Cibercriminalidade

AutorDario José Kist
Ocupação do AutorMestre em Direitos Fundamentais
Páginas59-102
Prova Digital no Processo Penal
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1. Prolegômenos
Já se tornou comum a armação de que a Internet desconhece ou
ignora fronteiras físicas e territoriais, e foi ela quem, anal, permitiu a con-
cretização da “aldeia global” profetizada por MARSHALL MCLUHAN66,
e tal constatação, dentre outros contextos, é assacada sempre que se
refere à Internet como instrumento da prática de crimes67.
É fato que a Rede tem sido largamente utilizada para o planejamento, a
preparação e a execução de um sem número de ilícitos, por agentes que
atuam de forma isolada e por meio de organizações criminosas. Fala-se,
nesse contexto amplo, em uma criminalidade informático-digital ou
cibercriminalidade, para reetir o fato de os criminosos não haverem cado
inertes diante das novas tecnologias de comunicação impulsionadas pela
Internet, nem ao ciberespaço; pelo contrário, passaram a utilizar-se des-
ses recursos para organizarem-se e aprimorarem a atividade criminosa68,
além do que esses mesmos meios são por eles utilizados para esconde-
rem-se e esquivarem-se da atuação estatal preventiva e repressiva ao
crime69.
66 A expressão “aldeia global” é tributada ao teórico da comunicação HERBERT MARSHALL
MCLUHAN. O canadense se ocupou dos impactos sociais dos novos meios de comunicação
de massa e de âmbito internacional – personicados, ao tempo em que o autor teorizou, na
televisão, que começava a ser integrada via satélite. Superando a forma de comunicação própria
das aldeias – oral, bidirecional e entre dois indivíduos – as tecnologias de comunicação de massa,
que MCLUHAN compreendia como instrumentos de redenição da forma organizacional da
sociedade, forjaram a criação de uma “sociedade planetária”, eletronicamente conectada e
compondo uma “aldeia global”, em que todas as pessoas estão interligadas, permitindo uma
intensa troca cultural entre os diversos povos e aproximando-os como se estivessem numa
grande aldeia inteiramente conectada. Cabe observar que o conceito foi elaborado antes da
massicação da internet e, portanto, da mídia digital (MCLUHAN morreu em Toronto em 31
de dezembro de 1980); estas, conjugadas, efetivamente criam as condições para um mundo
comunicacional sem fronteiras, relativizando ao máximo as noções tradicionais de espaço, de
território e de tempo como variáveis no uxo das informações. É por isso que o conceito de
“aldeia global” é revestido de contundente atualidade, e seu autor pode ser considerado um
profeta ao tempo em que o desenvolveu.
67 PRADILLO, Juan Carlos Ortiz. Problemas Procesales de la Ciberdelincuencia. Madrid: Editorial
Colex, 2013, p. 31 e seguintes.
68 PEDRO DIAS VENÂNCIO refere que “as práticas e capacidades da informática, e em
particular da internet, potenciam exponencialmente a internacionalização da criminalidade.
Tornando mais difícil a reconstituição do percurso das informações entre o ponto emissor e o
ponto receptor, permitindo a dissimulação de actos e agentes criminosos”. (Lei do Cibercrime.
Coimbra: Coimbra Editora, 2011, p. 15).
69 É de MANUEL DA C. ANDRADE percuciente observação: há atualmente uma presença
ubíqua do computador no cotidiano dos cidadãos; naturalmente, também no campo da
preparação e execução de crimes a informática tem relevo, pois a fenomenologia do
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Inconteste essa realidade, e entre outras necessidades, uma delas
diz respeito com a adaptação da legislação substantiva para descrever e
tipicar condutas próprias desse meio, pois somente se previstas como
crimes em legislações internas elas podem ser objeto de persecução penal.
Outra diculdade própria e inerente a essa criminalidade consiste
no fato de sua repercussão, ao menos potencialmente, projetar-se para
além das fronteiras dos Estados nacionais, do que nascem dois problemas
jurídicos especícos: de um lado, pode haver dúvidas sobre o local do
crime e a consequente denição da jurisdição competente, dando lugar
a conitos internacionais de competência; de outro lado, como a prova
da infração penal pode estar localizada em algum país diverso daquele
em que a investigação ou o processo se desenvolvem, é necessário tra-
tar de cooperação internacional para a coleta desses meios de prova. E,
por conta dessa última questão, há demanda por uma uniformidade ou
harmonização entre as legislações penais dos vários países, pois, quando
a prova da infração penal há de ser buscada em país diferente daquele da
investigação ou processo, dicilmente haverá interesse na colaboração
se a conduta investigada não encontrar tipicação criminal neste último.
Há, portanto, e postas para enfrentamento, questões tanto de direito
material, como de direito processual; nas próximas páginas será exposto
um panorama geral sobre a cibercriminalidade no aspecto substantivo,
sem, contudo, ingressar na análise de tipos penais existentes em deter-
minada legislação, pois o enfoque do presente trabalho é processual. Estas
referências aos cibercrimes, a seguir feitas, pretendem tão somente
contextualizar uma realidade fática da qual nascem, como dito, vários
problemas de cariz processual, estes sim objeto de análise posterior.
crime ganha mobilidade, racionalidade e organização; como resultado, a mais perigosa e
organizada criminalidade apresenta uma indissociável associação com a informática, que
também permite a proteção e a blindagem das ações criminosas. (Bruscamente no Verão
Passado, a Reforma do Código de Processo Penal. Coimbra: Coimbra Editora, 2009, p. 157).
JUAN CARLOS PRADILLO, alertando para os efeitos negativos da falta de harmonização
internacional na resposta penal aos delitos informáticos, arma que isso pode ensejar o
aparecimento de “paraísos cibernéticos similares a los refúgios de piratas que orecieron en el
Caribe en el siglo XVIII (...). Pero existe un riesgo mayor: que la disparidad en torno al régimen
de persecución judicial contra dos ciberdelinquentes debido a la falta de colaboración de las
autoridades nacionales, la diversidad de capacidades técnicas de investigación y capacidades
forenses, así como la escasez de personal bien preparado, conviertan al ciberespacio en un ‘ reino
de Taifas’ similar al surgido en España en el siglo XI trás la desaparición del Califato de Córdoba”.
(Problemas Procesales..., p. 31).
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2. Noções sobre o surgimento e a designação dos cibercrimes
ULRICH SIEBER, em estudo sobre o surgimento e desenvolvimento
de tipos penais que ele denomina de criminalidade informática70, assevera
que datam do início da década de 70 do século XX os primeiros tipos penais
sobre essa criminalidade, destinados à proteção da vida privada diante
das novas possibilidades de recolha, transmissão e armazenamento de
dados que a informática possibilitava. Nos anos 80 do mesmo século, o
foco da legislação nesse âmbito era o combate à criminalidade econômica
praticada com o auxílio dos recursos da informática, evoluindo para uma
fase posterior (a terceira) de salvaguarda da propriedade intelectual, em
especial no âmbito do combate à pirataria. Uma quarta fase desse processo
foi focada em aspectos processuais penais e de investigação dessa crimina-
lidade e, posteriormente, uma quinta onda migrou o foco de preocupações
para o direito internacional e a necessária cooperação entre Estados
soberanos para o enfrentamento do cibercrime.
A propósito dessa última fase, cabe referir que em 23 de novembro
de 2001, foi assinada, em Budapeste, a Convenção sobre o Cibercrime
também conhecida como “Convenção de Budapeste” – que entrou
em vigor na ordem jurídica internacional em 1º de julho de 2004, após
as cinco raticações exigidas. O propósito da Convenção é harmonizar a
lei penal material na área do cibercrime, notadamente o acesso e inter-
cepção ilegal em redes informáticas, o dano e sabotagem informática, o
uso de vírus, e a posse, produção e distribuição de material de pornogra-
a infantil na Internet; também prevê diretivas de natureza processual,
destacando-se poderes e mecanismos de investigação para o combate
desta criminalidade; ainda, criou mecanismos cooperação internacional71.
Relativamente à designação dos cibercrimes, inicialmente, cabe
consignar que a realidade consistente na prática de atos ilícitos por meio
70 Legal Aspects of computer-related crime in the information society. Com-crime study prepared
for the European Commission”. January 1998. No mesmo sentido: MACEDO, João Carlos
Cruz Barbosa. “Algumas considerações acerca dos crimes informáticos em Portugal”. In
Direito Penal Hoje – Novos Desaos e Novas Respostas. Manuel da Costa Andrade e Rita
Castanheira Neves (Org.). Coimbra: Coimbra Editora, 2009, pp. 221-262, (229).
71 Versão em português da Convenção pode ser obtida em http://www.dgpj.mj.pt. O Brasil
não é signatário dessa Convenção, embora ela venha inuenciando de forma nítida a
incipiente legislação sobre a cibercriminalidade e medidas investigatórias próprias para
combatê-la, o que será objeto de análise em outra passagem.
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