foi obra do poder constituinte reformador, sob os frágeis argumentos de que a Assembléia teria sido convocada pela Emenda 25 de 1985 com a presença inexpressiva de senadores do regime ditatorial emPage 5 decadência.7 De fato, recuperou-se a legitimidade do Estado Brasileiro, ao reconstruir o Estado democrático de direito.

Houve uma revolução, se entendemos por revolução o “hiato constitucional”8, que consistiu na manifestação do povo com o intuito de desintegrar a constituição de 1969 e, gradativamente, também de seu legado autoritário9. Apesar do Congresso Constituinte ter se convertido posteriormente em Congresso Nacional, teve início o projeto de Estado preocupado com os direitos fundamentais e a democracia. A Assembléia Constituinte representa apenas o começo do resgate da legitimidade estatal perdida em razão do autoritarismo.10

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A despeito das diversas críticas à constituinte11 e, de forma genérica, à noção tradicional de poder constituinte originário12, não se deve negar que a Assembléia Nacional constituinte brasileira dispensou alguma preocupação em desfazer parte significativa das atrocidades da ditadura, em instrumentalizar a democracia e resgatar a legitimidade através da proteção dos direitos fundamentais.

O Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) p revia a realização de uma única revisão constitucional com procedimento simplificado após o primeiro qüinqüênio da promulgação da Constituição de 88. O quórum e o procedimento desta revisão foram diferenciados: bastava a maioria absoluta dos votos dos membros do Congresso Nacional, reunido em sessão unicameral. Tal mecanismo excepcional gerou inúmeras polêmicas. Naquele momento, surgiram três correntes.

A primeira – minimalista - sustentava uma revisão restrita à adaptação do texto constitucional aos resultados do plebiscito sobre o regime e a forma de governo. Alegase que o termo “ampla revisão” no art. 3° do ADCT, deve ser lido de forma conjunta com o art.2° do ADTC que aborda o plebiscito sobre a forma e o sistema de governo.13-14 A segunda - maximalista – destaca que o Congresso teria poderes ilimitados para reformar qualquer dispositivo, atuando de forma semelhante à Assembléia Constituinte. A terceira – limitada - prevaleceu, com a defesa de que a revisão difere da emenda constitucional por acontecer em votação única, por maioria absoluta dos congressistas, com deputados e senadores formando um único corpo deliberante, considerando as limitações de fundo vigentes para as emendas.15Page 7 Nessa linha, seria proibido alterar a forma federativa, o voto direto, secreto, universal e periódico, a separação dos poderes e os direitos e garantias individuais. Além disso, também o art. 1° da Constituição (soberania, cidadania, dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e o pluralismo político).16

Num clima de forte instabilidade política e econômica, gerados pelo recente impeachment do então Presidente Collor de Mello e pela crescente onda inflacionária que resistia às medidas do recém-empossado Itamar Franco, iniciaram-se os tumultuados trabalhos do Congresso Revisor previsto no A.D.C.T. Apresentada pelo Executivo e pela maioria dos meios de comunicação como se fosse uma nova constituinte; a revisão fomentou as esperanças de efetuar transformações na ordem econômica, tributária e previdenciária.

O impasse dominou os trabalhos revisionais, marcados por concepções econômicas, políticas e sociais distintas. O surgimento de graves denúncias de corrupção, na elaboração do orçamento da União, envolvendo parlamentares de destaque no Congresso conseguiu desviar por inteiro a atenção social da revisão. As sessões legislativas dividiam os trabalhos com Comissão Parlamentar de Inquérito, conhecida como "CPI dos Anões do Orçamento". Resultado: a revisão acabou em segundo plano.

Apresentada como uma panacéia para a resolução dos problemas nacionais, a revisão se encerrou sob o manto do fracasso. Não ocorreu alteração de temas centrais: reforma tributária, serviço público, monopólios estatais, direitos sociais, capital estrangeiro, representação política, previdência e Judiciário. Envolvida dúvidas e percalços, apenas 6 dos projetos de emendas de revisão foram aprovados em segundo turno. Um resultado tímido e pouco expressivo.17

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Transcorridos vinte anos, muitos foram os debates sobre a efetivação do conteúdo da Constituição. A hiperconstitucionalização de diversos temas se refletiu na avalanche de emendas constitucionais, decorrentes da confusão entre a política ordinária e extraordinária.18 Muito embora as emendas tenham sido orientadas por filiações ideológicas variadas e opções conjunturais; de forma simplificada, é possível compactá-las em duas linhas de pensamento.

De um lado, encontram-se aqueles que entendiam que as reformas dos anos 90 desfiguraram o projeto original da Constituição de 1988 e que os direitos, sobretudo, aqueles de cunho social acabaram relegados a um patamar muito distante da realização justa. Não raro culpam o espectro do neoliberalismo como responsável pelo país estar imerso no subdesenvolvimento.19 Nessa linha, existiam críticas, por exemplo, à Emenda Constitucional nº 6 quanto ao esquema de desnacionalização da economia brasileira, precisamente por modificar o inciso IX do art. 170, estendendo a quaisquer empresas de pequeno porte os benefícios desse princípio de ordem econômica, não fazendo diferença se são nacionais ou estrangeiras. Alegava-se que tal abertura ensejaria a invasão do capital estrangeiro na economia do país e o enfraquecimento das empresas nacionais.

De outro lado, levantavam-se os que compreendiam as reformas comoPage 9 decorrência da necessidade de adaptação aos novos tempos, considerando, por exemplo, a queda do muro de Berlin, a emergência de um mundo multipolar e o processo de acelerada globalização.20 Alguns exemplos dessa linha são a Emenda nº 8 que permitiu para o capital externo em redes de telecomunicações, a Emenda nº 9 que pôs fim do monopólio quanto a exploração do petróleo e a Emenda Constitucional nº 19 que foi apresentada, juntamente, com esperança de construiu o Estado gerencial brasileiro. Dispôs sobre normas da Administração Pública, servidores e agentes políticos, controle de despesas e finanças públicas e custeio de atividades a cargo do Distrito Federal. Almejava reformar a máquina administrativa em busca de melhores resultados para fazer frente ao processo de globalização. Resultados que nem sempre se concretizaram.

Independente da visão de mundo adotada, é certo que algumas reformas constitucionais e legais continuam a ser necessárias para aprimorar o desempenho das instituições.A Reforma do Judiciário – Emenda Constitucional nº 45 - trouxe uma série de inovações interessantes a respeito. Por exemplo, a súmula vinculante21, a repercussão geral do recurso extraordinário22-23 e a possibilidade de federalização dos crimes contra Direitos Humanos (art. 109, V-A)24-25. As modificações atingiram substancialmente o direitoPage 10 internacional, ao modificar status constitucional dos tratados de direitos humanos (art. 5º, §3º), reconhecer o Tribunal Penal Internacional (art.5º, §4º), a transferência da competência para homologação de sentença estrangeira e concessão de exequatur (art.105, I, i)26, a possibilidade de arbitragem em matéria trabalhista de cunho coletivo (art. 114, §2º).27 Somados os avanços e os retrocessos, constata-se que poucos discordam que o constitucionalismo vingou no Brasil e a democracia venceu.28-29-30

III Direitos fundamentais e democracia: O novo direito constitucional

O direito constitucional, nas palavras de Luís Roberto Barroso...

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