Cidadania tutelada

AutorProf. J. J. Calmon de Passos
CargoProfessor Catedrático de Direito Processual da Universidade Federal da Bahia (aposentado). Coordenador do Curso de Especialização em Direito Processual da Universidade Salvador (UNIFACS). Advogado e Consultor Jurídico em Salvador.
Páginas1-26

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  1. Nada é mais traiçoeiro do que se acreditar saber o exato significado de palavras qualificadas como "corriqueiras", de tão utilizadas no quotidiano. Quando paramos para refletir ou somos questionados, verificamos saber menos sobre elas do que sabemos a respeito das que se mostram raras, sofisticadas e esotéricas.

    Esse risco se torna ainda muito maior entre os juristas. Não só acreditamos saber o real significado do "varejo" de nosso jargão técnico, mas terminamos por acreditar nas palavras, enquanto apenas palavras, utilizandoas à moda de instrumentos, como Se pudessem produzir algo, ou fossem matéria prima com que se produzisse algo, à semelhança do barro, da madeira e da pedra.

    As palavras, em verdade, apenas permitem que o nosso sonho, nosso desejo, nosso querer e nosso saber viajem para fora de nós mesmos e aterrissem no outro, abastecendo-se para a viagem de volta, com o sonho, o desejo, o querer e o saber que povoam o seu mundo pessoal.

    As palavras são apenas os sacramentos do significado e da intenção que imprimimos à nossa conduta e comunicamos aos outros, buscando entretecer o mundo da convivência humana. Page 2

    Realidade primária somos nós, os homens criadores de realidade com seus atos concretos, que moldam a paisagem e fazem a história. E quando dissociamos a palavra de suas raízes existenciais, é como se deixássemos o planeta Terra e iniciássemos uma viagem aos páramos" celestes, que não se sabe, com segurança, o que sejam, onde ficam e para que servem. Deixa-se o que é para ir em direção ao que nem mesmo sabemos se poderá ser, semelhando motoristas loucos, que dirigem freneticamente, de um lado para o outro, caminhões vazios. Fatigamo-nos levando nada de lugar nenhum para lugar nenhum.

    A palavra cidadania é uma dessas. Ela está presente em nosso discurso demagógico, em nossa fundamentação despistadora, em nossa pregação cívica, em nosso quotidiano revoltado, em nosso dizer dogmático e em nosso lirismo militante. Onipresente e emocionalmente forte, é ela realmente útil? Ou para que seja útil reclamará reflexão crítica sobre suas matrizes existenciais, seus vínculos com o que realmente é e não com aquilo que, pairando muito acima do que os olhos podem ver e o entendimento pode apreender, simplesmente nos expatria do que é, para nos internar, alienados, no mundo do faz de conta? Buscando trazer de volta a nave à superfície da terra, ou tentando realizar isso na medida de minhas forças, é que me propus estas reflexões e vou desenvolvê-las.

  2. Qual o dado mais imediato que se impõe a nossa consciência? Nosso ser individual, o homem concreto e singular que somos. É o nosso corpo que experimenta o sofrimento, nosso coração é que anseia, nossa vontade é que se realiza ou se frustra; são nossos os sonhos que se estiolam e as esperanças que estimulam; nós é que morremos e encerramos nosso aparecer" em algo que nos precedeu e nos sucederá, inexoravelmente. Só o homem, como indivíduo, tem destino. E só ele sabe de sua própria morte.

    Nada se pode tentar compreender, conseqüentemente, sem se levar em conta o homem que compreende e o homem a quem se destina a compreensão. O pensar, em qualquer de suas manifestações, como o conhecer, é algo específico do homem e só explicável a serviço do homem.

    Ao lado dessa evidência, entretanto, há uma outra que por igual se impõe - a sociedade. É no espaço social que se realiza a nossa condição humana. Hominizamo-nos socializando-nos. A humanidade específica do homem e sua socialidade estão inexoravelmente entrelaçadas: o homo sapiens é, sempre, e na mesma medida, homo socius. Como acentua HANNAH ARENDT, quando o homem se entrega ao puro pensamento, por qualquer razão que seja e independentemente do assunto, ele vive completamente no singular, ou seja, está completamente só, como se o Homem, e não os homens, habitasse o planeta, mas nossa fé perceptiva como designou MERLEAU-PONTY - nossa certeza de que o que percebemos tem uma existência independente do ato de perceber, depende inteiramente do fato de que o objeto aparece também para os outros e de que por eles é reconhecido. Sem esse reconhecimento tácito dos outros não seríamos Page 3 capazes nem mesmo de ter fé no modo pelo qual aparecemos para nós mesmos.1

    Assim, a abertura para o mundo que somos, enquanto liberdade (ser individual) cumpre-se, necessariamente, no contexto fechado que é a ordem social. Duas evidências que se impõem a nos e não podem ser ignoradas. Uma dada ordem social precede qualquer desenvolvimento individual orgânico; o que importa dizer-se que até ordem social apropria-se, previamente e sempre, da abertura para o mundo que somos como liberdade, corno indivíduo, embora essa abertura, essa liberdade sejam intrínsecas à construção biológica do homem. Destarte, é possível dizer-se que "a abertura para o mundo, biologicamente intrínseca, da existência humana, é sempre, e na só verdade deve ser, transformada pela ordem social em um relativo fechamento ao mundo, ainda quando esse fechamento (enclausuramento) nunca possa aproximar-se do fechamento da existência animal, quando mais não seja, por causa do seu caráter humanamente de produzido e, por conseguinte, 'artificial' o que não impede, entretanto, na maioria das vezes, seja ela capaz de assegurar a direção e a estabilidade para a maior parte da conduta humana".2

    Essas duas evidências nos põem o problema, cuja solução é decisiva para todo o nosso pensar sobre o homem. O que precede ou o que deve prevalecer, o indivíduo ou a sociedade? O homem, como ser individual, carregado de destino, marcado pela consciência de ser um dentre os outros, ou a sociedade, que o precede e conforma, se pa não de modo inelutável, irias sempre de modo significativo, enquanto o ser cuja hominização só se cumpre sendo ele um como os outros?

    A procura de predominância ou exclusividade é tarefa inútil, pois indivíduo e sociedade se imbricam dialeticamente e de forma essencial, podendo-se afirmar, com CASTORIADIS, que nessa relação entre uma sociedade instituída, que ultrapassa infinitamente a totalidade dos indivíduos que a compõem (mas que só pode ser te efetivamente realizando-se nos indivíduos que ela fabrica) e esses indivíduos, "podemos ver um tipo de relação inédito e original, impossível de pensar sob as categorias do todo e das partes, do conjunto e de seus elementos, do universal e do particular etc. Criando-se, a sociedade cria o indivíduo e os indivíduos em e pelos quais somente ela pode ser efetivamente. A partir da psiqué, a sociedade instituída faz a cada vez indivíduos - que como tais não podem fazer mais nada a não ser a sociedade que os faz."3

    Tornando, assim, transparentes as matrizes de meu pensamento, fica evidente que repudio todo organicismo, todo funcionalismo absoluto, todo estruturalismo eliminador do homem como referência, todo coletivismo despersonalizador, enfim todo pensar que exclui o homem como realidade em sua dimensão pessoal, autárquica, irrepetível.

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  3. Explicitadas as premissas, particularizemos nossa reflexão. Se a ordem social é produzida pelos homens e se eles a produzem sob fortes condicionamentos que lhe são postos, previamente, pela sociedade instituída, essa ordem social, salientam os estudiosos, é resultante de um processo que se inicia com a habitualização das condutas, as quais, por sua vez, se institucionalizam, ao se revestirem de dimensão social significativa, instituições que operam, por seu turno, mediante indivíduos investidos em papéis socialmente desempenhados.

    Tipificam-se as condutas (instituições) e tipificam-se os atores (papéis).

    Podemos, assim, falar de papéis quando a tipificação ocorre no contexto de um acervo objetivado de conhecimentos comuns a urna coletividade de atores, revelando-se a construção da tipologia de papéis como correlato necessário da institucionalização da conduta. Os papeis, conseqüentemente, representam a ordem institucional, no sentido de que os papéis tornam possível a existência das instituições continuamente, como presença real na experiência dos indivíduos.4

    A conduta, por força de sua repetição, faz-se hábito; e este, uma vez socializado, faz-se instituição. Não é a instituição uma coisa, algo em condições de subsistir independentemente do homem. Ela somente é na medida em que os homens a representam e o fazem mediante sua incorporação em papéis que a tomam presente, dão ser à instituição.

    Essa representação das instituições (pelos papéis) entretanto, como todas as outras formas de representação, toma-se morta, (isto é, destituída de realidade subjetiva) se não continuamente vivificada na conduta humana real. Destarte, apreender um papel não é simplesmente adquirir rotinas que são imediatamente necessárias para o desempenho exterior. É preciso que seja também iniciado nas várias camadas cognoscitivas, mesmo afetivas, do corpo de conhecimentos que é direta e indiretamente adequado a este papel. Sem a internalização dos papéis não há adequado desempenho, conseqüentemente, eficaz institucionalização se é que de instituição se pode falar na espécie, quando isso ocorre.

    Por conseguinte, também aqui, aquela ubicação dialética entre indivíduo e sociedade se faz presente. A sociedade só existe quando os indivíduos têm consciência dela, ao tempo em que a consciência individual é socialmente determinada. Assim, no particular das instituições e dos papéis, podemos dizer que a ordem institucional é real apenas na medida em que é realizada pelos indivíduos (papéis) e que, por outro lado, os papéis são representativos de uma ordem institucional que define seu caráter (incluindo seus apêndices de conhecimento) e do qual deriva o sentido objetivo que possui.

    Falar-se de instituição s m que existam atores sociais adequados, é uma falácia, como falácia é mencionarmos atores sociais quando faltam sujeitos capazes de vivificar os respectivos papéis na conduta humana real.

    Conseqüentemente, não...

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