De Certas Relações entre os Advogados e a Verdade, ou da Parcialidade Obrigatória dos Primeiros

AutorPiero Calamandrei
Ocupação do AutorJornalista, Jurista, Político e Docente universitário italiano
Páginas83-91

Page 83

A luta entre os advogados e a verdade é tão antiga como a disputa entre o diabo e a água benta e, entre as facécias correntes acerca da mentira profissional dos advogados, ouve-se às vezes, a sério, este raciocínio: em qualquer processo há dois advogados, que não podem ambos falar a verdade, uma vez que sustentam teses contraditórias; logo, um deles mente. Isto autorizaria a dizer que cinquenta por cento dos advogados são mentirosos. Mas como o advogado que tem razão numa causa não a tem noutra, segue-se que todos estão dispostos a sustentar, no mo-

Page 84

mento oportuno, causas perdidas, ou seja: que são todos mentirosos.

Este raciocínio esquece, porém, que a verdade tem três dimensões e que pode aparecer sob formas diversas a quem a observe, conforme os diversos pontos de vista sob os quais a veja.

Num processo, os dois advogados, apesar de sustentarem teses opostas, podem estar e quase sempre estão de boa-fé, uma vez que representam a verdade, tal como o veem sob o prisma por que a vê seu cliente.

Há, num museu de Londres, um quadro famoso do pintor Champaigne, no qual se pintou o cardeal Richelieu em três atitudes diferentes. Ao centro da tela, nós o vemos de frente; aos lados, nós o vemos de perfil a olhar para o centro. O modelo é um só, mas na tela parece que são três pessoas a conversar, de tal modo são diferentes as expressões das figuras vistas de perfil e, mais do que isso, o ar calmo que, no retrato do centro, é a síntese dessas duas figuras.

Page 85

Num processo acontece o mesmo. Os advogados procuram a verdade de perfil, esforçando o olhar, e apenas o juiz, que está no meio do quadro, a vê pacatamente de frente.

A balança é o símbolo tradicional da justiça, visto parecer que representa material-mente, por uma disposição mecânica, aquele jogo de forças psíquicas que faz funcionar o processo e no qual, para que o juiz, após algumas oscilações, conclua pela verdade, é necessário que intervenha o peso de duas teses opostas, tal como se dá com os dois pesos da balança que, para se equilibrarem, devem incidir na extremidade de cada braço.

Quanto mais as forças opostas façam oscilar o fiel (veja-se a imparcialidade de quem julga), tanto mais sensível se tornará o aparelho e mais exata a medida. Da mesma forma, os advogados, puxando cada um pelo seu lado, obtêm o equilíbrio que o juiz procura. Quem quiser criticar sua imparcialidade, deve criticar também o peso que age sobre o braço da balança.

Page 86

O advogado que...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT