Cidadãos e latinos na experiência jurídica da Roma Antiga: Novas possibilidades para um modelo de inclusão

AutorLuciene Dal Ri - Arno Dal Ri Jr.
CargoDoutora em Direito Civil-romanístico pela Università degli Studi di Roma, La Sapienza - Doutor em Direito Internacional pela Universidade Luigi Bocconi de Milão, com pós-doutorado pela Université Paris I (Panthéon-Sorbonne)
Páginas300-314

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ISSN Eletrônico 2175-0491

CIDADÃOS E LATINOS NA

EXPERIÊNCIA JURÍDICA DA ROMA ANTIGA: NOVAS POSSIBILIDADES PARA UM MODELO DE INCLUSÃO

CITIZENS AND LATINS IN THE LEGAL EXPERIENCE OF ANCIENT ROME: NEW POSSIBILITIES FOR AN INCLUSION MODEL

CIUDADANOS Y LATINOS EN LA EXPERIENCIA JURÍDICA DE LA ROMA ANTIGUA: NUEVAS POSIBILIDADES PARA UN MODELO DE INCLUSIÓN

Luciene Dal Ri 1

Arno Dal Ri Jr.2

RESUMO

A cidadania e a latinidade sempre foram temas muito próximos quando se trata da Roma antiga. Observase que o status jurídico dos latinos era bastante diferenciado daquele dos demais não romanos. Devido ao seu particular status em relação ao sistema jurídico romano, as fontes e a doutrina sobre o tema evidenciam o não enquadramento dos latinos como peregrini. A particular relação desenvolvida entre romanos e latinos durante toda a existência de Roma teve bases culturais muito antigas, presentes na própria origem latina da cidade romana. O vínculo cultural e jurídico desenvolvido entre Roma e os demais latinos foi afetado por conta das guerras latinas, mas nunca foi apagado do sistema jurídico romano. A experiência romana de ius civitatis denota um diferente conceito de cidadania em relação àquela proposta pelo modelo do Estado-nação, abrindo possibilidades para uma concepção intermediária entre o cidadão e o estrangeiro.

PALAVRAS-CHAVES: Cidadãos. Latinos. Roma antiga.

ABSTRACT

The themes of Citizenship and Latinity have always been very closely linked when it comes to ancient Rome. It is observed that the legal status of Latins was very different from that of other non-Romans. Due to their special status in relation to the Roman legal system, sources and doctrines on the subject show the inadequacy of the Latins as peregrini. The special relationship developed between the Romans and Latins throughout the existence of Rome, had very old cultural bases, presented in the Latin origin of the Roman city. The cultural and legal link developed among Rome and other Latins was affected because of the Latin wars, but it was never completely removed from the Roman legal system. The Romans’ experience of ius civitatis denotes a different concept of citizenship from that proposed by the model of Nation States, opening up possibilities for an intermediary concept between the citizen and the foreigner.

KEYWORDS: Citizens. Latins. Ancient Rome.

1 Doutora em Direito Civil-romanístico pela Università degli Studi di Roma – La Sapienza. Mestre em

Estudos Medievais pela Pontificia Università Antonianum. Professora de História do Direito no curso de graduação em Direito e no programa de pós-graduação stricto sensu, Mestrado e Doutorado, em Ciência Jurídica na universidade do Vale do Itajaí (UNIVALI). Endereço: Rua Uruguai 458, Centro, Bloco 16, 88302-202 - Itajaí – SC. E-mail: luciene.dalri@univali.br
2 Doutor em Direito Internacional pela Universidade Luigi Bocconi de Milão, com pós-doutorado pela

Université Paris I (Panthéon-Sorbonne). Mestre em Direito e Política da União Européia pela Universi-dade de Pádua. Professor de Teoria e História do Direito Internacional nos cursos de graduação e de pós-graduação stricto sensu em Direito na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Endereço: Campus Universitário Reitor João David Ferreira Lima - Trindade - Florianópolis - SC - 88040-970. E-mail: arno@ccj.ufsc.br

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La ciudadanía y la latinidad siempre fueron temas muy próximos cuando se trata de la Roma antigua. Se observa que el status jurídico de los latinos era bastante distinto del de los demás no romanos. Debido a su particular status en relación al sistema jurídico romano, las fuentes y la doctrina sobre el tema evidencian el no encuadramiento de los latinos como peregrini. La particular relación desarrollada entre romanos y latinos durante toda la existencia de Roma tenía bases culturales muy antiguas, presentes en el propio origen latino de la ciudad romana. El vínculo cultural y jurídico desarrollado entre Roma y los demás latinos se vio afectado por las guerras latinas, pero nunca fue borrado del sistema jurídico romano. La experiencia romana de ius civitatis denota un diferente concepto de ciudadanía en relación a aquella propuesta por el modelo de Estado-nación, abriendo posibilidades para una concepción intermedia entre el ciudadano y el extranjero.

PALABRAS CLAVE: Ciudadanos. Latinos. Roma antigua.

CIDADÃOS E LATINOS NA EXPERIÊNCIA JURÍDICA DA ROMA ANTIGA

INTRODUÇÃO

O status civitatis como situação do cidadão dentro do sistema jurídico romano foi um dos principais instrumentos jurídicos utilizados por Roma nas suas relações com o interior e com o exterior do povo romano, definindo quem é cidadão e, consequentemente, quem não é. Os não romanos são identificados como latinos ou como peregrinos, denotando diferença de enquadramento em relação ao sistema jurídico romano. O status de latino apresenta peculiaridades e prerrogativas não estendidas aos peregrinos em geral, como a possibilidade de voto nas assembleias romanas, uma vez fixado o domicílio em Roma. Tais prerrogativas suscitam o debate na doutrina sobre o enquadramento dos latinos como estrangeiros, no sentido de estranhos ou externos em relação à cultura romana ou como um status intermediário entre cidadãos e estrangeiros.

Para a abordagem do tema será utilizada a consulta às fontes romanas jurídicas e literárias. Dar-se-á, ainda, ênfase à terminologia utilizada, tomando em consideração o fértil debate da doutrina sobre o tema.

ELEMENTOS DA CIDADANIA ROMANA

A Roma antiga apresenta nos conceitos de Quiris e de civis, ligados intimamente à noção de status civitatis e de civitas – como elementos que vinculam a pessoa ao sistema jurídico –, delineamentos que conduzem a uma concepção de cidadania romana. Deste modo, portanto, o Quiris, e posteriormente o civis, seriam entendidos como partes do povo romano, unidos pelo mesmo ius, gozando de certos direitos e incumbidos de certos deveres.3A concepção de civis deve ser trabalhada em conjunto com a concepção de civitas, visto a origem e a intrínseca ligação existente entre os termos. A civitas era inicialmente a qualidade

3 O conceito ius Quiritium será utilizado mesmo em fontes de idade imperial para indicar o direito de cidadania romana, e em particular aquele concedido aos latinos, enquanto no caso da concessão aos peregrinos o termo mais usado era de civitas romana. CATALANO, Pierangelo. Populus Romanus Quirites. Torino: Giappichelli, 1974, p. 146: «Ius Quiritium e civitas Romana sono espressioni, riferentisi allo status di „cittadino‟ romano, cioè di parte del populus Romanus Quirites, le quali hanno origini storiche diverse. La prima espressione è certamente più antica (come Quiris è anteriore a civis) e risponde a una concezione di populus più concreta, in cui prevale l‟aspetto della pluralità dei Quirites; la seconda, pur sempre concepita come ius omnium risente in qualche modo del processo di astrazione subito da populus in connessione al decadere dell‟importanza politica e sociale dei comitia».

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Revista NEJ - Eletrônica, Vol. 18 - n. 2 - p. 300-314 / mai-ago 2013

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própria do cidadão, desenvolvendo posteriormente o significado de conjunto de cidadãos4. Fruto deste fenômeno, a construção da cidadania como instituto jurídico da Roma antiga não é delineada apenas como uma ligação entre partes da comunidade, formando-a, mas também é vinculada a um espaço geográfico de exercício de tais direitos. Será o território da cidade, o interior do pomerium, a dar concretude, materialidade, a este espaço de cidadania.5Desde as primeiras fases do período arcaico6, um dos elementos de mais forte caracterização do civis romano encontra-se no fato de se pertencer ou não a uma gens romana. Consideradas organismos anteriores e constituidores da civitas, a gens e a família assumiam a condição de pressupostos políticos e sociais de Roma.

O pressuposto de liberdade e de vínculo com Roma, concretizado no fato de pertencer a uma gens, pode ser observado desde o período mais remoto da cidade. Este é transmitido por meio do nascimento, como delineia o jurista romano Gaio, na obra Institutiones. É muito claro na exposição de Gaio que o sistema jurídico romano era baseado no critério ius sanguinis para a concessão da cidadania, estendendo-a também por adoção, por manumissão (concessão da liberdade ao escravo) pelo verificar-se de certas condições e pela concessão individual ou coletiva.

As diferentes interpretações dadas às fontes e ao termo populus em relação às suas partes (os cidadãos) e à constituição romana, com as suas consequências, fazem com que o estudo do tema torne-se bastante complexo. As doutrinas alemãs e italianas, neste âmbito, forneceram contribuições fundamentais para o debate, apresentando contrastes e intersecções, em muito fruto de uma forte influência filosófica e política.7Mesmo com tantas interpretações, a concepção do termo populus, em relação à sua origem filológica poplus-, encontra-se pacificada na doutrina, sendo considerada como “multidão”, também relativa a um “insieme di armati”.8O tema, porém, ainda é fonte de inúmeras controvérsias doutrináriais, estas últimas surgidas em teorias que se delineiam a partir do século XIX.

A) Mommsen9propõe a teoria de identificação entre populus e «Staat» como ente ideal e

4 Dentro de uma análise semântica, Crifò (Civis. La cittadinanza tra antico e moderno. Roma-Bari: Laterza,

2004, p. 26 s.) teoriza que a passagem do significado de civitas como cidadão para o significado de conjunto de cidadãos e posteriormente cidade reflete a lógica de construção de Roma. A civitas romana é então concebida como uma organização social baseada na estrutura patriarcal-gentilícia religiosa, feita a partir do cidadão e...

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