De Certas Tristezas e de Certos Heroísmos da Vida dos Juízes

AutorPiero Calamandrei
Ocupação do AutorJornalista, Jurista, Político e Docente universitário italiano
Páginas139-150

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Na República, de Platão, médicos e juízes são tratados com certa desconfiança, como sintomas reveladores das doenças, físicas e morais, de que sofrem os cidadãos.

Esta afinidade psicológica entre as duas profissões não é hoje menos evidente, principalmente por aquele sentimento de solidariedade que a experiência do mal alheio, físico ou moral, produz em quem diariamente o estuda e o conforta. Os juízes, como os médicos, apenas veem em seu redor chagas e lepra. Os juízes, como os médicos, respiram durante toda a sua vida um ar viciado, naqueles sombrios hospitais de toda a corrupção humana, que são os tribunais.

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Conheci um químico que, quando no seu laboratório destilava venenos, acordava às noites em sobressalto, recordando com pavor que um miligrama daquela substância bastava para matar um homem. Como poderá dormir tranquilamente o juiz, que sabe possuir, num alambique secreto, aquele tóxico sutil que se chama injustiça e do qual uma ligeira fuga pode bastar não só para tirar a vida mas, o que é mais horrível, para dar a uma vida inteira indelével sabor amargo, que doçura alguma jamais poderá consolar?

O bom juiz põe o mesmo escrúpulo no julgamento de todas as causas, por mais humildes que sejam. É que sabe que não há grandes e pequenas causas, visto a injustiça não ser como aqueles venenos a respeito dos quais certa Medicina afirma que, tomados em grandes doses, matam, mas, tomados em doses pequenas, curam. A injustiça envenena, mesmo em doses homeopáticas.

Assim como para se distraírem da aborrecida normalidade da vida quotidiana, paca-

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tos burgueses procuram fatos excepcionais e gostam de encontrar, em livros apetecidos ou em telas de cinema, dramas judiciais intensos, da mesma forma os juízes, para encontrar no teatro espetáculos excepcionais, que os possam distrair da realidade quoti-diana, gostam de ver representadas cenas cor-de-rosa e azuis: cônjuges que se amam, irmãos que repartem heranças sem rancor, comerciantes que não são declarados falidos e proprietários de terrenos limítrofes que, sentados nas extremas comuns, exprimem, comovidos até as lágrimas, o prazer recíproco de serem bons vizinhos.

Até aquela hora de distração espiritual, que todo homem cansado pode encontrar à mesa se em redor se sentarem amáveis conversadores, é vedada ao juiz, a quem um artigo do Código, que o ameaça com o afastamento se tiver por comensal habitual um litigante, aconselha a que tome suas refeições em acética solidão.

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O jovem bacharel, que ao entrar para a carreira judiciária interrogue seu íntimo para ter a certeza da vocação...

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