O 'Chapa' e o Processo de Desvalorização da Profissão

AutorJorge Luiz Souto Maior
Ocupação do AutorJuiz do Trabalho, titular da 3ªVara do Trabalho de Jundiaí
Páginas248-259

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1. Introdução

É inegável a imensa quantidade de trabalhadores eventuais espalhados pelo território nacional. Geralmente, durante viagens pelas rodovias brasileiras, somos surpreendidos por inúmeras placas fabricadas de madeira, metal ou até mesmo papelão com a escrita rústica da expressão “chapa”. No entanto, há desconhecimento por parte da população sobre a ocupação, os direitos e deveres desse profissional.

Basicamente, trata-se de um trabalhador responsável pela prestação de serviços de carregamento e descarregamento de mercadorias para caminhoneiros, mas, em diversas situações ele também colabora na indicação de caminhos alternativos nos grandes centros metropolitanos, evitando que o motorista enfrente congestionamentos e consiga entregar a carga no tempo ajustado. A execução das atividades, teoricamente, ocorre para várias empresas por curto período, porquanto na prática trabalha-se sempre para as mesmas.

Em decorrência dessa transitoriedade, a doutrina e a jurisprudência majoritária ensinam que lhe falta o elemento da não eventualidade, primordial à formação da relação de emprego. Consequentemente, o eventual, assim como o autônomo e o avulso, não recebe o respaldo da Consolidação das Leis do Trabalho, ou seja, está excluído do rol de direitos inseridos no dispositivo celetista, bem como daqueles previstos no art. 7º da Constituição Federal.

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Sendo assim, o entendimento óbvio seria a regulamentação por lei específica, contudo, não há no ordenamento jurídico brasileiro a proteção indispensável. Durante a nossa pesquisa, encontramos o Projeto de Lei n. 1.510, de 1973, que dispõe sobre o exercício da profissão de “chapa” e outras providências, uma iniciativa interessante, porém não prosperou, e a mesa diretora realizou o arquivamento em 1975.

Diante disso, buscamos apresentar as características das relações de trabalho e emprego, ressaltando as diferenças entre o empregado com vínculo permanente e o trabalhador entregue à própria sorte. Objetivamos, ainda, demonstrar por meio dessa discrepância o processo de desvalorização do profissional e do próprio trabalhador como ser humano carente dos direitos fundamentais.

2. Formação da relação de emprego

Conforme mencionado nas notas introdutórias deste artigo, objetivamos a análise do processo de marginalização do “chapa”. Entretanto, são imperiosos alguns esclarecimentos pertinentes à formação das relações jurídicas, principalmente, no ambiente trabalhista, inclusive como meio facilitador para o enquadramento do objeto de nosso estudo.

Desta forma, como em qualquer ramo do Direito, uma relação jurídica possui seus elementos delineadores, especialmente, com o intuito de caracterizá-la. No Direito do Trabalho, há um eminente esforço em se diferenciar as relações de trabalho e emprego. Enquanto a primeira é gênero, em que uma pessoa natural presta um serviço ou uma obra em prol de terceiros (seja pessoa física ou jurídica), a segunda é uma de suas espécies, sendo assim, ambas não se confundem.

Nesse sentido, cumpre obervar in verbis o seguinte entendimento:

A relação de trabalho abrange todas as formas de prestação de serviços, já a relação de emprego alcança apenas aquelas realizadas sob determinadas condições que justificam a aplicação das normas protetivas trabalhistas. Toda relação de emprego pressupõe a existência de uma relação de trabalho, mas nem toda relação de trabalho pressupõe a existência de uma relação de emprego.1A formação da relação de emprego necessita da cumulação dos elementos estabelecidos nos arts. e da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).2O primeiro elemento é o trabalho exercido, obrigatoriamente, por pessoa física, portanto, exclui-se a possibilidade de a pessoa jurídica exercer atividade como um empregado, mas não há impedimentos para que o tomador seja pessoa natural, por exemplo, no serviço doméstico.

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Em seguida, tem-se a pessoalidade (prestação pessoal), neste caso, o indivíduo (empregado) é contratado para prestar serviços pessoalmente, podendo ser substituído apenas com o consentimento do empregador. Não se pode olvidar que o vínculo perdura mesmo acontecendo alguma mudança na propriedade ou na estrutura jurídica da empresa, conforme dispõe a conjugação dos arts. 10 e 448 da CLT. É o caso, por exemplo, da pessoa X compradora da empresa de Y, em que os contratos de trabalho dos empregados não serão afetados em tal negociação.

A não eventualidade ou habitualidade é o terceiro elemento, assim, contrata-se o indivíduo para exercer atividades correlatas à empresa. Mas, “para que haja a relação empregatícia é necessário que o trabalho prestado tenha caráter de permanência (ainda que por um curto período determinado), não se qualificando como trabalho esporádico”.3 Portanto, a eventualidade exclui os trabalhadores eventuais (Exemplo: o “chapa”).

Quanto à onerosidade, a CLT no art. 457, § 1º, esclarece que integram o salário a importância fixa estipulada, bem como as comissões, percentagens, gratificações ajustadas, diárias para viagens e abonos pagos pelo empregador. Por isso, os trabalhadores voluntários não são considerados empregados e não há geração de qualquer obrigação empregatícia ou trabalhista previdenciária, especialmente por força da Lei n. 9.608/98, qualificando o serviço voluntário como atividade não remunerada, entre outros requisitos.

O último elemento, a subordinação, exterioriza-se por meio da palavra dependência. Amauri Mascaro Nascimento define este elemento como uma limitação da autonomia da vontade do trabalhador, cujas atividades a serem executadas deverão pautar-se pelas normas traçadas pelo empregador, tratando-se de um requisito essencial para a formação do vínculo.4 Essa submissão remete ao caráter econômico dos atores, enquanto o patrão é detentor dos meios de produção (leia-se, recursos financeiros), consequentemente, ao empregado resta apenas a opção de obedecer à hierarquia.

Apresentados os critérios à formação da relação de emprego e do não enquadramento do “chapa” em tal situação, torna-se evidente o seu afastamento daquelas garantias mínimas estabelecidas em diversos diplomas normativos. O aludido ator não é considerado um autônomo, pois recebe ordens de alguém para realizar suas tarefas, no entanto, não é um empregado. Pois bem, a construção de um verdadeiro Estado Democrático de Direito pressupõe a existência de fundamentos básicos, tais como a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa.

De acordo com José Afonso da Silva a dignidade é um atributo inerente à pessoa humana, de tal forma, que a primeira entranha-se à segunda confundindo-se à natureza do ser humano.5Quanto aos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa cumpre observar, in verbis:

Os valores do trabalho, portanto, só se materializam com o direito à livre escolha do trabalho pelo trabalhador, direito a condições equitativas (igualdade de tratamento nas relações de trabalho), direito a uma remuneração que assegure ao trabalhador e à sua família uma existência conforme com a dignidade humana do trabalhador e seus familiares. [...] no contexto de uma Constituição preocupada com a realização da justiça

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social não se pode ter como um puro valor o lucro pelo lucro. [...] dever do empresário de propiciar melhores condições de vida aos trabalhadores, exigidas pela valorização do trabalho.6Portanto, os fundamentos acima devem ser analisados de forma conjunta e consequente, isto é, dignidade seguida de valores sociais do trabalho. Não há que se falar ainda, em desassociá-los do trabalhador, seja com ou sem vínculo empregatício. Além disso, é necessário repensar certos conceitos e tratamentos esculpidos pela modernidade e, especialmente, advindos do processo globalizante, pois não é justificável que, em nome da livre concorrência, competitividade, lucro e desenvolvimento, prevaleça a desvalorização de certos profissionais. É inaceitável o entendimento de crescimento a qualquer custo, pautado, principalmente, na extinção/desconsideração dos valores inatos ao ser humano.

Por isso, o “chapa” não deve ser remetido à marginalidade, ao contrário, há que se repensar sua devida coloção direta no mercado de trabalho e lhe garantir, efetivamente, o acesso aos bens prioritários a qualquer indivíduo.

3. Trabalhador autônomo, avulso e eventual: diferenciação indispensável

Posteriormente à análise dos elementos formadores da relação de emprego, bem como pelo elemento central deste artigo, torna-se imprescindível o discernimento entre trabalho autônomo, avulso e eventual, sendo que estes dois últimos são, geralmente, confundidos como sinônimos do primeiro. Além disso, de acordo com a legislação nacional, os exercentes dos mencionados tipos de ofício devem ser tratados como trabalhadores e não como empregados, visto que, nas três modalidades está ausente pelo menos um dos requisitos componentes do vínculo empregatício.

Todavia, não é possível a aceitação de abusos, pois conforme dispõe o art. 7º, inciso XXXIV, da Constituição Federal, é garantida a igualdade de direitos entre trabalhadores com vínculo empregatício permanente e o trabalhador avulso. O referido dispositivo constitucional não menciona o trabalhador autônomo ou o avulso, no entanto, por meio de interpretação extensiva seria salutar incluí-los na proteção.7Em linguagem modesta, o trabalhador autônomo é aquele que não depende de ordens sobre o modo de executar sua tarefa, na verdade, ele é seu próprio empregador. Nota-se em tal situação a inexistência da subordinação como ocorre, por exemplo, com o advogado. Alice Monteiro de Barros ensina:

No trabalho autônomo, o prestador de serviços atua como patrão de si mesmo, sem...

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