Censura moral na ditadura brasileira: entre o direito e a politica /Moral censorship in the Brazilian dictatorship: between law and politics.

AutorQuinalha, Renan

1- Introdução

Todos os regimes políticos e formas de governo dispõem, em maior ou menor grau, de normas e instituições para regular dimensões da vida sexual e familiar de seus cidadãos. Essa invasão da esfera particular não é uma exclusividade de ditaduras. No entanto, quanto mais fechado e conservador é o regime político, mais há uma tendência em intensificar modos de controle nos espaços públicos e privados. A ditadura civil-militar brasileira, instituída com o golpe de 1964, não foi uma exceção à essa regra.

A repressão contra o "comunismo" e outras formas de subversão estritamente política, especialmente os grupos que pegaram em armas para resistir à ditadura, encontraram maior espaço nas pesquisas acadêmicas, na literatura de testemunhos e nas políticas públicas de reparação das violências cometidas neste período. Abundam trabalhos, sobretudo nos últimos anos, dedicados ao estudo dos pilares básicos do "projeto repressivo global", quais sejam: espionagem, polícia política, censura da imprensa, censura de diversões públicas, propaganda política e julgamento sumário de supostos corruptos (FICO, 2007).

Contudo, em menor quantidade, são os escritos que não reduzem a história de 1964 a 1985 à história apenas do embate político entre ditadura e oposições, seja em sua dimensão parlamentar ou armada. De modo geral, temas comportamentais, discussões de gênero e questões sexuais, considerados assuntos de ordem moral, não receberam a devida atenção ou, quando muito, foram analisados como fenômenos sem estatuto próprio.

No Brasil, o momento privilegiado do trabalho de memória por conta das Comissões da Verdade parece ter catalisado e estimulado discussões sobre novas perspectivas em torno da repressão moral da ditadura. Diante das fontes mais recentes e, sobretudo, dos novos olhares marcados pela preocupação com esse recorte da sexualidade, tem-se aberto a possibilidade de descortinar, com maior profundidade, dimensões específicas da repressão outrora ignoradas ou negligenciadas (GREEN e QUINALHA, 2014; COWAN, 2016; QUINALHA, 2017).

Essas pesquisas recentes vêm apontando o modo como se institucionalizou, durante a ditadura, uma ação de órgãos de repressão e vigilância para monitorar e combater ameaças contra valores morais e espirituais da nacionalidade, formação cívico-moral do homem brasileiro (em particular da juventude), laços familiares, dentre outras tantas designações utilizadas para referir à "guerra psicológica" que setores opositores supostamente travavam.

Exemplo emblemático dessa atuação estatal no campo dos valores e da moralidade pública é a censura, especialmente aquela voltada às manifestações artísticas e culturais, que será objeto deste artigo. Havia uma censura especificamente moral na ditadura? Quais seriam as diferenças e semelhanças entre ela e uma censura estritamente política? De que modo ela se articulava com a longa história da censura na cultura brasileira e o que passou a haver de específico a partir de 1964? Qual o papel dos instrumentos legais para a construção desse aparato?

Para analisar tais questões, primeiro, por meio de uma revisão crítica da literatura historiográfica especializada, será examinado o debate sobre o estatuto da censura moral e sua relação com a censura estritamente política. A partir da problematização de uma visão binária e de uma síntese das principais diretrizes legais sobre o tema, passaremos a discutir o papel do direito na estruturação de uma teia regulatória que foi essencial para o funcionamento da censura dos costumes e artes no período ditatorial.

2 - Uma ou duas censuras durante a ditadura?

No Brasil, a história da censura não teve início com a ditadura. Deve-se ressaltar que o controle estatal sobre os meios de comunicação e as formas de expressão artísticas remontam a períodos bem anteriores da constituição de um Estado Nacional e de sua relação com a cultura.

A forte influência religiosa no período da colonização, por exemplo, foi um fator preponderante para o projeto de moldar uma sociedade tolerante na convivência com parâmetros restritivos de costumes. Obras literárias consideradas sediciosas eram proscritas e queimadas por ordem da Coroa portuguesa. A censura centrada em temas comportamentais também foi bastante marcante no teatro feito durante o séc. XIX, sem mencionar essa prática de interdição e controle durante os primórdios do período republicano, quando a presença do censor se tornou uma constante no mercado, em franca expansão dos divertimentos públicos (CARNEIRO, 2002). Já a censura estritamente política teve ampla utilização, ao lado de mecanismos de controle moral, durante regimes como o Estado Novo (1937-1945) e a ditadura civil-militar (1964-1988). Nota-se, assim, que tipos distintos de censura tiveram lugar e conviveram entre si em distintos momentos históricos no Brasil.

Para dar conta das especificidades da repressão na ditadura, uma parcela relevante da literatura historiográfica demarca uma distinção entre dois tipos de censura: a político-ideológica e a moral. Na visão de Carlos Fico, um dos principais especialistas que sustenta essa perspectiva, não havia apenas uma, mas duas censuras na ditadura, sendo "possível distinguir a dimensão moral e a dimensão estritamente política seja na censura da imprensa, seja na censura de diversões públicas. Naturalmente, porém, prevalecia no caso da imprensa a censura de temas políticos, tanto quanto os temas mais censurados entre as diversões públicas eram de natureza comportamental ou moral" (2004a, p. 91). Acrescenta ele, em outro trabalho sobre o tema, que "foi a politização da censura de diversões públicas que deu a impressão de unicidade às duas censuras, mas, na verdade, lógicas muito distintas presidiam as duas instâncias" (2004b, p. 271).

No mesmo sentido e em trabalho mais antigo, Glauco Soares pontua que, em se tratando da Divisão de Censura de Diversões Públicas (DCDP) (1), "contrariamente ao mito, não era uma entidade política: os órgãos de segurança agiam através dela, mas ela não exercia atividades de censura política diretamente". Segundo ele, "esta separação entre a censura política e a censura moral, no âmbito 'dos costumes e diversões', era de se esperar, considerando a natureza tão diversa destas duas áreas de atividade humana" (1989, p. 34).

Já Beatriz Kushnir, por outro lado, refuta esse tipo de distinção ao sustentar que a censura no pós-1968 está, de fato, "dividida em duas instâncias: uma se aplicava à diversão, outra à imprensa. Ambas com cunho político, contudo a primeira encoberta nas preocupações com a 'moral e os bons costumes'", acrescentando que a censura "era percebida sempre como um ato político" (2004, p. 105).

Toda censura, sem dúvida, tem uma dimensão política inegável. Afinal, é da própria definição do processo censório impedir a produção de determinadas informações, restringir a liberdade de pensamento e de expressão, colocar obstáculos para que opiniões circulem no espaço público e acabar, com essa vocação autoritária, impondo uma visão única sobre assuntos complexos e que deveriam comportar uma pluralidade de perspectivas. Trata-se, portanto, de um ato essencialmente político. Além do mais, qualquer censura moral e dos costumes de uma sociedade também possui um aspecto intrinsecamente político de policiamento de condutas, de limitação das liberdades, de sujeição de corpos, de controle de sexualidades dissidentes, de domesticação dos desejos e mesmo de restrição às subjetividades de modo mais amplo.

Sob tal ótica, a diferenciação entre moral e política não faria sentido ou, ao menos, não se mostraria muito funcional para a compreensão da censura durante a ditadura. Contudo, deve-se reconhecer que Fico, por exemplo, não chega a discordar da afirmação de que toda censura seja um ato político (2). O que ele parece sustentar é a necessidade de um olhar que compreenda a singularidade de cada uma dessas frentes de atuação das agências de censura (3). Vale apurar melhor essas perspectivas.

Os argumentos que sustentam a leitura de que havia duas censuras, basicamente, são que, em primeiro lugar, a censura moral já existia antes mesmo da ditadura. Aliás, é verdade que o Brasil contava já com uma tradição censória dos costumes bastante antiga e que se manifestou em diferentes períodos da história política e cultural do país, como mencionado. Em segundo lugar, o controle voltado aos espetáculos e diversões públicas era exercido a partir de um marco normativo claro que concentrava esses poderes nas mãos de um órgão bem definido na administração pública. Havia técnicos de censura, carreira estruturada, concursos públicos para seleção de profissionais, escritórios regionais vinculados a uma gestão central e uma série de leis e atos administrativos que respaldavam esta estrutura censória abertamente organizada e atuante, sobretudo durante a ditadura.

Um outro aspecto a acentuar a especificidade relativa desta modalidade de controle é o fato de que existia não apenas uma tolerância, mas um suporte efetivo da população que, com entusiasmo, defendia esses procedimentos, pedindo, muitas vezes, o endurecimento da censura moral. Foram numerosas as cartas e pedidos enviados às autoridades para que policiassem melhor e mais rigorosamente a programação da televisão, as revistas e jornais que estavam expostos nas bancas, os livros em circulação, os filmes exibidos nos cinemas e as peças de teatro em cartaz por todo o país (4). Este clamor popular por mais censura tinha, como contrapartida, um certo orgulho institucional por parte do governo e dos agentes públicos envolvidos na nobre tarefa de assegurar a integridade moral e as expectativas desses setores da sociedade. A repressão não era negada pelas autoridades e tampouco precisava ser clandestina ou escamoteada; antes, era franca e aberta. Muitas vezes, os atingidos questionavam a tesoura censória perante o Poder Judiciário, discutindo a interpretação adequada e a aplicação das regras ao caso concreto.

Por sua...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT